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Dialéctica, Tópica e
Retórica Jurídicas [1]

 

Paulo Ferreira da Cunha
Prof. Catedrático da Univ. do Porto

 

I. SENTIDOS DA RETÓRICA JURÍDICA

A Retórica jurídica - como, aliás, todas as realidades do mundo mental - pode ser encarada de múltiplas formas. Cremos que as distinções podem ser muitas vezes formais, e por isso pouco prestáveis, ou antes decorrer de diferenças reais e importantes, e por isso se revelarem úteis. Uma das distinções que se nos afiguram efectivas (decorrerem de realidades) e por consequência com utilidade, será a distinção entre Retórica jurídica em sentido restrito e Retórica jurídica em sentido lato.

Com efeito, tem-se entendido por Retórica Jurídica quer a disciplina (ou o quid sobre que se debruça) atinente a um vasto, vastíssimo, conjunto de elementos discursivos, argumentativos, ponderadores, que se manifestam pelo pensamento problemático (e não dogmático, sistemático, axiomático, etc. [2] ) com presença nas diversas formas por que se manifesta e vive o Direito. Nesta visão muito lata, Retórica jurídica engloba, na verdade, não só a tópica como a própria dialéctica. E como nem a tópica é uma só, nem a dialéctica singular, na Retórica jurídica, ao menos enquanto estudo de perspectivas e teorias, caberiam várias tópicas e várias dialécticas.

Mais ainda: vista a questão por outro lado, não há dúvida que nesta lata acepção cabem retóricas de todas as fontes de Direito, pelo menos de todas as fontes voluntárias. Não sendo para nós claro afirmar-se que os usos ou até o costume, por exemplo, se afirmem com uma retórica (tal não poderá ser dito a não ser de forma muito metafórica...), já é evidente que a Lei está impregnada de retórica (desde as discussões políticas, parlamentares, trabalhos de comissão, até se plasmar tal retórica em exposições de motivos, preâmbulos, e até campanhas públicas de divulgação e promoção de certa legislação, etc.). O mesmo se diga, ou quase, para a jurisprudência. Os juízes (todo o tribunal, na verdade) assumem uma retórica desde logo denotada pela arquitectura dos lugares de administração da justiça, que se adensa, em círculos concêntricos, desde os espaços exteriores e dos símbolos que os palácios da justiça ostentam nas entradas e corredores, até à decoração e disposição das salas de audiências [3] , passando depois às vestes forenses, e finalmente desembocando na linguagem verbal ritualizada do Direito. Linguagem que, como sabemos e devemos proclamar sempre, tem uma função e uma realidade técnica, e cujo hermetismo não terá sido fruto de uma vontade de ocultar, mas apenas o resultado da décalage natural entre a evolução semântica corrente da linguagem comum e a cristalização semântica do léxico dos velhos juristas, a começar pelos romanos. Linguagem matinal que ainda guardamos hoje em muitos e muitos casos – desde logo, e principalmente, no Direito Civil. Linguagem comum tornada linguagem técnica e cristalizada. Mas linguagem que, independentemente do seu sentido denotativo, adquire conotações e funções não só metalinguísticas relevantes, como até funções em grande medida mágicas.

O ritual judiciário [4] é, em grande medida, pois, uma questão retórica, nesta perspectiva lata do entendimento da Retórica e da Retórica Jurídica.

A Literatura [5] , o Teatro e o Cinema [6] dão-nos interessantes exemplos do efeito tantas vezes acabrunhador, niilizador do ritual forense, mesmo apenas na sua dimensão ainda não discursiva.

Mas no seio do drama ou da encenação da justiça (digamo-lo com assepcia antropológica, obviamente sem qualquer carga pejorativa), o que sempre apesar de tudo ganha mais relevo, é a retórica propriamente forense, a retórica dos causídicos – e sobretudo, deve dizer-se, o pleitear oral, na barra do tribunal, e especialmente nas causas penais.

Pode ser que no futuro as coisas venham a ser diferentes. Encontramo-nos já num tempo em que o Direito Administrativo é mais de meio Direito (como afirmou pioneiramente Francisco Puy), e o Direito Constitucional efectivamente se assenhoreou das têtes de chapitre de todos os ramos do Direito. Por isso, pode ser que a relevância retórica se possa deslocar para novos terrenos... Mas para isso terá também de haver alterações processuais de tomo. Para que tal ocorresse, seria preciso que a palavra dos advogados, e sobretudo a palavra proferida em juízo e perante juízes e público, tivesse mais lugar nessas jurisdições.

Para já, e embora o Direito Civil continue a ser o mais eficaz com a sua singela retórica de “evidência” e de adesão ao senso comum que passa subtilmente por bom senso [7] – ao ponto de ser considerado como o único direito “perfeito” [8] (pela sua tecnicidade e aparente não-ideologia), e apesar da crescente importância do Direito Público político, é ainda no domínio do crime que a Retórica em sentido estrito se espraia e brilha.

As defesas penais (mais as defesas que as acusações) são ainda, tradicionalmente, classicamente, o lugar de eleição do exercício oratório, persuasivo, do discurso que visa convencer, e que para tal se orna de ademanes de beleza, flechas de sentimento, argumentos de razão. As causas penais são comummente consideradas como as grandes causas jurídicas; há também retórica nisso, mas não é só “retórica”, é um facto [9] .

Eis-nos chegados à ideia de uma Retórica Jurídica em sentido estrito. Obviamente não apenas para as defesas penais, mas para o trabalho sobretudo oral das alegações dos advogados.

Há tópica em momentos não argumentativos ou persuasórios: tópica de construção das ideias, que talvez não seja ainda retórica. Por exemplo, na pura e simples construção de uma teoria jurídica doutrinal, ou na elaboração, ainda sem especiais preocupações de legitimação, de um normativo. Essa tópica não será Retórica Jurídica em sentido estrito.

Há dialéctica nos debates parlamentares em que se esgrime por uma lei, e há-a, evidentemente, se considerarmos os discursos e as intervenções forenses dos causídicos em diálogo. Aqui é mais complicado negar que nesta dialéctica geral não haja retórica particular de cada interveniente, especialmente da “acusação” e da “defesa”.

II. RETÓRICAS, TÓPICA E DIALÉCTICA JURÍDICAS

Precisamos, pois, de ter algumas ideias minimamente claras sobre afinal quatro conceitos: Retórica Jurídica em sentido lato, Retórica Jurídica em sentido estrito, Tópica Jurídica e Dialéctica Jurídica.

O conceito mais vasto afigura-se-nos ser o de Retórica jurídica em sentido lato. Aqui se compreende, como vimos, não apenas a Tópica e a Dialéctica jurídicas, como toda a forma de expressão persuasiva ou ritualística: desde a palavra, à organização dos espaços (arquitecturas [10] ), aos símbolos, aos adereços.

Em segundo lugar, parece que o estudo da Dialéctica Jurídica, englobando o estudo dinâmico de todos os discursos dialogais (ou monólogos justapostos que formam um diálogo “virtual”), conterá a Retórica Jurídica em sentido estrito, indo para além dela, por esta ser mais unilateral ou monologante.

