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  Religião e Liberdade – a “Revanche de Deus”, Neo-Maniqueísmo e Fanatismo Religioso [1]

 

“Fanático é aquele que não muda de idéia nem de assunto!” (Winston Churchill) [2] “O povo do gueto mandou avisar que vai rolar a festa, vai rolar” (“Festa”, na interpretação de Ivete Sangalo)“O fanatismo consiste em redobrar os esforços quando os objetivos já foram esquecidos. (George Santayana) [3]

 

Jean Lauand
Prof. Titular FEUSP
IJI – Univ. do Porto
jeanlaua@usp.br

Adendo
Abro este espaço para dar voz a pessoas e instituições que me escreveram
para apontar correções ou críticas a este artigo

Introdução

Neste estudo, vamos tratar de alguns aspectos do fanatismo religioso contemporâneo [4] . Sem entrar propriamente na questão da conceituação formal do fanatismo, examinaremos alguns mecanismos atuais e algumas de suas características básicas, que são, no fundo - parece-nos -, perversões quanto à reta concepção de duas atitudes humanas fundamentais para a grande tradição de pensamento ocidental: a prudentia e a temperantia, classicamente duas das quatro virtudes cardeais.

Como veremos, a prudentia, a principal das virtudes cardeais e garantia da liberdade, é simplesmente suprimida pelo fanatismo religioso contemporâneo, e a temperança, a menor das virtudes cardeais, encarada de modo distorcido, passa a ocupar o primeiro lugar, deixado vago pela supressão da prudentia. Esse processo é antigo e conhecido: em muitos aspectos é típico da velha heresia do maniqueísmo. Mas como hoje assume formas novas optamos por designá-lo por neo-maniqueísmo.

O que está por trás dos novos fanatismos religiosos - católicos, evangélicos, espíritas, muçulmanos etc. - é uma antropologia errada, que leva também a uma falsa doutrina das virtudes [5] . A base dos fanatismos é o medo: medo à liberdade, medo à vida, medo à cultura, medo, enfim, ao mundo, que é encarado de um modo suspeito e hostil.

O principal perigo dos fanatismos é sua pretensão totalizante. O fanatismo religioso não conhece limites e transfere a categoria de absoluto, que deveria ser apanágio de Deus, às instâncias temporais, políticas, culturais etc.: tudo passa a ser regulado pela onipotência de Deus, pela mediação infalível e iluminada do líder, aiatolá ou guru. O medo, tornado um absoluto, passa a reger perigosamente as vidas dos que se deixam seduzir pelo fanatismo religioso.

Não deixaremos de contemplar, ainda que de passagem, um dos meios principais pelos quais se veiculam a repressão e as intolerâncias religiosas: a Internet. A mídia eletrônica, pela impessoalidade (e até pelo anonimato que possibilita...), é um autêntico caldo de cultura para fanatismos, fundamentalismos etc. Freqüento, há anos, dezenas de listas de discussão da Net e não resisti à tentação de recolher, neste estudo, uma ou outra amostra, com a linguagem informal (e nada acadêmica) típica desse meio.

O maniqueísmo básico

A palavra “maniqueísmo” é empregada hoje amplamente como indicadora de uma divisão irredutível entre dois setores opostos e excludentes: o do bem e o do mal. Bastaria este enunciado para advertirmos o fascínio reducionista que uma tal simplificação pode exercer sobre espíritos pouco abertos, de modo especial sobre jovens com insuficiente preparação intelectual. Não deixa de ser inquietante, por exemplo, o recente surgimento da gíria: “do bem” (Fulaninho é “do bem”), e seu contraponto: “do mal” [6] . Esta primeira característica do conceito “maniqueísmo” dá conta de alguns aspectos do fanatismo: quer se trate de uma congregação de crentes ou de uma torcida organizada [7] : é o Narciso que acha feio o que não é espelho...

