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Lembrança de um Poeta:
Giovanni Camerana

 

DLM-FFLCHUSP

 

Em julho de 1905, morria o poeta italiano Giovanni Camerana. A notícia surpreendeu a Turim sonolenta, daquele verão de início de século. Até hoje permanecem desconhecidas as razões que levaram ao suicídio um homem pacato e afável, que aos sessenta anos podia orgulhar-se de uma carreira pública bem-sucedida.

Camerana passou quase toda a vida no chamado período umbertino da vida italiana, isto é, o reino de Humberto I, no final do século XIX (1878-1900). Eram tempos de aparente tranqüilidade, que escondiam no país um desassossego profundo. Realizada a unificação política, a Itália oficial parecia em busca de novos rumos. Rumos nada fáceis de definir, dado o divórcio entre governo e sociedade, existente desde a unidade realizada às custas do território papal. A ocupação de Roma, em 1870, havia levado Pio IX a proibir os católicos (ou seja, quase todos os habitantes do país) de participar de eleições ou de assumir qualquer responsabilidade pública. Os poucos eleitores e elegíveis formavam, pois, governos fortemente anticlericais, apoiados, aliás, por seus congêneres na França republicana e na Alemanha do los von Rom, de Bismarck. Mesmo a cultura parecia distanciar-se das raízes cristãs. O grande poeta do período, Carducci, elevava hinos à nova Roma, livre do domínio eclesiástico e o poeta que então despontava, D'Annunzio, sonhava, como Nietzsche, com o retorno às tradições pagãs.

O povo, entretanto, longe de sonhar com as grandezas da Roma pagã, pagava o preço da formação do novo estado nacional: o aumento do custo de vida, a elevação dos impostos, destinados a sustentar a administração e o exército do novo país,  que não pretendia ficar atrás dos demais da Europa. É o momento que muitos camponeses se vêem sem recursos para viver em suas terras e começam o êxodo, a grande emigração. E, sempre apegada às tradições cristãs, essa população mantinha fervorosamente as práticas religiosas herdadas dos pais e avós. 

Neste período de conflitos, Giovanni Camerana, funcionário do governo italiano, viveu aparentemente tranqüilo e realizado. De formação cristã, como todos no país, havia deixado a prática religiosa e tornara-se agnóstico. Chegara ao auge da carreira que havia seguido, a magistratura. E nela conseguira fazer-se respeitar pela integridade moral. O católico Piero Bargellini, insuspeito, pois, de simpatias ideológicas em relação a Camerana define-o como "poeta triste e magistrato integerrimo". Sim, pois esse austero magistrado tinha também um lado conhecido só de seus poucos amigos íntimos. Era também artista: pintor e poeta.

As telas de Camerana ainda se podem ver em alguns museus. São paisagens de seu Piemonte, campos verdes, com os Alpes ao fundo. E é também sua região natal que inspira alguns de seus melhores Versi. Páginas que revelam o leitor de Baudelaire e o companheiro espiritual dos Scapigliati, dos últimos românticos italianos. Publicados postumamente, em 1907, com desenhos do próprio poeta, os Versi tiveram alguma repercussão nas primeiras décadas do século XX. Cem anos depois, entretanto, o nome de Camerana parece pouco lembrado na Itália e, fora, quase desconhecido.

Sinal evidente desse desconhecimento nos dá uma das mais prestigiosas obras sobre a história literária da Itália publicadas fora daquele país. De fato, a mais nova edição de The Cambridge History of Italian Literature, nem sequer menciona o poeta. No Brasil, não sei de tradução ou mesmo de referência a Camerana, salvo as poucas linhas em que Otto Maria Carpeaux o lembra em sua História da Literatura Ocidental.