Depois, a Retórica Jurídica em sentido estrito contém a tópica, pelo menos naquela medida em que a tópica seja de índole forense.

A Tópica é o arsenal de ideias e de argumentos com que, por um lado, pensamos e organizamos o nosso pensamento, e, por outro, nos preparamos para as batalhas solitárias de convencer um público (Retórica) ou vencer um adversário (Dialéctica).

Há, porém, usos muito diferentes da articulação dos três conceitos – Tópica, Retórica e Dialéctica –, ou melhor, da ligação dos conceitos às palavras. Tal ocorre mercê da imbricação desses três principais conceitos básicos, e muito também, em certos casos, em razão do descrédito da conotação da palavra retórica, que passou a significar, como sabemos, mero engodo verbal, facúndia oratória, e, no limite, ausência de ideias e acções escondida por belas palavras, mas palavras mais ou menos barrocas.

Assim, não é nada inusual que qualquer dos três acabe por ser apresentado com um sentido que acaba, de algum modo, por englobar os outros dois. Nem sempre de uma forma evidente e explícita... Mas subliminar.

Não se trata, normalmente, de uma absorção por expansão epistemológica territorial, mas mais de uma deslocação “interessada” e localizada do ponto de vista. Quando se pensa, ou se concede à voz corrente que a Retórica é um discurso vago, vão, ou enganador...então as palavras Tópica ou a Dialéctica ganham como candidatas a expressões mais dignas, menos usadas, menos polémicas, para designar... muitas vezes o que a expressão Retórica poderia legitimamente (historicamente) representar.

Três exemplos de três grandes nomes nos bastem.

Perelman prefere retórica, mas acaba por designá-la, rebaptizá-la, chamando-lhe “nova retórica” [11] . Nova porquê? Nova será talvez sobretudo a redescoberta... mas redescoberta de coisa velha. Nova decerto para que não fosse assimilada a coisas velhas, a velharias. Afinal, nova et vetera... melhor: vetera semper nova.

Villey ao nome Retórica prefere o de Dialéctica [12] . Não lhe falta, evidentemente, formação clássica, nem filosófica, nem literária. Mas mesmo nos seus cadernos póstumos (e tal pode pensar-se que revelará as ideias mais íntimas, menos elaboradas para um público...) a prevalente significação que retórica adquire é a comum: um discursos vazio, enfatuado, de ilegítima persuasão [13] . A mesma ideia seria enfatizada pelo mais recente estudo de conjunto sobre o autor [14] .

Francisco Puy prefere a Tópica como elemento aglutinador das suas reflexões, e assim intitula as suas monumentais lições.

Embora, em rigor, se nos afigure que a Retórica abarca todas as demais na perspectiva lata, e a Dialéctica compreenda a Retórica em sentido estrito e a Tópica, e a Retórica em sentido estrito tenha de conter uma Tópica, compreende-se que quer a Tópica quer a Dialéctica se elevem, e se destaquem.

III. DA DIALÉCTICA

1. Porquê e como o primado da Dialéctica?

Quando se destaca a Dialéctica, parece-nos ser sobretudo porque se quer pôr em relevo o carácter agonístico, dialógico, triangular e processual hoc sensu do Direito. Não há Direito se não houver um litígio – afirmam alguns. Não há Direito se não houver um terceiro imparcial – dizem outros. Dar relevo à Dialéctica no Direito é sobretudo privilegiar o diálogo, em certo detrimento da pura emissão monologal persuasória e dos simples argumentos ou lugares comuns usados para pensar ou para convencer.

2. Que Dialéctica?

O nosso grande inspirador para a perspectiva que privilegia a dialéctica é, nos nossos dias, Michel Villey. Com o seu pensamento dialogaremos sucintamente agora.

Estamos habituados a identificar dialéctica com Hegel e com Marx [15] , e temos normalmente uma ideia muito vaga das diferenças (profundíssimas) de tais empreendimentos relativamente aos dos antigos gregos. Mas seria preciso recuperar não só o sentido como a prática da dialéctica clássica [16] .

Com Villey retomemos o sentido etimológico original da palavra dialéctica, como “arte da discussão bem organizada” [17] . A dialéctica é concebida, assim (tal como veremos de seguida, curiosamente, sintomaticamente, para a Tópica também), e desde logo, como uma arte, e também como um método. Um método que não é apenas jurídico, pois nasceu com a filosofia, mas que assumiu no Direito um lugar especial, passando a ser o método especificamente jurídico.

3. Vicissitudes metodológicas

Evidentemente que essa metodologia dialéctica própria do Direito, que os Romanos fixaram, seria ulteriormente posta em causa.

Primeiro, pela degenerescência do Direito Romano, que culminaria num relativo regresso a uma síncrese normativa, por muitos séculos ainda da Idade Média, em que prevaleceu a anexação do Direito pela Religião e pela Moral, com a prevalência da “justiça bíblica” [18] . Depois, e após o luminoso interregno da reabilitação da autonomia do jurídico devida a Tomás de Aquino, a ascensão do nominalismo contra o realismo haveria de ter repercussões de monta também na teoria jurídica (designadamente com o cunhar da categoria do direito subjectivo, que virá, efectivamente, substituir as perspectivas objectivistas do Direito). Da aplicação desse nominalismo às ciências físicas, e da exportação dos paradigmas destas para as ciências sociais e humanas (designadamente do método de vai-vém análise-sintese, ou decompositivo-reconstitutivo) resultará o atomismo social, o individualismo, e em Direito e Filosofia política, o mito do contrato social e o voluntarismo jurídico e político [19] , as teorias do consenso, etc.

A modernidade mudou por completo a metodologia jurídica. E alguma da dita pós-modernidade, até agora, ainda não fez mais que demolir o que restava dele, sem propor uma alternativa não pulverizadora. Mas a crise da modernidade jurídica, ou tardo-modernidade, não deixa de ter a virtualidade de pôr em causa as verdades feitas de métodos que têm dogmatizado o Direito, e, em alguns casos, já se pôde investigar o passado clássico e recuperar algum do tempo perdido.

4. Acordo e Desacordo em Filosofia e em Direito

Tal como na Filosofia se não pode partir de verdades absolutas, mas apenas do acordo mínimo que permita discutir, também no Direito se parte de opiniões que têm de ser testadas pelo confronto, dentro de certas regras, e assentando numa base de concordância das partes [20] . A diferença é que todas as filosofia são de todos os tempos, e não há juiz que decida da maior probabilidade de umas face a outras, fazendo caso julgado. A Filosofia prossegue o seu colóquio contínuo, numa grande conversa sem fim. Já o Direito, que os romanos consideravam filosofia prática (por alguma razão esta analogia), não pode dar-se ao luxo do non liquet [21] ou da redução eidética, nem sequer do reatar contínuo das discussões. Há que estabelecer alguma paz social e certeza nas relações jurídicas estabelecendo o juiz a versão que acolhe: a de uma parte ou uma sua própria. O Direito persegue, evidentemente, a Justiça, e o fim da arte jurídica não é outro senão a Justiça. Simplesmente, e ao arrepio de quaisquer idealismos ou dogmatismos sobre o que seja a Justiça, ela é sempre fugidia, e não se consegue senão fazer, em cada tempo e lugar, a Justiça possível, a Justiça plausível, resultante da convicção do juiz ante os parâmetros tópicos em presença, quer os gerais do sistema jurídico (desde logo a lei, mas não só), quer os particulares do caso concreto, carreados pelos intervenientes no processo. Por isso, sempre é válida a velha máxima de Ulpianus que considera a Justiça “constante e perpétua vontade”... o que verdadeiramente a surpreende no seu modo-de-ser não fixista, mas dinâmico. E a função essencial do discurso jurídico, de todo o discurso jurídico, ou pelo menos o fim para que sempre deve tender é o de dizer o que é de cada um [22] , para que se possa atribuir a cada um o que é seu (suum cuique).

