Home | Novidades | Revistas | Nossos Livros | Links Amigos Raimundo Lúlio –
Educador das Religiões(tradução: Elie Chadarevian)
Alexander Fidora
J. W. Goethe-Universität Frankfurt am Main
Instituto Brasileiro de Filosofia e
Ciência «Raimundo Lúlio», São Paulo
1. Introdução
Um dos desafios mais importantes – talvez o maior – da pedagogia atual é o que se convencionou chamar de atenção à diversidade. Assim, com as migrações que estamos presenciando atualmente, em muitos países da Europa, mas também para além do velho continente, os centros de ensino primário e secundário se encontram hoje em dia ante a dificuldade de gerir um corpo discente cada vez mais diverso. Em escolas alemãs e espanholas, por exemplo, observamos uma importante presença de alunos procedentes da África do Norte e outros países de cultura e religião islâmicas. Para as pedagogas e os pedagogos, estes imigrantes não representam dificuldades apenas em nível de integração lingüística. Mais do que isso, o problema fundamental parece ser o da integração social das diversas culturas e religiões e a implementação de umas referências normativas aceitas por todos, ou seja, de uns valores comuns. Só para dar um exemplo: é sabido que todos os alunos procedentes da cultura muçulmana, mas não só os alunos, também seus pais, têm dificuldades em aceitar o papel da professora – uma mulher – como autoridade. Os senhores, que em sua maioria são pedagogas e pedagogos, sabem disso melhor que eu. Como filósofo não é minha intenção dar-lhes aqui um curso de pedagogia. O que quero fazer, em seguida, é apresentar-lhes um filósofo e teólogo, e talvez também pedagogo, o qual já no século XIII refletiu sobre o problema da diversidade cultural e religiosa e da necessidade de uma linguagem comum que possibilite estabelecer normativas de vigência universal.
2. Raimundo Lúlio: Vida e obra
Proponho, pois, que, tendo em mente o panorama atual e seus problemas, demos agora um salto de volta no tempo, ou seja, à ilha de Maiorca onde, em 1232, nasceu Raimundo Lúlio. Os inícios de sua carreira intelectual remontam a meados do século XIII quando o estudioso maiorquino servia ao rei de Maiorca, Jaime II, primeiro como seu preceptor e depois como senescal. Na corte do rei, Lúlio, então um jovem galante, se entregava à poesia trovadoresca para cortejar as damas da alta nobreza. Ainda que estes primeiros ensaios literários não se tenham conservado, sabemos de sua existência através da Vita coaetanea, a autobiografia que Lúlio ditou a um monge cartuxo de Valverde perto de Paris. [1] Esta (auto)biografia, também informa que foi numa noite do 1263, enquanto Lúlio estava em seu quarto compondo precisamente um destes cantos amorosos, quando sua vida daria uma reviravolta decisiva ao aparecer-lhe Cristo crucificado. Tal aparição voltou a repetir-se nas noites seguintes, até que Lúlio, em resposta a estas aparições, estabeleceria as três metas seguintes para sua vida, a saber, sofrer o martírio a serviço de Cristo, escrevero “melhor livro do mundo contra os erros dos infiéis” e fundar uma escola de idiomas para as exigências da missão:
“[...] que ninguém se pode prestar melhor nem maior serviço a Cristo do que dar por amor a ele e por sua honra sua própria vida e alma. [...] Que ele [isto é, Raimundo Lúlio] mesmo teria que redigir com o tempo um livro, o melhor do mundo contra os erros dos infiéis. [...] Que teria que se dirigir ao Papa e aos reis e príncipes cristãos, para incitá-los [...] a fundar mosteiros para onde se enviariam pessoas religiosas selecionadas [...] para aprender a língua dos ditos sarracenos e de outros infiéis [...]” [2] .
