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A Têmpera de umas Tertúlias Femininas

(discurso de lançamento do livro Recordando no Brasil a Espanha de Ontem - Conversas femininas - Centro Cultural Poveda, Campinas, 5-11-04)

 

Jean Lauand
Prof. Titular FEUSP
jeanlaua@usp.br

 

Quero inicialmente agradecer ao Centro Cultural Poveda, ao Grupo de Amigos do Vice-Consulado de Espanha, à Editora Mandruvá e, de modo especial, às organizadoras do livro, as queridas amigas Profas. Dras. Concha Piñero y Lupe Pedrero-Sánchez, pela grande honra e pela grande alegria que me proporcionaram ao convidar-me para apresentar, brevemente, este livro tão importante: Recordando no Brasil a Espanha de Ontem - Conversas femininas, publicado pelo nosso Centro de Estudos Medievais Oriente e Ocidente da Faculdade de Educação da USP e pela Editora Mandruvá.

Tenho o orgulho de ter sido o primeiro - ou um dos primeiros - a "colarme", a bisbilhotar essas tão saborosas conversas femininas, essas tertúlias. E a imensa honra de, como editor, torná-las hoje disponíveis aos leitores em geral.

Porque precisamente disto se trata: de tertúlias, essa "instituição" tão espanhola da tertúlia... E é o espírito de tertúlia (junto com muitas horas de tertúlia...) o que informa as saborosas memórias e as agudas análises de pensamento que compõem: Recordando no Brasil a Espanha de Ontem. Pois só no ambiente de convívio e amizade, de cálida conversação podem surgir, podem se decantar memórias tão ricas como estas. Cada uma das autoras conserva sua personalidade, sua experiência pessoal, sua circunstância, seu regionalismo, sua visão-de-mundo etc., mas há em comum o terem vivido a Espanha saída da Guerra Civil e, depois, também o Brasil. Nesse quadro emerge a tertúlia, pois é na tertúlia que surge aquela generosidade - também ela tão espanhola - de verter-se no outro, que é a alma de toda autêntica con-versação, como mútuo verter-se, que - agora consubstanciado em livro -, está também a nosso alcance.

Foi assim, com o passar dos anos de tertúlias - quase sem que as organizadoras se dessem conta - que um dia já estava pronto o projeto da obra: a insistência de tantos alunos e colegas da universidade foi simplesmente o catalizador para que surgisse o livro.

Essas características fazem de Recordando no Brasil a Espanha de Ontem um livro único, deliciosamente único: uma obra que une finíssimas análises de pensamento, destinada a integrar necesariamente as bibliografias dos cursos de graduação e de pós-graduação sobre Cultura Espanhola (e, também, de outras áreas como História, Antropologia, Política etc.) e que é, ao mesmo tempo (e em interação dinâmica), de extraordinária riqueza literária: pensamento vivo (outra nota do pensamento espanhol em geral...), com a saborosa presença do concreto, dos "recuerdos".

Nesse, e em tantos outros aspectos, Recordando no Brasil a Espanha de Ontem, cumpre precisamente o que se expressa com a palavra têmpera, temperar, temple: formar um todo harmônico de partes diversas. Esses relatos, essas conversas femininas (o "livro das oito mulheres"), conjuga - na medida certa - a análise de pensamento e a viveza do concreto, o olhar para a sociedade e a introspecção, a recordação da dureza daqueles tempos, temperada pelo bom humor...

Todos os aspectos da vida - educação, trabalho, religião, moda, culinária, lazer... - vão sendo, assim, recordados, de modo concreto, sob a ótica sensível das oito protagonistas-escritoras no pós-Guerra Civil. Sempre com esse delicioso senso de concreto, como quando, por exemplo, se recorda o caso de um personagem essencial naqueles anos de ditadura: o fiscal. A propósito do fiscal, Pepita, Josefa Buendía Gómez nos brinda uma piada da época, que é todo um tratado de sociologia:

"La arbitrariedad de las multas era muy grande. Recuerdo la perplejidad con que discutían mi padre, mi hermano mayor y mi tío: que si el pan pierde peso en el horno, que si esa harina nueva no retine el mismo líquido, que si habría alguien en el pueblo que quería perjudicarlos, que si.... En fin, que casi siempre había que pagar multa, lo que venía a agudizar más la situación. Nos pasaba lo mismo que al tío del chiste, el que cuidaba cerdos.