5. Dialéctica e Direito Natural

Uma relação algo insuspeitada mas fundamental para a determinação do justo (e do justo concreto, não de qualquer justo abstracto) é a que se estabelece entre dialéctica e Direito Natural.

Para quem conceba o Direito Natural de uma forma estática, espécie de catálogo ou decálogo por detrás da legislação, ou seja, quem tenha uma visão afinal jusnaturalista positivista, como foi nomeadamente o caso das versões setecentistas mais correntes de Direito Natural – com razão apelidadas de jusracionalistas -, esta relação com a dialéctica não terá qualquer sentido. Mas a verdade é que, ao invés dessa orientação, o Direito Natural pode ser encarado de forma dinâmica (sem prejuízo de se lhe reconhecer um cerne imutável – pelo que poderá eventualmente ver-se traduzível em princípios). Na perspectiva dinâmica, clássica, realista e não racionalista, o Direito Natural será essencialmente um método [23] de alcançar as soluções justas, e, nessa medida, vedado que lhe fica, pela natureza das coisas, fazer apelo a procedimentos dogmáticos, não poderá deixar de procurar o justo senão pelas vias da dialéctica [24] .

A perspectiva dialéctica salva, assim, simultaneamente, quer o aspecto formal quer o material de um Direito clássico, realista. A união entre Direito Natural e Dialéctica não é, porém, um simples artifício teórico. Veja-se, por exemplo, a magnífica fusão de ambos os elementos na teorização do Direito e da Justiça na Summa Theologiae de Tomás de Aquino [25] . Nos nossos dias, a conotação de Direito Natural ainda não recuperou inteiramente de algum descrédito e cepticismo que sobretudo os exageros do jusracionalismo e alguns aproveitamentos ideológicos lhe valeram. Mas foi o jusnaturalismo que efectivamente emergiu, como única solução fundamentada e eticamente sustentável depois da barbárie nazi. Sem o apelo ao Direito Natural teria sido impossível julgar legitimamente os crimes cometidos em nome da lei positiva [26] .

Por isso, o Direito Natural recuperou justamente o seu prestígio depois da II Guerra Mundial [27] , e não poucas conversões a tal perspectiva se viriam a verificar. Todavia, ainda existe muito caminho a percorrer, sobretudo no reencontro do método e da substância, da dialéctica e do conteúdo do Direito Natural.

IV. DA TÓPICA

1. Porquê o primado da Tópica?

Quando se destaca a Tópica, por outro lado, é sobretudo o arsenal do pensamento e da argumentação que se põe em relevo. Porque esse arsenal é comum quer ao diálogo argumentativo quer ao discurso unívoco persuasivo (porque não será decerto um verdadeiro monólogo). A Tópica acaba por ser encarada como a base de ambas, e afinal Retórica e Dialéctica seriam uma espécie de Janus bifronte, com uma face dialogando e outra discursando apenas.

2. Sentidos da Tópica

Mais ainda do que a Dialéctica, sempre muito ferida dessa incomodidade de vizinhanças conotativas que lhe perturbam o sentido, a Tópica está apta a conter em si própria um conjunto muito significativo de sentidos. Para seguirmos (sintetizando, reescrevendo, dialogando com...) o catálogo de Francisco Puy [28] , refiramos que a própria Tópica Jurídica pode ser entendida como:

1. Um Catálogo: Um rol de tópicos, repertório, acervo de dados jurídicos, que podem ser de muitos e variados tipos, e com as mais diferentes funções.

2. Uma Arte: Um arte argumentativa, utilizando postulados (loci comunes, topoi...) tidos como elementos de persuasão das partes envolvidas.

3. Um Método: Precisamente o método de, a partir da formação de um consenso entre os intervenientes na questão, fundado em princípios resultantes da experiência, encontrar soluções racionais para os problemas jurídicos sem olvidar os casos concretos. Isto é, em certo sentido, trata-se de uma metodologia de equidade sem ser uma pura casuística.

4. Uma Doutrina: Uma teorização e perspectiva de organização dos lugares comuns (experiências e valorações) considerados adquiridos na comunidade, especificamente na comunidade jurídica, ou científico-congregacional do Direito.

5. Posições eclécticas e posições puristas (reducionistas): Há ainda quem adopte várias ou todas das perspectivas enunciadas, e quem, mesmo no seio de cada uma, assuma posicionamentos muito estritos. A verdade, porém, é que a Tópica é uma e plural, em todas as tópicas existentes. E pode até dizer-se ser anti-tópico postular uma perspectiva dogmática sobre o que deva ser. Muito delimitadamente, a tópica.

Pessoalmente, não damos igual relevância a todas estas perspectivas. Por exemplo, afigura-se-nos muito mais importante considerar a Tópica como um método e como uma arte que como um simples catálogo. E afirmá-la como uma doutrina é sem dúvida nobre, e verdadeiro (sobretudo face à doutrina dogmática), mas pode muito mais facilmente ser contestado precisamente pelos dogmáticos. Digamos que há um sentido “central”, mediano, e de algum modo consensual sobre o que possa ser a Tópica – arte e método. E que a redução da mesma a um catálogo ou a sua elevação a uma teoria ou doutrina correspondem, respectivamente, a um certo apoucamento e a determinada elevação da mesma. Mas a tópica continua sendo tudo isso.

3. Diferentes Tópicas Jurídicas

Como sugerimos já supra, para a Retórica, também no domínio da Tópica se pode fazer uma muito vasta extensão do objecto. Assim, e continuando inspirado por Francisco Puy, não há dúvida de que pode haver várias tópicas jurídicas, sobretudo relacionadas com diversos modos normogenéticos (sobretudo fontes do Direito) e com manifestações do Direito em geral. Assim:

A – Tópicas Jurídicas Epistemicamente centradas no Direito

1. Tópica jurídica doutrinal: Tópica jurídica doutrinal é a tópica jurídica presente e derivada dos escritos dos jurisconsultos, jurisprudentes. Em grande medida o que está em causa nesta espécie é o problema da auctoritas, uma vez que já não existe o ius publicae respondendi ou qualquer forma de relevância da doutrina como explícita fonte imediata do Direito.