Estas são, pois, as três metas que Lúlio estabelece para sua vida: o martírio, a redação do “melhor livro do mundo contra os erros dos infiéis” e a fundação de studia linguarum, como anos mais tarde fariam os irmãos pregadores, para aprender o idioma dos crentes de outras religiões. É sabido que a segunda destas metas, a conversão dos infiéis, não mediante a espada, mas com a pena, era para Lúlio, ao contrário de muitos autores medievais, não apenas um desafio intelectual, mas uma exigência existencial. Porque sem dúvida alguma, Lúlio teve ocasião de convencer-se da necessidade política de uma concordância religiosa em sua ilha natal, Maiorca, que foi reconquistada por Jaime I em 1229, como também do fracasso da apologética tradicional de seu tempo. Esta, baseando-se principalmente na exegese da Bíblia, ainda podia dar algum resultado no discurso com os judeus, os quais compartilhavam ao menos o Antigo Testamento com os cristãos. No caso dos muçulmanos, porém, era mais difícil estabelecer um ponto de partida comum. Portanto, se Lúlio queria escrever “o melhor livro do mundo contra os erros dos infiéis”, tinha a necessidade de escrever uma obra missionária diferente de todas as que existiram até então. No entanto, até que Lúlio pudesse cumprir esta meta, transcorreriam mais de dez anos, nos quais se dedicou ao estudo da filosofia e da língua árabe, compondo também um importante livro, o Llibre de contemplació en Déu, uma obra de quase três mil páginas [3] . Mas mesmo assim, faltava-lhe a intuição chave de como confeccionar tal livro contra os infiéis, já que o know-how, por assim dizer, para fazer este livro, só o recebeu em 1274 estando no Puig de Randa, em Maiorca, como informa de novo a Vita coaetanea:
“Neste [monte] aconteceu-lhe um dia, quando mal havia passado uma semana, que o Senhor repentinamente iluminou sua mente, enquanto ele estava olhando atentamente ao céu, comunicando-lhe desse modo a forma e a maneira de fazer o referido livro contra os erros dos infiéis” [4] .
A partir desta iluminação à qual Lúlio deve seu título Doctor illuminatus e pela qual recebe a «forma» e a «maneira», isto é, o método do livro a redigir – que será a Arte –, a produção literária de Lúlio não cessará mais. Esta produção, nos diversos campos da medicina, do direito, da filosofia, da teologia e também da pedagogia, para mencionar apenas alguns, já é impressionante mais não seja por sua extensão. Assim, os escritos que nos foram legados do grande estudioso maiorquino superam em sua totalidade o número de 250 obras que somam cerca de 27.000 páginas [5] . Deve considerar-se Raimundo Lúlio, desta forma, o maior polígrafo medieval depois de São Alberto Magno. Tantas são suas obras, que até hoje somente a metade destes escritos está editada em edições críticas; e muito menor ainda é o número de traduções de suas obras a línguas modernas, se bem que, no que se refere ao português, já existe um bom número de traduções que estão sendo preparadas sob os auspícios do Instituto Brasileiro de Filosofia e Ciência «Raimundo Lúlio», entre elas o importante Llibre del gentil i dels tres savis, traduzido por Esteve Jaulent, e o Llibre de l’Orde de Cavalleria, traduzido por Ricardo da Costa, que também está preparando uma tradução da Doctrina pueril de Raimundo Lúlio, sua obra pedagógica por excelência que dedica a seu filho Domingos [6] .
É importante mencionar aqui que Lúlio escreve estas obras tanto em latim, a língua franca dos intelectuais de seu tempo, como em árabe e em catalão. Isto faz de Lúlio um autor singular na Idade Média: é o único autor que conhecemos que considera as realidades lingüísticas de seus leitores. Ele sabe que para entrar em diálogo com os muçulmanos é imprescindível aprender e escrever em seu idioma: ao mesmo tempo sabe que para chegar ao povo, deve escrever não latim, mas em língua vernácula, no seu caso em catalão. De certa maneira assistimos aqui a uma democratização do saber. Lúlio quer assegurar o acesso ao saber para todos, tanto para os intelectuais, como para os crentes de outras comunidades e para as classes sociais mais baixas.
Ante uma obra tão prolífica, além de poliglota, se impõe a necessidade de síntese –necessidade que o próprio Lúlio já observou, que apesar de apostrofar-se ocasionalmente a si próprio por vir phantasticus, era suficientemente realista para reparar nas limitações práticas de seus leitores que não iriam examinar todas as suas obras–. Atento, pois, a estas limitações e para evitar que a posteridade o reduzisse a seu bel-prazer a um Lúlio em formato de livro de bolso, ele mesmo, em 1308, logo antes de acabar o Ars generalis ultima, sua obra-prima, compõe a Ars brevis que, como disse, foi escrito a modo de imagem da Ars generalis ultima [7] .