O centenário da morte do poeta convida, pois, a tentar aproximá-lo do leitor brasileiro. É o que pretendem estas reflexões e a tradução de uma de suas últimas poesias, Alla Madonna di Oropa. Neste soneto, escrito pouco antes do suicídio, um homem sem fé evoca a paisagem da terra natal e as tradições religiosas da infância. De fato, seus versos nos põem diante de uma antiqüíssima imagem da Virgem, venerada nos Alpes piemonteses. Recordando-a, Camerana revela os conflitos de seu tempo, ao expor o contraste entre a vida simples e confiante dos pastores da região, e a sua, intimamente atormentada e já prestes a terminar. Algumas notas acrescentadas ao soneto que se segue (provavelmente a primeira tradução de Camerana em português) poderão ajudar a melhor compreender algumas alusões do poeta.

Seja, pois, esta tradução, que acompanha o soneto original, uma lembrança de Giovanni Camerana, no centenário de sua morte.

Alla Madonna d'Oropa

                                 Giovanni Camerana

Ave Maria, che dalla nicchia d'oro,
tra i fulgori di tua veste gemmata,
negra in viso, ma bella, ascolti il coro,
l'ingenuo coro della pia borgata.

Ave Maria, di stelle inghirlandata,
curvo e triste nell'ombra io pur t'imploro;
la valle imbruna, è il fin della giornata,
coi mandrian dell'alpe io pur t'adoro.

Tu che salvi dall'ira del torrente,
tu azzurra visïon nell'uragano,
tu ospizio infra le nevi, tu olente

aura, in che orror mi affondo, in che agonia,
l'onta, il ribrezzo, il gran buio crescente,
tu lo sai, tu lo vedi: Ave, Maria.

 

Ave-Maria nos Alpes

                                     Giovanni Camerana

Ave, Maria, ornada com decoro
De ouro e jóias, no altar entronizada,
Donde escutais, negra e formosa, o coro,
Coro ingênuo da aldeia devotada!

Ave Maria, de astros coroada!
Curvo-me, em trevas: escutai meu choro.
No vale é noite: acaba-se a jornada,
Como o pastor na serra, eu vos imploro:

Vós que salvais da fúria da torrente,
Vós, vislumbre de sol na tempestade,
Brisa odorosa, vós, abrigo quente

Nas neves, este horror, esta agonia
De asco em que afundo e escuridão crescente,
Vós, sim, vedes, sabeis. Ave, Maria!

                                                               (tradução de Pedro Garcez Ghirardi)

 

Notas à tradução:

[título] Alpes: na aldeia piemontesa de Oropa (Alpes italianos), um santuário guarda a imagem negra de Maria com o Menino nos braços. A tradição a diz esculpida pelo evangelista Lucas e trazida pelo primeiro bispo da região, Eusébio de Vercelli (século IV).

[2] Ouro...jóias: alusão aos ornamentos oferecidos pelos devotos, entre os quais a antiga família real italiana, mesmo durante os tempos de conflito com o Papado.

[3] Negra e formosa: a expressão é bíblica (do Cântico dos Cânticos I,5, que a Vulgata traduz: "nigra sum sed formosa") e bem se aplica à imagem negra.

[5] Astros: alusão às estrelas de diamante que adornam os três diademas da imagem.

[7-8] Acaba-se a jornada......imploro: é, portanto, a hora da oração mariana do final da tarde, o Angelus, bem conhecido também no Brasil, como lembra a canção "Ave-Maria no Morro", letra de Herivelto Martins. O poeta, despreocupado da ortodoxia religiosa, toma em sentido amplo um termo ("adoro", no original) que a doutrina católica reserva ao culto divino.

[9] Vós que salvais...vós, vislumbre...: alusão a cenas de ex-voto do santuário, oferecidos por peregrinos que agradecem a proteção de Maria em várias situações de perigo vividas nas montanhas e rios pelo povo da região e retratadas nessas pequenas telas, que devem ter falado à sensibilidade de um poeta-pintor.

[10] Este horror...: o poeta matou-se sem revelar o que o atormentava. Depois de sua morte, em tempos que viam o suicídio como prova de maldição, alguém afirmou que talvez a súplica desta poesia o tenha levado, afinal, à paz.