2. Tópica jurídica legal: Tópica jurídica legal é a tópica jurídica presente e derivada dos textos legais, desde os trabalhos preparatórios até à interpretação da norma pelo juiz ou aplicador da norma (quando ela vem efectivamente à vida, como quer um velho mito jurídico britânico). A importância desta espécie é evidente. Em muitas perspectivas, latamente designáveis por positivistas legalistas, a lei ou a norma, em geral, é o único tópico invocável, e univocamente utilizado. Por outro lado, contra tal tópico, ergue-se não raro o brocardo decisivo (mas um brocardo da decadência romana): dura lex, sed lex. Em grande medida, poderia dizer-se que a démarche tópica em geral esgrime contra este tópico avassalador.

3. Tópica jurídica judicial (ou jurisprudencial?): A tópica jurídica judicial ou jurisprudencial é a tópica jurídica que decorre do labor doutrinal dos juízes no exercício do seu munus próprio. É uma forma de tópica doutrinal, mas dotada de uma auctoritas especial, e com a carácter mais específico que a tópica jurídica doutrinal, porquanto directamente se revela a partir de casos concretos. Na verdade, esta tópica tem um valor persuasivo geral muito grande, porque as sentenças são, nos nossos sistemas jurídicos, a última palavra teórica (cumpre depois cumpri-las) sobre o justo e o injusto.

4. Tópica jurídica historiográfica: A tópica jurídica historiográfica é a tópica jurídica do passado, seja qual for a fonte concreta, e contida em documento historiográficos de índole jurídica. É um importante repositório de lições do passado, e, apesar da falta de vigência das suas normas, possui uma especial auctoritas que vem não só do lustre da vetustez, como da adequação, subtileza e engenho práticos das soluções. Nesta tópica, o velho direito nacional de cada país inflama a costela nacionalista, e o Direito Romano apela para um mito de direito quase perfeito, numa perdida idade do oiro da juridicidade.

B - Tópicas Jurídicas Epistemicamente exógenas à Scientia Ivridica

Faz todo o sentido apelar para tópicas jurídicas exteriores à Arte do Direito. Na verdade, apesar de a perspectiva tradicional acreditar que os argumentos persuasores de quem decide e quem observa a questões jurídicas são estritamente jurídicos, o certo é que nos vamos afastando cada vez mais desse paradigma. E vamos reconhecendo que o depósito de tópicos estritamente jurídicos não chega para firmar profundas convicções, as quais depois, é certo, acabarão por assumir forma numa linguagem jurídica.

Apesar de muitas das opções dos CLS (critical legal studies) serem, a nosso ver, susceptíveis de profunda crítica, inclinamo-nos muito fortemente a partilhar a premissa que alguns têm como fundante dos seus estudos, e que já foi assim sintetizada:“The starting point of critical theory is that legal reasoning does not provide concrete, real answers to particular legal or social problems... The ultimate basis for a decision is a social and political judgment incorporating a variety of factors… The decision is not based on, or determined by, legal reasoning” [29] .

Por isso consideramos da maior importância o estudo dos tópicos extrajurídicos, que, em grande medida, podem ser até mais profundamente importantes que os jurídicos, os quais não raro funcionam como écran de fumo para esconder opções bem mais passionais e não submetidas à rigorosa lógica da doutrina clássica, sobretudo a dogmática e sistemática.

Não podemos ficar indiferentes a esta situação, que coloca muitos problemas práticos, e não poucas questões teóricas de implicações muito gerais.

Na verdade, poderá de algum modo parecer que, de acordo com a perspectiva que vimos desenvolvendo na nossa teorização do Direito, o ideal seria um tal Isolierung do Direito que se encontrasse plenamente imune às determinações políticas, míticas, religiosas, éticas, morais, ideológicas, filosóficas, etc., que lhe vêem do exterior.

Mas não é assim. Além de estarmos agora a estudar simplesmente algumas formas do ser e não o dever-ser do Direito, mesmo numa perspectiva de indagação do sollen teríamos de ponderar sobre esta questão. Não parece exequível, nem sequer desejável, um Direito por completo “purificado” ao ponto de não tomar em conta esse “mundo lá fora” que, como diz o poeta, “pula, e avança”... O que, isso sim, se pode e deveria exigir, seria uma espécie de passaporte, salvo-conduto ou livre-trânsito que permitisse ao Direito receber essas influências de forma pensada, e não se submetesse, sem mais, a todas as modas que os opinion makers lhe pretendem impor.

Obviamente que a metáfora tem de ser entendida em termos hábeis, e ninguém nega que o jurista é homem, e, como tal, está permanentemente submetido à influência do que não é jurídico. Evidentemente. Do que se trata é só de não ser naif. De não ser sobretudo fascinado com as maravilhas “do resto”, quantas vezes copiadas já de velhos paradigmas do próprio Direito (que exportou para tantos quadrantes, quer para a Teologia como para a Geometria [30] ), quantas vezes só fogo de vista. E de não ser burocrata da coacção, sempre cumprindo ordens dos poderes.

Essa maldição de Midas, relatada por Kelsen [31] , segundo a qual o Direito transforma em coisas jurídicas tudo aquilo em que toca, teria, assim, de ser sabiamente utilizada. Não para receber, tornando jurídico (ou tornando lícito ou ilícito) tudo o que vem. Mas para a tudo aplicar os seus critérios, que, se bem entendidos, contêm uma filosofia, e até as bases (muito latas, é certo) de uma filosofia política. Não em vão chamaram os Romanos aos juristas “verdadeiros filósofos”.

Passemos, pois, a uma possível estruturação desses tópicos viajantes que nos chegam e tanto nos seduzem:

5. Tópica jurídica mediática

A tópica jurídica mediática é a tópica jurídica que está presente e promana de quaisquer meios de comunicação social, não especificamente jurídicos, constituindo uma espécie de vox populi ou opinião pública ou profana (porque provinda de não juristas) ou de divulgação. Em todo o caso, é o espelho profano ou ad usum, do mundo jurídico. Nos nossos dias é cada vez maior a intromissão de opinion makers sem formação jurídica e simples “espontâneos” em questões de direito e justiça. Se essa democratização do discurso por vezes nos revela realidades insuspeitadas ou caladas, não apercebidas ou incómodas na casa do Direito, vezes demais se está perante discursos interessados, hiper-ideologizados (ainda que muitas vezes sincréticos e subtis), que não têm a menor ideia da singularidade, das forças e fraquezas do Direito e normalmente o identificam, nos seus pré-conceitos, com uma simples gramática do poder e técnica de coacção.