Pode-se dizer, então, que a Ars brevis, dez vezes mais curta que sua irmã maior, a Ars generalis ultima, é a versão resumida ou melhor dizendo resumidíssima do pensamento apologético de Lúlio –sua solução para o discurso na diversidade–. Assim, apesar de seu caráter compacto, reúne todos os elementos chave, além de estar autorizada pelo próprio Raimundo Lúlio, com o que oferece um acesso privilegiado ao mundo intelectual do maiorquino universal.
3. A Arte luliana como ciência inter-religiosa e transcultural
A interpretação da Ars brevis, assim como da Arte luliana em geral, oscilou desde o renascimento até nossos tempos entre dois pólos: Desta maneira, mesmo dois eruditos tão importantes e relativamente recentes como Joseph Bochenski e Wilhelm Risse classificaram a Arte luliana de «lógica matemática» e de «metafísica» respectivamente [8] . Tendo em conta a finalidade apologética da Arte, que se acaba de expor no último tópico, é evidente que nenhuma destas caracterizações chega a esgotar o significado do pensamento luliano. Mas como então determinar adequadamente o estatuto da Arte como ciência?
1) Para começar, deve-se constatar que a Arte luliana assenta-se sobre dois pilares, sendo o primeiro deles o chamado alfabeto que Lúlio introduz no início da Ars brevis e que se pode resumir da seguinte maneira [9] :
Princíp. abs.
Princíp. rel.
Perguntas
Sujeitos
Virtudes
Vícios
B
Bonitas
Differentia
Utrum?
Deus
Iustitia
Avaritia
C
Magnitudo
Concordantia
Quid?
Angelus
Prudentia
Gula
D
Aeternitas
Contrarietas
De quo?
Caelum
Fortitudo
Luxuria
E
Potestas
Principium
Quare?
Homo
Temperantia
Superbia
F
Sapientia
Medium
Quantum?
Imaginativa
Fides
Accidia
G
Voluntas
Finis
Quale?
Sensitiva
Spes
Invidia
H
Virtus
Maioritas
Quando?
Vegetativa
Caritas
Ira
I
Veritas
Aequalitas
Ubi?
Elementativa
Patientia
Mendacium
K
Gloria
Minoritas
Quo modo/ cum quo?
Instrumentativa
Pietas
Inconstantia
A primeira série de princípios que aqui se reproduzem costumam chamar-se princípios absolutos, ainda que esta denominação não seja de Lúlio, que em suas primeiras obras os denominava dignitates passando depois a chamá-los simplesmente principia [10] . Tanto a palavra dignitas como o nome principia remetem à tradição aristotélica dos Analitica posteriora, onde se estabelece que cada ciência parte de princípios per se nota que não podem ser comprovados, ao menos não pela própria ciência. Seguindo esta tradição, estes princípios também são indemonstráveis para Lúlio. E mais, são os mesmos atributos de Deus que, como causas exemplares, são ao mesmo tempo os principia essendi e os principia intelligendi da criação. Justamente por isso, não podem ser provados, já que são a condição da possibilidade do ser e do conhecer. Mas –e com isto voltamos à intenção dialogante de Lúlio– também não é necessário demonstrá-los, porque representam um lugar comum das três grandes religiões de livro. Assim, o judaísmo conhece as dignitates sob o nome sefirot, enquanto que o islamismo as chama hadras. Ou seja, Lúlio parte na sua Arte dos pressupostos comuns das três grandes religiões monoteístas: o judaísmo, o cristianismo e o islamismo.
Enquanto estes atributos divinos, segundo Lúlio, são indistinguíveis quando estão em Deus, sim que se podem diferenciar e relacionar quando estão realizados na criação, pelo que Lúlio introduz em segundo lugar uma série de princípios relacionais como «diferença», «concordância», «contrariedade», etc., que abarcam todos os seres intra-mundanos. Com isto, a cosmovisão de Raimundo Lúlio possui dois eixos, um vertical que religa a criação à sua causa transcendente mediante os princípios absolutos, sendo estes as causas exemplares do mundo; e outro horizontal que descreve o dinamismo entre as criaturas a partir das diferentes relações que se dão entre elas. Pode-se dizer, e já foi dito, que estes princípios relacionais juntamente com os princípios absolutos constituem todo o fundamento da Arte luliana, enquanto os demais conceitos do alfabeto, ou seja, as perguntas, os nove sujeitos e as virtudes e os vícios, seriam suas ferramentas de pesquisa [11] .