Este uso de “maniqueísmo” como dualismo é certamente correto, mas incompleto. Mais importante, talvez, para a compreensão do fanatismo religioso contemporâneo, sejam duas outras notas do conceito de maniqueísmo. 1) A pretensão reducionista de fornecer critérios práticos e operacionais para distinguir e rotular os dois bandos: o do bem e o do mal. 2) E a atribuição de um caráter “do mal” a “o mundo”, como oposto de Deus; reservando-se o caráter “do bem” a um seleto grupo de iluminados, separados, “santos”, que não se contaminam com o mundano. Examinaremos também a pretensão fanática de absorção do temporal pelo religioso. Mas comecemos por examinar as condições psicológicas básicas do fanatismo.

As condições de surgimento do fanatismo

O fanatismo não surge do nada. O perigo do fanatismo são as bases reais que o possibilitam e a sutil extrapolação da verdade por uma hábil e calculada retórica que - insisto, a partir de certas verdades - descamba para o exagero e para o erro. Naturalmente, isto só pode ser feito fora do âmbito estritamente racional e lógico... de preferência em ambientes de massa, altamente emotivos (embalados por hinos, gestos e linguagens próprias do “grupo”), e com algum tipo de apelo absoluto: seja o “Deustschland über alles”, o alviverde imponente, o “Allahu Akbar” ou a “entrega incondicional a Jesus” [8] ...

O fanatismo floresce sobretudo no âmbito do ressentimento, da revanche, da superação de uma humilhação. E ainda mais se os ressentidos julgam que se trata de uma humilhação injusta e indevida, sobretudo em contraste com um período de esplendor perdido e que deve ser recuperado a todo custo. O quadro se completa se, além disso, for possível identificar um inimigo (real ou imaginado), responsável pelo atual período de decadência.

Não sejamos ingênuos. Não convém esquecer, por exemplo, que Hitler não era meramente um desequilibrado que por métodos de terror enganou o povo alemão. Hitler apresentava-se como a real esperança de uma Alemanha humilhada e ressentida pelo esmagador Tratado de Versailles que lhe fora imposto (cabe lembrar que, em certos meios cristãos, Hitler era bem visto: por exemplo, Julián Marías conta em suas memórias que na Espanha oficialmente católica pós-guerra civil: “Hitler e Mussolini eram os ‘salvadores da civilização ocidental’ e piedosas senhoras punham o retrato de Hitler ao lado da imagem de Nossa Senhora do Pilar. A encíclica de Pio XI Mit brennender Sorge, contra os erros e perigos do nacional-socialismo, era proibida” [9] ; para aquele catolicismo oficial, o Führer era visto até mesmo como o “salvador da cristandade”) [10] .

Já em nossos dias, também ante a desesperadora situação vivida pelos palestinos e tantas humilhações históricas dos árabes, Bin Laden apresenta seu projeto como a recuperação do esplendor e do poderio da civilização muçulmana dos tempos do califado de Bagdad e de Al-Andalus.

Do mesmo modo, em outros campos, um Palmeiras na segunda divisão, uma Argentina falida, na qual os prêmios de programas de auditório de televisão são simplesmente empregos de carteira assinada... apresentam condições ideais para a irrupção de fanatismos, desde que surja o líder carismático (no sentido weberiano) como a possibilidade concreta de “virar o jogo”.

Quanto mais glória, quanto mais história, quanto mais orgulho tiver havido antes da decadência, quanto mais “indevida” for a situação de miséria atual, tanto mais êxito fácil alcançará o líder que souber canalizar os ressentimentos da massa que, guiada pela retórica e pelos resultados espetaculares da seita ou do movimento, não se importará muito com a supressão da liberdade e a falta de ética dos métodos utilizados. Afinal, o grupo de eleitos está numa missão e eles são os “autênticos fiéis”, a militância de Deus: numa pesquisa feita com torcidas organizadas, na época da máxima violência, estas eram unânimes em opinar massivamente que, digamos, a Mancha Verde era o que realmente importava, o Palmeiras era secundário; do mesmo modo, o fiel comum é visto como tíbio e inconseqüente.