6. Tópica jurídica literária:

A tópica jurídica literária é a tópica jurídica contida e decorrente de obras de ficção literária (em qualquer género), que decorre da efabulação do real, da sua metamorfose, ou da proposta ou descrição de utopias. Estas últimas, designadamente, entretecem com a realidade jurídica relações por vezes insuspeitadas, na medida em que podem ser terreno de experiência teórica, meio de propaganda de soluções de iure constituendo, ou espelho crítico do existente de iure constituto (sobretudo no caso das distopias ou utopias negativas). Além disso, podendo parecer que a tópica literária não tem grande valor num domínio cada vez mais dado ao tecnicismo, como o jurídico, ocorre precisamente o contrário: a bela frase é veículo preferencial para a ideia. E ainda hoje, tal como Aristóteles, continuamos a citar Sófocles e a sua Antígona para falar de leis injustas e de direito natural, mesmo que a decisão de Creonte não tenha sido um acto legislativo e mesmo que, em rigor, talvez se não tenha tratado de direito natural, mas de direito positivo ou de regras religiosas [32] . Há ainda casos de perfeição ou quase-perfeição na estilização literária de certos tipos jurídicos ou na denúncia de certos erros, excessos, injustiças. A mania da litigiosidade em Les Plaideurs, de Racine [33] , a morosidade dos processos em Bleak House, de Charles Dickens [34] , o advogado de sucesso mas sem convicções, em A Queda, a relação entre política e direito em Os Justos e o fim da juridicidade pela arbitrariedade de um déspota em Calígula, todos os últimos três de Albert Camus [35] , a subtileza da argumentação jurídica contra um litigante de má fé, em O Mercador de Veneza, de Shakespeare [36] , as relações entre ideologia, paixão e crime, n’ As Mãos sujas, de Sartre [37] , o problema da culpa e do remorso em Crime e Castigo de Dostoievski [38] , de novo a culpa (ou a sua ausência), a punição e a justiça divina no Livro de Job [39] , etc., etc..

7. (Excursus - ) Legal Storytelling: uma nova tópica?

Mais recentemente, e sem ligação directa com a supra-referida tópica de raiz literária - pelo menos no seu timbre, sentido, intencionalidade e radicação - , surge com alguma importância, sobretudos nos Estados Unidos, e em certo conflito até com os CLS (Critical Legal Studies) o movimento contador de estórias legais. A preocupação deste movimento é reconhecidamente empenhada no plano ideológico-político, identificando-se com uma mundividência própria dos liberals americanos (que, como se sabe, pouco ou nada têm a ver com os liberais europeus continentais [40] ). Tais estórias visam suscitar a adesão, o convencimento do “público” para causas que visam pôr em relevo o que os seus autores consideram ser casos de discriminação racista, sexista ou contrária à “orientação sexual”. E parece crerem os activistas deste movimento na eficácia desta forma mais ou menos sentimental de argumentar, com vista à reforma social. Mais: crêem que apenas através dessas estórias se pode mudar a mentalidade imperante – o que é um caso interessante de crença na retórica latissimo sensu e no poder social e escatológico da literatura empenhada. Cremos que com alguma ironia inicial (pluri-dirigida, aliás), afirmam dois dos críticos desta corrente, Daniel A Farber e Suzanna Sherry:

“Although no one contests that these stories are more readable than typical law-review fare, the consensus about their value stops there. Advocates of storytelling believe that stories can play a fundamental role in advancing social reform. Only through stories, they contend, can the fundamental racist, sexist, and homophobic structures of our society be confronted and changed” [41] .

Não partilhamos, é certo, uma tão arreigada fé na eficácia geral e socialmente regeneradora do contar estórias, e acompanhamos as críticas dos citados autores quanto ao risco de poderem distorcer, por vezes, o debate jurídico (especialmente se forem atípicas, não rigorosas, ou truncadas [42] ). Além disso, como sucedia já com as utopias literárias com desejos de reforma político-social [43] , acreditamos que tais narrativas se tornam muito aborrecidas quando proponham caminhos muito concretos de mudança, perdendo assim a vantagem competitiva que possuíam relativamente aos outros tipos de discurso jurídico.

Por outro lado, importa talvez recordar que há estórias e estórias. Umas podem ser empenhadas de uma banda, e outras engagées de outra banda... E entre ambas o Direito não terá de ser propriamente cego, mas imparcial, olhando o que de justo um e outro lado contenham.

E há ainda outras possibilidades. As narrativas mais jurídicas [44] de um José Calvo González [45] , por exemplo, em vez de apresentarem objectos localizados e polémicos, parecem-nos devolverem-nos a cor local dos problemas dos juristas de um tempo e de um lugar, e, ao mesmo tempo, remeterem-nos para a juridicidade de sempre. Essa universalidade é possível também nos contadores de estórias do Direito. Poderá vir a ser mais possível ainda se se generalizar o procedimento, que ainda conta, naturalmente, com a resistência dos cultores de estilos mais clássicos, e de todos aqueles a quem repugna a utilização dessa arma retórica.

Ora aqui de novo se levanta ainda a questão de um contar mais literariamente empenhado ou mais juridicamente comprometido – o que se traduzirá, afinal, numa revisitação do problema da relação da filosofia jurídica (implícita ou explícita) com as formas literárias [46] .

Será muito interessante vir a considerar, num novo diálogo, de tópicos mais alargados, o legal sorytelling e outras propostas de outros contadores de outro tipo de estórias. E a questão poderá ser: encontrar-se-á mais verdade e mais justiça nessa complexa disputa, ou haverá a tentação de regressar à árida e esquálida secura dos silogismos judiciários do positivismo legalista, logicista, dogmático e sistemático? Gostaríamos de poder optar pela primeira possibilidade, mas não nos pertence adivinhar. Em todo o caso, teimamos em dizer, como Shahrazad:

“Para sobreviver, é preciso contar estórias” [47] .

8. Tópica jurídica mítico-teológica

A tópica jurídica mítico-teológica é a tópica jurídica que decorre de fontes dos mitos, da mitologia, das experiências intelectuais religiosas, e das teologias. A sua autoridade pode ser suprapositiva num clima teocrático ou místico, mas há nelas sempre uma dimensão de auctoritas, mesmo em ambiente positivo, que ao menos partilha com a tópica jurídica historiográfica.

Embora o peso argumentativo deste tipo de tópica seja aparentemente menor, dada alguma externalidade da mesma face ao cerne jurídico, a questão não é assim tão simples. É que, como vimos supra a propósito da questão do movimento do story telling, essa menor eficácia ao nível do que poderíamos chamar retórica externa (carapaça lexical jurídica sobretudo) fica, em muitos casos, compensada pela persuasão mais profunda, uma retórica que toca o interior das decisões, o núcleo do espírito onde se formulam os mais profundos juízos, se acalentam os mais acarinhados amores e ódios, e onde, afinal, se tomam as verdadeiras decisões.

V. RETÓRICA JURÍDICA

1. A Escolha das Designações. Recepção alargada da designação “Retórica”

As designações têm importância, mas não têm toda a importância – longe de nós subscrever qualquer nominalismo. A verdade é que há marcas, e as marcas ajudam a vender os produtos, há nomes e suas etimologias, que auxiliam a captar os seus sentidos. Mas, no caso concreto, a solidariedade entre os três nomes e as muitas coisas para que remetem quase nos levaria a não optar, e a ficar com a tríade. Todavia, ainda assim, por exemplo, se quisermos escolher um nome para a disciplina jurídica em que se ensinem estas matérias, será decerto melhor que ela tenha um e não três nomes. Por isso, parece importante fazer alguma escolha.