Lúlio parte, pois, em sua ciência de uns princípios materiais que representam uns conteúdos extramentais compartilhados por todas as religiões, com o que já temos a primeira importante diferença entre sua Arte e a lógica formal: enquanto a lógica tão somente garante a correção formal do silogismo, a Arte parte de princípios que não só expressam procedimentos, mas realidades ontológicas.
Cabe então dizer que a ciência luliana é metafísica, já que além disso se pôs em relação o uso dos princípios em Lúlio com a teoria da ciência de Aristóteles? À primeira vista, poderia parecer que se deve identificar ambas as ciências, mas como integrar nesta perspectiva os atributos divinos que nos apresentam Deus não como primeiro motor, mas com os traços característicos do Deus pessoal das três religiões abrahamitas? Parece pois, que com respeito ao primeiro pilar da Ars brevis, o alfabeto, nem a interpretação do mesmo como lógica nem como metafísica é convincente.
2) Até aqui foi exposto o aspecto material da Arte luliana, cabe agora apresentar seu segundo pilar, a saber, seu caráter formal, que se expressa nas quatro figuras (ver Apêndice). A primeira delas chama-se Figura A –letra que Lúlio não utiliza em seu alfabeto e que em obras anteriores, como a Ars maior, havia reservado a Deus–. A figura consta de dois discos de diferente tamanho superpostos, em cujas respectivas periferias trazem inscritos os princípios absolutos; no disco menor em sua forma predicativa (bonum, magnum, etc.) e no disco maior em forma de substantivo (bonitas, magnitudo, etc.). Além disso, no interior do círculo, diversas linhas interconectam as casas dos diferentes princípios absolutos entre elas, e assim esta figura demonstra claramente a mútua predicabilidade e a convertibilidade de tais princípios em Deus. De fato, nesta figura se descobre todo o segredo da famosa demonstratio per aequiparantiam de Lúlio, que não faz outra coisa senão basear a demonstração sobre a convertibilidade dos princípios absolutos em Deus, para mostrar, entre outras coisas, sua Trindade [12] . Contudo, esta figura não é exclusivamente teológica, mas também se aplica à criação, na medida em que nela se encontram realizados os princípios absolutos. De maneira que se Pedro é bom, segundo Lúlio, também se lhe pode atribuir a magnitude, ainda que então os princípios percam seu caráter universal e se convertam em princípios particulares. Portanto, diz Lúlio, esta figura serve para descer do universal ao particular e vice-versa. É este o caminho que ao tratar dos princípios se havia apostrofado como a dimensão vertical da Arte.
A segunda figura, de nome T, põe em ordem sistemática os princípios relacionais, agrupando cada três deles nos três vértices de um triângulo, de maneira que se geram três triângulos que nos manuscritos da Ars brevis costumam vir coloridos em verde, vermelho e amarelo. O triângulo verde contém em seus ângulos «diferença», «concordância» e «contrariedade», termos que se distinguem segundo o âmbito da realidade à qual são aplicados. Estes âmbitos se indicam pelas casas que se encontram por cima dos respectivos ângulos, mostrando, por exemplo, que podem existir «diferença», «concordância» ou «contrariedade» entre dois entes espirituais, ou entre um ente espiritual e outro sensível, ou ainda entre dois entes sensíveis. Da mesma maneira, o triângulo vermelho que representa o princípio, o meio e o fim, possui suas subdivisões, podendo ser o princípio causal, quantitativo e temporal. Enquanto o meio pode ser meio de conjunção, da medida ou dos extremos, como a linha entre os pontos. O fim pode ser de privação, como a morte, de limite ou de perfeição. Finalmente, o triângulo amarelo contém os conceitos «ser maior», «igualdade» e «ser menor», os quais podem referir-se às relações existentes entre duas substâncias, dois acidentes ou uma sustância e um acidente. Com esta figura, Lúlio estende ante os olhos de seus leitores a compenetração horizontal da qual se falou antes.