El chiste cuenta que un señor tenía una granja de cerdos. Un día llegó la fiscalía, a hacer la revisión, y le pregunta: ¿qué le da usted de comer a los cerdos? El granjero respondía: pues les doy los desperdicios de la comida, las cortezas de las patatas, de las naranjas, etc. El fiscal le dijo: ¡pero cómo es posible! Esos cerdos que van a alimentar a los españoles ¿usted los alimenta con porquerías? Una multa por mal patriota. Al año siguiente, llega de nuevo la fiscalía y hace la misma pregunta: ¿qué le da usted de comer a los cerdos? El dueño de la granja, escarmentado por la multa del año anterior, le responde: Yo los alimento con maíz, con amasijo de salvado, con cebada, etc. Entonces el fiscal le dice: ¿Cómo? Con el hambre que están pasando los españoles... y ¿usted alimentando a los cerdos con lo que falta en la mesas de nuestros compatriotas? Otra multa le cascó al granjero. Al año siguiente, se repitió la misma revisión y la misma pregunta por parte del fiscal. El granjero, desconcertado, sin saber qué decir, respondió: mire usted, señor fiscal, yo a cada cerdo le doy cinco duros, y que se las arreglen como puedan." (pp. 94-95)

Permitam-me indicar, a título de mero exemplo, mais umas pequenas amostras, que - embora insuficientes e fora de contexto... - de algum modo permitem uma primeira aproximação concreta ao livro.

De "Meu álbum de lembranças" de Concha Piñero, além das lúcidas análises sobre a Educação e a Igreja, sobre a "Sección femenina" e seus estereótipos etc. destaco aqui suas diversas leituras da obra Cinco Horas con Mario de Delibes e como: "cada uma dessas leituras correspondeu a um momento de minha visão da vida espanhola: foram três leituras diferentes da mesma obra", nas quais a personagem Carmen, inicialmente vista apenas cimo "mulher espanhola tradicional", passa em outra leitura - anos depois - a uma "mulher cheia de contradições internas, cuja 'virtude' significa, ao mesmo tempo, abnegação e dissimulação", para, finalmente, encontrarmos uma Carmen a quem se olha com simpatia "por sua ânsia de viver, por seu desejo secreto de ser como as mulheres que ela própria critica". Essa 'Carmen' torna-se, assim, um tipo incomparável para a compreensão de tantas mulheres reais em sociedades autoritárias.

O “Liceo” era misto, fato raro na época de Franco, mas comum na Bélgica. Nele me coube a coordenação das disciplinas de Letras, além do encargo de aulas de várias matérias, que iam da Geografia à Filosofia, passando por Grego e Latim. Mas minha especialidade, evidentemente, era a disciplina de Língua e Literatura Espanhola. Já no “Centro Cervantes”, onde trabalhava à noite, os alunos eram todos belgas. Com estes alunos comentei a obra de Delibes, Cinco horas con Mario. Esta obra tornou-se para mim especialmente significativa: já a havia lido em Madri (fora autorizada em 1966), voltava a lê-la e comentá-la agora em Bruxelas, e mais tarde voltaria a ela, no Brasil, com meus alunos universitários. E abro um parênteses para dizer que cada uma dessas leituras correspondeu a um momento de minha visão da vida espanhola: foram três leituras diferentes da mesma obra.

De fato, ao ler pela primeira vez Cinco horas con Mario, em Madri, acompanhei a interpretação corrente, que via no protagonista defunto a imagem de um opositor do autoritarismo e em Carmen a da mulher espanhola tradicional. Carmen representava a encarnação do que rejeitávamos, ao passo que Mario, seu marido, representava nossos anseios. Víamos em Carmen tantas mulheres daquela época: decentes, modelos de virtudes tradicionais espanholas, submissas às leis da moral estabelecida, sempre dispostas a ditar regras, com os bordões lingüísticos próprios de uma mulher convencional. Enfim, era tudo o que rejeitávamos, com o irreprimível desejo de abertura política, social e ideológica desses anos 60. Não percebíamos, então, que essa nossa interpretação do romance nos fazia cair no maniqueísmo, contra o qual protestará energicamente outra figura do romance: a de Mario, filho.