Boa parte da escolha das designações têm razões de índole conotativa, subjectiva no limite. Exponhamos sumariamente as nossas:

O público, tanto geral como especializado, reconhece melhor a expressão Retórica Jurídica que qualquer das outras. Apesar de alguma ascensão da expressão “tópica”, ela centra-se sobretudo em círculos mais letrados.

2. Retórica Jurídica e Retórica tout court

Por outro lado, a Retórica Jurídica em sentido lato será, na perspectiva que referimos, a mais abrangente de todas, enquanto a Retórica Jurídica em sentido estrito afinal se concentra sobre o que mais classicamente tem interessado os juristas nesta matéria: a arte de bem persuadir em juízo. Uma razão e outra são de ponderar.

Finalmente, a expressão Retórica Jurídica faz a ponte para a renovação destes estudos noutros domínios, que não têm usado muito nem a expressão dialéctica – muito conotada ainda com o materialismo dialéctico ou com a dialéctica hegeliana -, e apenas um pouco mais a expressão tópica.

Embora consideremos que a dimensão dialéctica da juridicidade seja um seu elemento não só metodológico como ontológico essencial [48] , e que nessa dialéctica o pensamento tópico é o mais caracteristicamente jurídico, não podemos deixar de encarar a Retórica Jurídica como uma especialidade sectorial da Retórica em geral. A autonomia da disciplina é regional, pelo que para se saber Retórica Jurídica sobretudo se tem de saber Retórica tout court. E assim sendo, a melhor introdução à Retórica Jurídica é a Retórica geral.

3. Especificidade Tópica na Retórica Jurídica

Acresce contudo uma realidade a ter em conta: na medida em que a Retórica Jurídica é Retórica geral ou Retórica tout court aplicada ao âmbito jurídico, a especificidade da Retórica Jurídica não existe tanto ao nível da retórica propriamente dita, mas precisamente ao nível da Tópica. A Retórica Jurídica é sobretudo distinta pelos elementos tópicos particulares do Direito.

Por exemplo, não é verdadeiramente um lugar comum afirmar-se que “a ignorância da lei a ninguém aproveita” – ou ignorantia legis non excusat. É todavia um tópico particular do mundo jurídico. Tão iterativo que é recebido pela legislação, estando presente em vários códigos civis.

E todavia, como todos os tópicos, é controvertível. Assim, por exemplo, afirma (referindo-se ao tópico, mas refutando-o: o que é outra forma de o fazer viver) Paul Bastit:

“(...) Le Parlement vote plus d’un millier de lois par an, soit à peu près ce que Rome à produit en ce domaine au cours de deux millénaires. On a donné le nom d’inflation législative à cette situation qui a de nombreux inconvénients pour le juriste; le moindre d’entre eux est la difficulté qu’il y a à connaître les lois. Non seulement leur masse en rend la lecture pratiquement impossible, même pour le juriste, mais encore la rapidité avec laquelle elles se succèdent conduit à des négligences de rédaction, voire à des contradictions, qui rendent très difficile la connaissance des règles législatives. A fortiori la présomption de connaissance de la loi qui pèse sur le simple citoyen n’a plus de grand sens [49]

Utilizados com funções legitimadoras ou refutados pela sua inaplicabilidade, injustiça, contraditoriedade, etc., os loci comunes jurídicos são do que de mais específico existe na Retórica Jurídica. A tal se poderá acrescentar algumas técnicas forenses de interrogatório de testemunhas e dos demandados (e de cross examination), e, certamente, alguns elementos estilísticos próprios.

4. Defesa da Retórica, defesa do Direito

Mas, por tudo quanto ficou dito, essa especificidade tópica da retórica jurídica em nada lhe retira importância. Estamos apenas, no caso do Direito, perante uma feição particular de ser Retórica. O que especialmente sobressai no terreno da juridicidade são os lugares comuns próprios do Direito; mas este, a sua metodologia e a sua prática, não se limitam à tópica jurídica. São, efectivamente, Retórica: Retórica tout court.

No Direito está viva a Retórica no seu melhor. E a defesa da Retórica é, em boa medida, a defesa do Direito, tal como a defesa do Direito a defesa da Retórica.



[1] Este artigo terá também uma outra edição em Portugal.

[2] Cf., por todos, PAULO FERREIRA DA CUNHA, “Razão Dogmática, Razão Canónica, Razão Dialéctica”, in Lições de Filosofia Jurídica. Natureza & Arte do Direito, Coimbra, Almedina, 1999, p. 231 ss. Na perspectiva do pensamento jurídico “sistemático”, por todos,  CLAUS-WILHELM CANARIS, Systemdenken und Systembegriff in der Jurisprudenz, 2.ª ed.,  Berlim, Duncker und Humblot, 1983 (Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do Direito, ed. port. com introdução e tradução de A. Menezes Cordeiro, Lx., Fundação Calouste Gulbenkian, 1989).

[3] Cf., v.g., PAULO FERREIRA DA CUNHA, Le Droit et les Sens, Paris, L’Archer, dif. P.U.F., 2000.

[4] Cf., por todos, ANTOINE GARAPON,  L'âne portant des reliques — Essai sur le rituel judiciaire, Paris, Le Centurion, 1985; Idem, Bien juger, Paris, Odyle Jacob, 1997, trad. port. de Pedro Filipe Henriques, Bem Julgar. Ensaio sobre o Ritual Judiciário, Lx., Instituto Piaget, 1999.

[5] Cf., v.g., PHILIPPE MALAURIE,  Droit et Littérature, Paris, Cujas, 1997; JEAN MARQUISET, Les Gens de Justice dans la Littérature, Paris, L.G.D.J., 1967.

[6] Sobre alguns filmes e o Direito, cf., v.g., ANTHONY D'AMATO / ARTHUR J. JACOBSON, Justice and the Legal System. A Coursebook, Cincinati, Anderson, 1992, Teacher’s Manual, p. 4 ss.. Os autores dão notícia de um popular seminário que usa(va) filmes como materiais de estudo: dirigido pelo Professor Francia Nevins, na Escola de Direito da Universidade de St. Louis. Algumas referências filmográficas também in ANDRÉ-JEAN ARNAUD, Critique de la raison Juridique. 1. Où va la sociologie du Droit ?, Paris, LGDJ, 1981.

[7] Aliás, tópicos poderosíssimos em Direito: cf., recentemente, por todos, PHILIP K. HOWARD,  The Death of Common Sense. How Law is Suffocating America, Nova Iorque, Random House, 1994.

[8] Designadamente afirma MICHEL VILLEY, [Précis de] Philosophie du Droit, I, 3.ª ed., Paris, Dalloz, 1982, p. 84: “Le seul droit parfait est le droit civil”. Cf. ainda, com alguma ironia relativamente às disputas quanto ao «ramo mais importante» do Direito, PAULO FERREIRA DA CUNHA, The value of Juridical Sciences – by “Aquinas”…translated from the “Latin manuscript” by Paulo Ferreira da Cunha, in Short Studies on Philosophy & Education, colecção Videtur, Libro 7, São Paulo, CEAr/DLO/FFLCHUSP, Editora Mandruvá, 2000, p. 65 ss..