A figuras A e T são retomadas e unidas por Lúlio na terceira figura, que é também a primeira figura de caráter combinatório consistindo de 36 casas com combinações binárias da forma BC, BD, BE, etc., que se agrupam em oito colunas. Estas 36 casas resultam de nove elementos combinados dois a dois sem repetição: 9!/[(9‑2)! X 2!]=36 [13] . Cada uma destas letras pode ser tanto predicado como sujeito de uma predicação, podendo-se-lhe atribuir além disso tanto o valor dos princípios absolutos como o dos princípios relacionais. Ao procedimento de desenvolver o conteúdo polissêmico de cada casa, Lúlio dá o nome de evacuatio: Tomando, por exemplo, B como sujeito e C como predicado, a casa BC significa: Bondade é grande, ou: Bondade é concordante. Assim como: Diferença é grande, ou: Diferença é concordante. Já se tomarmos C como sujeito e B como predicado, a casa significa: Magnitude é boa, ou: Magnitude é diferente. Assim como: Concordância é boa, ou: Concordância é diferente. De uma só casa são extraíveis assim oito proposições, às que cabe acrescentar as proposições que resultam da combinação BB e CC que Lúlio não menciona aqui, mas que tem em conta, e assim o número das possíveis proposições sobe para doze. A estas, por sua vez, aplicam-se as perguntas nelas contidas, de maneira que as proposições da casa BC são consideradas sob as perguntas «se» (B) e «que?» (C): Se a bondade é grande, que é bondade grande?, etc. Deste modo, Lúlio pretende encontrar uma cópula que relacione o predicado e o sujeito para chegar a juízos seguros, pelo que esta figura também foi chamada a figura do juízo [14] .
Assim como a terceira figura resume as duas figuras precedentes, a quarta e última figura integra todas as figuras até aqui expostas. Esta figura consiste de três discos marcados pelas letras do alfabeto luliano em sua periferia, sendo que os dois interiores são móveis. Ora, se se fazem rodar estes discos, resultam 252 combinações ternárias sem repetição [15] significando para Lúlio a letra que está no centro da combinação o terminus medius do silogismo. Na combinação ternária BCD, por exemplo, BC seria a propositio maior, CD a propositio minor, C o terminus medius e BD a conclusão. A função desta figura é precisamente forjar para o pesquisador os termos médios para que ele possa chegar a conclusões seguras: “E assim, pelos [termos] médios das casas, o homem caça as conclusões necessárias e as encontra” [16] . Por isso, esta figura também recebeu o nome de figura silogística. Para acabar de descrever esta figura, cabe assinalar que as combinações ternárias resultantes desta são –como as combinações da figura anterior– ambivalentes, já que podem receber tanto o valor dos princípios absolutos como o dos princípios relacionais.
Para diferenciar estes significados, Lúlio esboça na Ars brevis as primeiras colunas de uma Tabula que em sua totalidade conta com 84 colunas de 20 elementos cada uma, ou seja, com um total de 1680 combinações. O número elevadíssimo de perguntas que Lúlio gera desta maneira, para apresentá-las ao juízo racional, é expressão de seu afã de querer abarcar toda asserção possível sem excluir nenhuma delas de antemão. Pode-se dizer, pois, que a função das figuras é garantir que no diálogo inter-religioso nenhuma combinação possível dos princípios básicos, compartilhados por todas as religiões, fique fora de consideração, ao mesmo tempo que seu desdobramento sistemático facilita à razão sua tarefa de julgar e chegar à verdade.
A propósito do primeiro pilar da Arte luliana, seus princípios, já foram observadas algumas diferenças importantes quanto à lógica e à metafísica. Falta situar o segundo componente da Arte diante destas duas ciências, a saber, seu aspecto formal. Em primeiro lugar, poderia parecer que são precisamente as figuras que fazem da Arte uma lógica por excelência. No entanto, se nos ativermos à finalidade das figuras expostas por Lúlio, haverá uma diferença capital: nem as figuras nem tampouco os princípios pretendem somente garantir a correção formal do silogismo, mas vão para além disto. Com efeito, pretendem ajudar o pesquisador a encontrar a cópula de uma proposição ou o termo médio do próprio silogismo, e assim também elas se tornam materiais no sentido de que são «poieticas». A Arte luliana quer ser, como a lógica, uma ciência demonstrativa, como se pode notar na demonstratio per aequiparantiam [17] , mas quer ser mais que isto, porque ao mesmo tempo aspira ser inventiva para encontrar as cópulas e os termos médios [18] . Portanto, a Arte não somente parte de uns princípios materiais, mas ao final volta a eles forjando a matéria, a base, para o silogismo, que por sua vez pode servir como base de novos raciocínios ou, inclusive, como fundamento das demais ciências.