Entretanto, já em Bruxelas, ao ver a obra lida e comentada por leitores não espanhóis, percebi que para além do contraste entre um opositor idealizado e uma espanhola de mentalidade estereotipadamente tradicional (vista como tal pelos estudantes belgas), havia uma relação mais matizada e complexa. Foi no Brasil, afinal, que cheguei a ver em Carmen não tanto a mulher de convicções tradicionais, mas a mulher cheia de contradições internas, cuja "virtude" significa, ao mesmo tempo, abnegação e dissimulação. Comecei a perceber que a protagonista, secretamente, invejava o que sua severa educação lhe havia negado. Seu discurso, que tão seguro e firme se mostrava, foi-se desmoronando. Carmen era tão vítima das circunstâncias quanto o marido e precisava enganar a si mesma para não ver as contradições que havia dentro dela e ao seu redor. Enfim, foi-se transformando a nossos olhos a personagem que anos antes havíamos visto como encarnação da Espanha de Franco, do passado, da imobilidade...: da Espanha caduca. 

Carmen me aparece hoje como figura digna de simpatia, sobretudo por sua ânsia de viver, por seu desejo secreto de ser como as mulheres que ela própria critica. Haveria algo de “Carmen” na professora de Educação Física? Desejo de viver abafado, ocultado, reprimido, não só pela pressão de seus pais, mas também pela vida em comum com um homem que, por sua vez, não soube entender sua mulher e ajudá-la a mudar. Carmen é vítima de um momento. Hoje reconheço muitas "Cármenes": mulheres, antes muito rígidas, agora flexíveis e adaptadas aos novos tempos; mulheres que, como Carmen, tiveram de proteger e resguardar suas famílias, nas difíceis condições de então. É esse instinto de sobrevivência, mais que quaisquer convicções, que a leva a se defender, à espera de melhores dias. A crítica mais recente, aliás, tem contribuído para desfazer a leitura convencional da obra, que via na relação entre Mario e Carmen algo como a oposição maniqueísta entre bem e mal. (pp.25-26)

O texto de Lupe Pedrero-Sánchez põe-nos em contato também com o quotidiano da guerra, por meio de "As cartas de tio Eusebio", preciosos documentos que nos trazem o quotidiano de um soldado no front, na Guerra Civil.

A leitura dessas cartas, escritas nos anos 1937 e 1938, na frente da guerra, evocaram-me novas lembranças, não tanto pelas notícias sobre a guerra em si, já que não apresentam uma perspectiva geral da mesma, mas pelo sentimento familiar e afetivo que elas revelam: sua relação com pais, irmãos, tios e primos, empregados e empregadas, aos quais nunca esquece de enviar lembranças; o sentimento da terra: os prados e a chuva, as colheitas e os animais. Elas oferecem o perfil de uma pessoa simples que sente saudades do cotidiano, da família e da aldeia e que espera ansiosamente o fim do conflito que o mantém afastado. Por outro lado não deixam de revelar a ideologia passada às tropas pelos militares que exaltam Franco como seu caudilho e líder. Ideologia que marcou a história da Espanha nos anos do pós-guerra. (pp. 42-43)

Angela Reñones nos recorda também da religião e do cinema daqueles tempos: do cardápio das festas religiosas às impressionantes Sextas Feiras Santas ou a ridícula censura dos cinemas:

A noite de Sexta Feira Santa era especialmente espetacular. Apagavam-se todas as luzes da Igreja e, principalmente as crianças, fazíamos o maior barulho possível com as nossas carracas para atroar “aos judeus” ao mesmo tempo em que batíamos os pés no chão, que sendo de tábua, ensurdecia a todos os paroquianos. Os adultos utilizavam as madreñas, tamancos de madeira nos que se enfiavam os pés calçados com sapatilhas. Era um momento assustador para as crianças, que ficávamos realmente ensurdecidas e amedrontadas, colando-nos ás saias das nossas mães e embora estivéssemos preparados para a cerimônia, sempre nos infundia temor e susto. (p. 77)