[9] Cf., v.g., HENRI ROBERT, Les Grands Procès de l’Histoire, trad. port. de J. Costa Neves e Leonel Vallandro, Os Grandes Processos da História,  trad. port. Lx., Livros do Brasil, s/d  (vários volumes). E veja-se, ainda título de exemplo, o invulgar sucesso editorial entre nós dos discursos forenses de um HENRIQUE FERRI, Discursos de Defesa (Defesas Penais), trad. port. de Fernando de Miranda, 6.ª ed., Coimbra, Arménio Amado, s.d.; Idem, Discursos de Acusação (Ao lado das Vítimas), trad. port. de Fernando de Miranda, 5.ª ed., Coimbra, Arménio Amado, s.d..

[10] Cf. FERNANDO TÁVORA, Da Organização do Espaço, 4.ème éd., Porto, Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto, 1999.

[11] CHAIM PERELMAN, Ethique et Droit, Ed. Univ. Bruxelles, Bruxelles, 1990; Idem, L'usage et l'abus des notions confuses, in “Logique et analyse“,  n.º 81, mars 1978; Idem, O Império Retórico. Retórica e Argumentação, trad. port. de Fernando Trindade e Rui Alexandre Grácio, Porto, Asa, 1993; Idem, colab. L. Olbrechts-Tyteca, Traité de l'argumentation. La nouvelle rhétorique, 4.ª ed., Bruxelles, Univ. Bruxelles, 1983; Idem, Rhetoriques, Bruxelles, Editions de l’Université de Bruxelles, 1989; Idem, Logique Juridique, Nouvelle Rhétorique, Paris, Dalloz, 1976.

[12] MICHEL VILLEY, Préface a Littératures contemporaines sur la 'Topique Juridique', de Peter Degadt,  Paris, P.U.F., 1981, página sem número; Idem, “Nouvelle rhétorique et droit naturel”, in Critique de la pensée juridique moderne, Paris, Dalloz, 1976, p. 85 ss.

[13] MICHEL VILLEY, Réflexions sur la Philosophie et le Droit. Les Carnets, Paris, P.U.F., 1995, passim (cf. índice temático, p. 534).

[14] STÉPHANE BAUZON, Il Mestiere del Giurista. Il Diritto Politico nella Prospettiva di Michel Villey,

Università degli Studi di Roma “Tor Vergata”, Publicazioni della Facoltà di Giurisprudenza, Milão, Giuffrè, 2001, máx. p. 200 ss..

[15] Uma crítica da dialéctica hegeliana e marxista, consideradas “irremediavelmente unidas”, in ALEXANDRE MARC, De la Méthodologie à la Dialectique, Paris, Presses D’Europe, 1970, máx. p. 82 ss..

[16] Cf., por todos, ENRICO RAMBALDI, Dialéctica, in “Enciclopédia Einaudi”, vol. X, edição portuguesa, Lx., Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1998, p. 84 ss..; LIVIO SICHIROLLO, Dialéctica, cit.; PAUL  FOULQUIÉ, La Dialéctique, Paris, PUF, 1949, trad. port. de Luís A Caeiro, A Dialéctica, 2.ª ed., Mem Martins, Europa-América, 1974, máx. pp. 9-26. V. ainda “Dialéctica” in ANDRÉ LALANDE (dir.), Vocabulaire Technique et Critique de la Philosophie, Paris, P.U.F., trad. port. coord. por António Manuel Magalhães, Vocabulário — técnico e crítico — da Filosofia, Porto, Rés, s/d, 2 vols., vol. I., p. 300 ss.. Especificamente para a Dialéctica no Direito, v., por todos, os Archives de Philosophie du Droit, Paris, Sirey, 1984, t. XXIX – dedicado a  «Dialogue, dialectique en philosophie du droit».

[17] MICHEL VILLEY, [Précis de] Philosophie du Droit, I, p. 43 ($ 24).

[18] MICHEL VILLEY, [Précis de] Philosophie du Droit, I, p. 105 ss. ($ 55 ss.).

[19] Cf. JUAN VALLET DE GOYTISOLLO, A Encruzilhada Metodológica Jurídica no Renascimento, a Reforma, a Contra-Reforma, máx. p. 13 ss., e especialmente pp. 36-37.

[20]   Sobre o acordo, cf., no terreno retórico, por todos, CHAIM PERELMAN  (com a colab. L. Olbrechts-Tyteca),  Traité de l'argumentation. La nouvelle rhétorique, 4.ª ed., Bruxelas,  Univers. Bruxelas, 1983, p. 87 ss..

[21] Um interessantíssimo caso de non liquet numa re-criação mito-canónica ficcional de uma estória forense romana pode colher-se em JOSÉ CALVO, La Justicia como relato. Ensayo de una semionarrativa sobre los jueces, 2.ª ed., Málaga, Ágora, 2002, pp. 63-67.

[22] Expressamente neste sentido, MICHEL VILLEY, De L’Indicatif dans le droit,  in «Archives de Philosophie du Droit», XIX, Paris, Sirey, 1974, p. 44.

[23] MICHEL VILLEY, Abrégé de droit naturel classique, in "Archives de Philosophie du Droit", VI, Paris, Sirey, 1961, pp. 25-72, recolhido in Leçons D'Histoire de la Philosophie du Droit, nova ed., Paris, Dalloz, 1962, p. 146.

[24] Cf. PAULO FERREIRA DA CUNHA, in Lições de Filosofia Jurídica. Natureza & Arte do Direito, máx. pp. 15-122.

[25] Cf. um notável eco desse labor de síntese na análise da questão da propriedade na tese de FRANÇOIS VALLANÇON, Domaine et Propriété (Glose sur Saint Thomas D'Aquin, Somme Theologique IIA IIAE QU 66 ART 1 et 2), Université de Droit et Economie et de Sciences Sociales de Paris (Paris II), Paris, 1985, 3 vols.. Em geral, cf. MICHEL VILLEY, Questions de St. Thomas sur le droit et la politique  ou le bon usage des dialogues,  Paris, P.U.F., 1987. V. ainda o também já clássico GIUSEPPE GRANERIS, Contribución tomista a la filosofía del derecho, trad. cast. de Celina Ana Lértora Mendoza, Buenos Aires, Editorial Universitaria de Buenos Aires,1973.

[26] Cf., todavia, outras perspectivas in CARLOS SANTIAGO NINO, Introducción al análisis del derecho, 1.ª ed. esp., Barcelona, Ariel, 1983.

[27] Cf., por todos, o importante testemunho (dirigido aos estudantes de Heidelberg no fim da II Guerra)  de  GUSTAV RADBRUCH, “Cinco Minutos de Filosofia do Direito”, in Filosofia do Direito, 4.ª ed. revista e acrescida dos últimos pensamentos do autor, trad. e prefácios do Prof. L. Cabral de Moncada, Coimbra, Arménio Amado, 1961, vol. II, p. 211 ss..

[28] FRANCISCO PUY, «Tópica Juridica», in Manual de Filosofía del Derecho, coord. Francisco Puy Muñoz e Ángeles López Moreno, Madrid, Colex, 2000, p. 418 ss.. Alguma reinterpretação dos sentidos é da nossa responsabilidade, embora inspirado no autor.