Isto havia sido para Aristóteles uma das principais tarefas em sua ciência buscada, a metafísica; mas a Arte de Lúlio transcende as limitações desta ciência, já que não se limita a considerar Deus como primeiro princípio, como faz a metafísica, mas com base na figura A e valendo-se da demonstratio per aequiparantiam entra além disso na reflexão sobre as relações intra-divinas que lhe permitem abarcar também os mistérios da fé [19] .
A Arte não é, pois, nem lógica nem metafísica, mas deve-se situar seu lugar sistemático para além delas. Por isto, o próprio Lúlio nos Introductoria Artis demonstrativae define sua ciência para além da separação entre lógica e metafísica:
“Pois a metafísica considera as realidades que se encontram fora da alma com relação a seu ser; enquanto que a lógica considera as realidades segundo o ser que tem na alma, já que trata de certas intenções, que nós recebemos das realidades inteligíveis, a saber, da espécie, do gênero, etc., e também destas realidades que consistem em atos racionais como o silogismo, a conseqüência, etc. Esta Arte, como a mais elevada entre as ciências humanas, considera o ser tanto desta maneira como da outra, e disto se depreende que aquelas se distinguem dela na maneira de considerar o sujeito” [20] .
Com isto, fica claro que a Arte tem paralelismos com a lógica e a metafísica [21] , mas que é precisamente sua peculiar combinação da perspectiva formal e material, o que faz da Arte uma ciência sui generis, a qual poderíamos caracterizar como uma ciência inter-religiosa e transcultural, porque quer ser aquele discurso que pode ser aceito por todas as religiões partindo do que elas têm em comum: os atributos divinos, os quais, como vimos, relacionam-se mediante as figuras. Lúlio estava convencido que esta ciência universal levaria a provar a verdade e superioridade do cristianismo. Mas o que é mais importante é que com esta ciência inter-religiosa e transcultural –seja qual for seu resultado final– Lúlio cria uma instância imparcial e universal que ultrapassa a suposta incomensurabilidade das diferentes culturas e seus respectivos credos.
4. Conclusão
Ora, o que tem que ver a Arte luliana com os problemas que lhes expus no princípio desta conferência, a saber, a diversidade na aula? Será que quero convencê-los a que quando os senhores forem dar suas aulas ponham-se a girar rodas diante de seus alunos, fazendo combinações de letras? Claro que não. Creio que a contribuição de Raimundo Lúlio para o problema não é tão imediata. O que devemos aprender dele é que para conviver na diversidade –tanto na sala de aula como em outros lugares– é preciso se educar as próprias religiões. De fato, todo o projeto luliano que lhes expliquei não é outra coisa que um esforço de educação das próprias religiões, que devem entrar num discurso racional. Com sua Arte, Lúlio reclama uma posição para além de cada uma das religiões que deve possibilitar tal discurso. Se é verdade que a Arte está para além de cada uma das religiões, também é verdade, por outro lado, que não está totalmente desvinculada delas. Como puderam notar, quanto a seus princípios materiais, a Arte parte dos pressupostos comuns das três grandes religiões monoteístas e é a partir delas que tenta estabelecer um diálogo racional seguindo as regras formais das figuras. Também quando educamos na diversidade devemos fazer isto: partir do que todos os alunos, ainda que provenham de diferentes culturas, têm em comum, a saber, a capacidade de participar da razão universal que ultrapassa os limites de cada uma de suas respectivas tradições. Com isto, não estou falando contra uma pedagogia diferencial que tenha em conta e respeite as possíveis diferenças. O próprio Raimundo Lúlio respeitava estas diferenças quando escrevia, como vimos, algumas obras em latim, outras em árabe e outras, para os menos cultos, em língua vulgar, ou seja, em catalão. Lúlio queria chegar a todos os indivíduos, e por isto procurava atingir cada um em sua própria realidade lingüística, para conduzi-los, desde onde eles se encontravam, a um nível de discurso que ele considerava superior. Ou seja, Lúlio praticava uma espécie de pedagogia diferenciada. Mas como Lúlio, estou convencido que as diferenças culturais só serão produtivas –tanto para o indivíduo que as representa como para os outros– se puderem articular-se numa linguagem acessível para todos: devemos procurar que a educação chegue a cada indivíduo da maneira mais adequada à sua realidade cultural, mas isto não é tudo. Se a educação deve chegar a cada indivíduo de maneia particular, isto é assim para que depois os indivíduos sejam, por sua vez, capazes de traduzir suas experiências particulares –sejam pessoais, culturais, religiosas, etc.– em termos inteligíveis e negociáveis num discurso público. Raimundo Lúlio pretendia isto: que cada uma das religiões traduzisse suas convicções mais íntimas na linguagem comum da Arte, ou seja, num espaço público deliberativo, para que se entabulasse um diálogo inter-religioso e transcultural sobre as divergências religiosas e culturais. Esta é a receita que nos dá o autor maiorquino para evitar os hermetismos religiosos culturais que levam a fenômenos complementares de reclusão e exclusão que com tanta freqüência podemos observar entre alunos de procedência diversa.