O que falar do cinema? O mesmo sistema repressivo aparecia na censura dos filmes. O recorte recaia principalmente sobre as cenas - não digo de sexo explícito, que não existiam na época - mas, sobre aquelas que expressavam afetividade ou transmitiam uma certa sensualidade entre os protagonistas. Os filmes passavam por um crivo rigoroso e eram catalogados com números e cores. 1: branco, tolerada para todos os públicos; 2: rosa, para maiores de 12 anos; 3: levemente perigosa; 4: vermelho, gravemente perigosa, proibida para todos os públicos. Quando, recentemente, tive a oportunidade de assistir a “Cinema Paradiso”, senti-me contemplada e, como seu protagonista, também fui tentada a saltar a barreira da proibição. Um dia, fiquei escondida no cinema até as luzes se apagarem, para ver o filme “Duelo ao sol”, que estava qualificada como “gravemente perigosa” e esperei, esperei que aparecesse “a bomba”: as cenas pecaminosas que me obrigariam a acusar-me do pecado mortal perante o Padre. Que desilusão! Não encontrei tais cenas. Como ir confessar-me e dizer que “de perigoso” nada?

Ao recordar episódios como este, não deixo de achar graça neles. É difícil pensar que isso acontecia, não precisamente no fim do mundo, mas na Espanha de Franco. (p. 78)

"Entre a exigência e o desejo", de Arantxa Ugartetxea Arrieta, expõe com energia a realidade de resistência de uma família - do lado perdedor, republicano - que buscava defender sua identidade vasca:

Mis padres pertenecían al bando de los perdedores, sólo por defender desde el lado republicano su identidad vasca. Nunca nos consideramos lo que quisieron imponernos y sí lo que realmente desde la emoción más profunda nos sentíamos ser. Las ternuras y la intimidad familiar guardaban como un tesoro el símbolo más lindo y consistente de esta realidad indestructible hasta hoy que es el poder vivir y expresarnos en la lengua que nos identifica: el “euskara”. Revestía esta lengua singular en aquella época aspectos de misterio, intimidad y complicidad. Según los cánones oficiales del momento, era la lengua no culta que nunca llegaría a alcanzar los niveles académicos necesarios para ser considerada como una expresión lingüística equivalente a otras consideradas como lenguas nacionales, por ejemplo el Castellano y el Francés. (pp. 106-107)

O capítulo final "Tecendo Recuerdos: Lembranças de uma Época" reproduz a gravação de uma dessas conversas, na qual Micaela Godoi, Teresa Bozinis e Guadalupe de la Concha Leal, literalmente em tertúlia, nos falam de tantos aspectos da vida, como das brincadeiras de crianças...:

Somente, em algumas brincadeiras de criança, recordo que quando minha irmã mais velha queria nos assustar dizia: “qué viene Azaña!”. Eu não sabia muito bem quem era Azaña, mas essa expressão tinha para nós o mesmo sentido que dizer: lá vem o demônio! (Guadalupe, p. 138)

...da dureza da vida na Espanha e dos primeiros tempos de Brasil, como as lembranças da Micaela, então uma pequena criança...:

Para mim a expressão emigração soa como algo horrível: eu não queria sair das Canárias, deixar a minha terra. O primeiro choque que recebi foi ao chegar ao Rio de Janeiro; quando vi que começavam a subir, para descarregar e abastecer o navio muitos homens negros. Perguntei a minha mãe; onde estamos, estamos na África? (Micaela, p. 141)

... ou as recordações da chegada ao Brasil de Teresa, já casada:

Já, no meu caso, não considero que vim como imigrante, meu marido foi chamado para passar oito anos na Universidade de Campinas. Nós entramos pela porta da frente. Foi no ano 1975, em plena ditadura militar. Em certa ocasião um “respeitado” militar dirigindo-se ao meu marido lhe disse: “O senhor é estrangeiro, por que não vai embora? Aqui não precisamos de estrangeiros!” É claro que meu marido podia responder à altura: “Olhe aqui, senhor militar, eu não vim aqui pela minha conta, não vim aqui para tirar o espaço de ninguém; vim porque solicitaram insistentemente que viesse”. (Teresa, p. 142)

Lendo os relatos de Recordando no Brasil a Espanha de Ontem - Conversas femininas -, relatos  intitulados metaforicamente como "penteado", "tecedura", "garimpo"... -, lembramo-nos de que os antigos falavam também da memória como um tesouro. E agradecemos às autoras a confiança e a generosidade de nos abrirem os tesouros dessas suas recordações, que - por mais variadas que sejam as condições e circunstâncias de cada uma delas - trazem-nos sempre um testemunho verdadeiro de esperança e uma vivência - mesmo que em brechas, em circunstâncias tão adversas - da liberdade.

Muito obrigado