[29] DANIEL A FARBER / SUZANNA SHERRY, Legal Storytelling and Constitutional Law. The Medium and the Message, in Law Stories. Narrative and Rhetoric in the Law, ed. por PETER BROOKS / PAUL GEWIRTZ, New Haven e Londres, Yale University press, 1996, p. 39, remetendo-nos para DAVID KAIRYS, Law and Politics, 52, “George Washington Review”, 243, 244, 247 (1984).

[30] Cf., para as ciências MICHEL SERRES, Le contrat naturel, Paris, François Bourin, 1990, p. 87 ss.; Idem, Les origines de la géométrie, Paris, Flammarion, 1993, trad. port. de Ana Simões e Maria da Graça Pinhão, As Origens da Geometria, Lx., Terramar, 1997, máx. p. 61 ss..  E ainda  PAULO FERREIRA DA CUNHA, Jus et Humanitas, in "Fides. Direito e Humanidades", II, Porto, 1992, p. 7 ss..

[31]   HANS KELSEN, Reine Rechtslehre, trad. port. e prefácio de João Baptista Machado, Teoria Pura do Direito, 4.ª ed.  port., Coimbra, Arménio Amado, 1976, p. 376.

[32] Sobre tópico «Antígona», em geral, além da peça clássica de SÓFOCLES, JOAQUÍN GARCÍA-HUIDOBRO, "Antígona: el descubrimiento del límite", in Naturaleza y Politica, Valparaiso, EDEVAL, 1997; JAVIER HERVADA/Juan ANDRES MUNõZ, Derecho. Guía de los Estudios Universitarios, Pamplona, EUNSA, 1984, p. 149 ss. (Há ed. port., Porto, Rés, s/d); GEORGE STEINER, Antígonas, trad. port., Lx., Relógio D'Água, 1995; STAMATIOS TZITZIS, La Philosophie Pénale, Paris, P.U.F., 1996, máx. p. 69 ss.. Recentemente, GILDA NAÉCIA MACIEL DE BARROS, Agraphoi Nomoihttp://www.hottopos.com/notand3/agrafoi.htm, e JOAQUIN GARCIA HUIDOBRO CORREA, “Los Arquetipos humanos en Antígona”, in Filosofía y Retórica Del Iusnaturalismo:  http://www.bibliojuridica.org/libros/1/381/3.pdf .

[33] RACINE , Les Plaideurs  (v.g. in ed. Théâtre Complet, texte établi, avec préface, notices et notes par Maurice Rat, Paris, Garnier, 1960, p. 179 ss.)

[34] CHARLES DICKENS, Bleak House  (ed. de bolso, v.g.: Wordsworth Classics,  reimp., 1995).

[35] ALBERT CAMUS, Les Justes, La Chute, Caligula (as traduções de Camus, em português, encontram-se sobretudo publicadas pela editora Livros do Brasil. D'A Queda, há ainda ed. de bolso, Verbo/livros RTP; edição fr. — na  "Bibliothèque de la Pléiade", Paris, Gallimard, em 2 vols.).

[36] WILLIAM SHAKESPEARE, The Merchant of Venice (ed. de bolso,  bilingue, trad. de D. Luís de Bragança, Publicações Europa América).

[37] JEAN-PAUL SARTRE, Les mains sales (v.g.in ed. de bolso, com trad. port. de António Coimbra Martins, As Mãos Sujas, Lx., Europa-América, 1972).

[38] DOSTOIEWSKI, Crime e Castigo (ed. port. de bolso: Minerva, 2 vols.; Civilização). Alguma biliografia  crítica recente: por todos, cf. CHRISTIAN TALIN, Ontologie criminelle chez Dostoïevski,  "Revue Internationale de Philosophie Pénale et de Criminologie de l'Acte, n.º 7-8, pp. 7-19; MARLÈNE ZARADER, La dialectique du crime et du châtiment chez Hegel et Dostoïevski, "Revue de Métaphysique et de Morale", n.º 3, juillet-septembre 1976, Paris, Armand Colin, pp. 350-375.

[39] Alguma bibliografia crítica recente: por todos, cf. DAVID J. A. CLINES, The Book of Job, in The Oxford Companion to the Bible, ed. by Bruce M. Metzger / Michael D. Coogan, New York/Oxford, Oxford University Press, 1993, p. 368 ss.; introdução e notas do livro na edição La Bible de Jérusalem, 14.ª ed., Paris, Cerf, 1994. E especialmente, com abundante bibliografia, o clássico SAMUEL TERRIEN, Job, Delachaux & Niestlé, Neuchâtel, 1963.

[40] Sobre o liberalismo, e suas modalidades, por todos, entre nós, JOSÉ MANUEL MOREIRA, Liberalismos: entre o conservadorismo e o socialismo, Lx., Pedro Ferreira, 1996; ORLANDO VITORINO, O Neo-Liberalismo, in “Escola Formal”, n.º 6, Junho 1978, p. 5 ss.; HENRIQUE BARRILARO RUAS,  Liberalismo, in “Pólis. Enciclopédia Verbo da Sociedade e do Estado”, vol. III, Lx./São Paulo, 1985, cols. 1090-1096.

[41] DANIEL A FARBER / SUZANNA SHERRY, Legal Storytelling and Constitutional Law. The Medium and the Message, p. 37.

[42] Ibidem, pp. 37-38.

[43] RAYMOND TROUSSON, Voyages aux Pays de nulle part. Histoire littéraire de la pensée utopique, 2.ª ed., Bruxelas, Editions de l'Université de Bruxelles, 1979, máx. p. 260 ; PAULO FERREIRA DA CUNHA, Constituição, Direito e Utopia. Do Jurídico-Constitucional nas Utopias Políticas, Coimbra, 'Studia Iuridica', Boletim da Faculdade de Direito, Universidade de Coimbra/Coimbra Editora, 1996, p. 110 et passim.

[44] Cf., especialmente, JOSÉ CALVO, La Justicia como Relato, 2.ª ed., Málaga, Ágora, 2002 (1.ª ed.  1996).

[45] Porque também as tem não jurídicas, como, ainda recentemente, JOSÉ CALVO GONZÁLEZ, Uma mano de tinta, Málaga, Deputación Provincial de Málaga, 2002.

[46] PAULO FERREIRA DA CUNHA, Lições Preliminares de Filosofia do Direito, Coimbra, Almedina, 2002, pp. 99-105.

[47] Além de UMBERTO ECO, A Ilha do Dia de Antes, v. JOSÉ CALVO, La Justicia como Relato, p. 60.

[48] Cf. PAULO FERREIRA DA CUNHA, La dialectique, méthode du juriste, in “Les Visages de la Loi”, org. de Catherine Samet et Stamatios Tzitzis, Paris, L’Archer, diffusion P.U.F., 2000, pp. 113-129.

[49] MICHEL BASTIT, Naissance de la Loi Moderne, Paris, P.U.F., 1990, p. 10 (sublinhado nosso).