Apêndice
Figura A
Figura T
Terceira Figura
Quarta Figura
[1] Esta obra, que é uma das principais fontes sobre os dados da vida do beato, está publicada no tomo número VIII das Raimundi Lulli Opera Latina (= ROL, Palma e Turnhout 1959 e ss.). – Além dos dados que se podem extrair desta autobiografia assim como de indicações implícitas nas outras obras lulianas, é muito útil a nova recompilação de documentos sobre Lúlio por parte de J. N. Hillgarth, Diplomatari lullià: documents relatius a Ramon Llull i a la seva família, Barcelona 2001.
[2] ROL VIII, pp. 274‑276: “[...] quod melius sive maius servitium Christo facere nemo posset, quam pro amore et honore suo vitam et animam suam dare. [...] quod ipse facturus esset postea unum librum, meliorem de mundo, contra errores infidelium. [...] quod iret ad papam, ad reges etiam et principes christianos, ad excitandum eos [...], quod constituerentur [...] monasteria, in quibus electae personae religiosae [...] ponerentur ad addiscendum praedictorum Saracenorum et aliorum infidelium linguagia[...]”
[3] Como mostrou J. E. Rubio, já nesta obra, ainda que seja pré-Artista, isto é, anterior à iluminação do Beato, se encontram os conceitos básicos do que será a Arte luliana. Veja-se J. E. Rubio, Les bases del pensament de Ramon Llull. Els orígens de l’Art lul·liana, Valência e Barcelona 1997.
[4] ROL VIII, p. 280: “In quo [monte], cum iam stetisset non plene per octo dies, accidit quadam die, dum ipse staret ibi caelos attente respiciens, quod subito Dominus illustravit mentem suam, dans eidem formam et modum faciendi librum, de quo supra dicitur, contra errores infidelium”.
[5] Veja-se E. Colomer, El pensament als Països Catalans durant l’Edat Mitjana i el Renaixement, Barcelona 1997, p. 16.
[6] Veja-se Raimundo Lúlio, O livro do gentio e dos três sábios, intr., trad. e notas Esteve Jaulent, São Paulo 2001, e Raimundo Lúlio,O livro da ordem de cavalaria, trad., pres. e notas de Ricardo da Costa, São Paulo 2000. Para mais informações sobre traduções ao português consulte-se: http://www.ramonllull.net e http://www.ricardocosta.com.
[7] Raimundus Lullus, Ars brevis, ed., trad. e introd. de A. Fidora, Hamburg 1999, p. 1: “Deus, cum tua gratia et amore / Incipit Ars brevis, quae est imago Artis generalis. / Quae sic intitulatur: «Deus, cum tua summa perfectione / Incipit Ars generalis»”.
[8] Vejam-se J. Bochenski, Formale Logik, München 1956, pp. 318-320, onde Lúlio aparece como precursor do cálculo lógico, e W. Risse, Die Logik der Neuzeit, Stuttgart-Bad Canstatt 1964, p. 532, onde o autor sustenta todo o contrário, a saber, que a Arte luliana é “in ihrem Grunde metaphysisch, nicht logisch”.
[9] Veja-se Raimundus Lullus, Ars brevis, 4; a tabela é do editor.
[10] Igualmente na Ars brevis onde Lúlio já não fala das dignidades. Devo esta importante precisão assim como outras emendas à recensão da minha edição del Ars brevis por A. Bonner em Studia Lulliana, 40 (2000), pp. 131-132.
[11] Veja-se A. Bonner, “Ramon Llull: Relació, acció, combinatòria i lògica moderna”, Studia Lulliana, 34 (1994), pp. 51-74, aqui p. 55, onde afirma que “os dezoito princípios das primeiras duas figuras constituem todo o fundamento da Arte”.
[12] A título de exemplo, cita-se a seguinte pergunta da Ars brevis, p. 98, que Lúlio resolve a raíz da demonstratio per aequiparantiam: “In anima quare intellectus, voluntas et memoria sunt aequales per essentiam? Cui respondendum est: Ex eo, quia prima causa per aequalitatem suae bonitatis, magnitudinis, etc. est intelligibilis, recolibilis et amabilis aequaliter. Et in isto passu cognoscit intellectus, quod demonstratio potest fieri tribus modis: per quid, aut per quia, aut per aequalitatem vel aequiparantiam”.
[13] Uma boa introdução aos conceitos matemáticos de Lúlio se encontra em U. Eco, La búsqueda de la lengua perfecta en la cultura europea, trad. de Ma. Pons, Barcelona 1994; veja-se todo o capítulo “El Ars magna de Ramon Llull”, e especialmente pp. 55-64.
[14] O próprio Lúlio define o objetivo desta figura em sua Ars brevis, p. 18, da seguinte maneira: “In qualibet camera sunt duae litterae, in ea contentae; et ipsae significant subiectum et praedicatum. In quibus artista inquirit medium, cum quo subiectum et praedicatum coniunguntur; sicut bonitas et magnitudo, quae coniunguntur per concordantiam, et huiusmodi. Cum quo medio artista intendit concludere et propositionem declarare”.
[15] Este número resulta da seguinte operação: Se se fixa um elemento do círculo exterior, podem ser-lhe contrapostas 8!/[(8‑2)! X 2!] = 28 combinações binárias. Repetindo esta operação com as nove letras do círculo exterior, se obtém 9 x 28 = 252 combinações ternárias.
[16] Raimundus Lullus, Ars brevis, p. 22: “Et sic per media camerarum homo venatur necessarias conclusiones et invenit illas”.
[17] Consulte-se sobre os três tipos de demostração em Lúlio, entre outros, o artigo de E. Jaulent, “Arbor scientiae: Immanenz und Transzendenz im Denken Llulls”, Zeitschrift für Katalanistik, 11 (1998), pp. 8-32, esp. pp. 21-22.
[18] O caráter inventivo da Arte já foi apontado por E. Colomer em 1979 em seu estudo clássico “De Ramon Llull a la moderna informàtica” reproduzido em seu livro citado na nota 5, pp. 85-112, esp. p. 90. Contudo, é mérito indiscutível de J. Ma. Ruiz Simon Ter estudado em detalhe esta questão em sua obra L’Art de Ramon Llull i la teoria escolàstica de la ciència, Barcelona 1999.
[19] Consulte-se também para este aspecto o livro de J. Ma. Ruiz Simon mencionado na nota anterior, esp. pp. 297-306.
[20] MOG III, p. 55: “Metaphysica enim considerat res, quae sunt extra animam, prout conveniunt in ratione entis; Logica autem considerat res secundum esse, quod habent in anima, quia tractat de quibusdam intentionibus, quae consequuntur esse rerum intelligibilium, scilicet de genere, specie et talibus, et de iis, quae consistunt in actu rationis, scilicet de syllogismo, consequentia et talibus; sed haec Ars tanquam suprema omnium humanarum Scientiarum indifferenter respicit ens secundum istum modum et secundum illum; et sic patet ut in modo considerandi ex parte subiecti differunt”.
[21] Não entramos aqui na dimensão ética que, sem dúvida alguma, também corresponde à Arte. Veja-se para isto E. Colomer, El pensament als Països Catalans durant l’Edat Mitjana i el Renaixement, p. 95.