Há alguns ingredientes que podem catalisar e agudizar essa consciência de revanche de Deus por parte de instituições radicais: o anúncio, mais ou menos velado, da proximidade do fim do mundo - uma constante nos fanatismos cristãos, embora o próprio Jesus Cristo, quando perguntado, alegou não saber quando ocorreria (Mt 24, 36) -, a propensão a difundir disparatadas “profecias” e “aparições” que “confirmem” os “sinais” de que o fim dos tempos está muito próximo e o “Anticristo” já está circulando por aí... sinais que, como era de esperar, incluem a “imoralidade nunca vista” dos nossos tempos. É o ressentimento contra a secularização, a mídia, o mundo, que erradicaram o sagrado e o hostilizam...

Junte-se a isto uma tota ausência dos padrões mais elementares do rigor intelectual e a vontade dos seguidores de aceitar qualquer bobagem apocalíptica e terems o quadro completo.

Mantenho em meu site pessoal, uma página especializada na qual recolho muitas dessas tolices “apocalípticas”: http://jean_lauand.tripod.com/page13e.html . Um exemplo, ocorrido em outubro de 2002: uma importante rádio católica publicou em seu site uma ridícula “Profecia de São Nilo”. São Nilo é um personagem do século V que nunca fez profecia alguma, muito menos prevendo o fim do mundo para o nosso tempo. Além de inúmeros outros disparates, a tal “profecia” já começava com a seguinte pérola: “Depois do ano 1900, por meados do século XX, as pessoas se tornarão irreconhecíveis...”. Se me permitem, prosseguirei reproduzindo uma das mensagens (jocosa, mas não irreal...) do debate com os apocalípticos em listas da Net, intitulada “A incrível Taty”:

Pelo menos os aparicionistas tupiniquins alimentam nosso senso de humor! A Taty é uma delas. Vinte aninhos, camiseta de Jesus, inteligente, cultura acima da média para a idade, mas aparicionista como ela só! Ela mesma já andou tendo (acho, a gente nunca sabe se está interpretando bem a linguagem cifrada deles...) uma ou outra aparição particular...

Para vocês terem uma idéia do encanto de pessoa que é a Taty, uma vez ela veio com um papo esquisito (ouvido numa massiva pregação para jovens) de que o Papa teria tido um arrebatamento profético em Denver e então largou o discurso e, tomado pelo Espírito Santo, disse: “Vocês, jovens, vão testemunhar a segunda vinda de Cristo!!” (o tom de unção, a fechada de olhos com que a Taty conta isto é imperdível: converte qualquer um!)

Eu, já farto do papo do fim do mundo para já, apresentei-lhe triunfante o texto do próprio Papa na Tertium Millenium Adveniente (N. 58): "Os jovens se souberem seguir o caminho que Ele indica, terão a alegria de dar o próprio contributo para a presença d'Ele no próximo século e NOS SUCESSIVOS, até à conclusão dos tempos"

A Taty não se abalou e respondeu de sem-pulo: “E daí? Serão os séculos DEPOIS do fim do mundo”.

Bom, apresentada a figura, a Taty ontem veio me cobrar (e com ameaças veladas de castigo dos céus...) que eu andava questionando a profecia de São Nilo, que ela tinha visto em diversos sites aparicionistas (dados completos em: http://jean_lauand.tripod.com/page13e.html )

Citei para a Taty a sentença de João XXIII: “Gozado, Nosso Senhor anda falando com um monte de gente, e a mim, Seu vigário, Ele não diz nada”. Ela respondeu que ser Papa não tem nada que ver com... e fez um gestinho com o indicador, mostrando a comunicação entre o Céu e a terra...

Aí, resolvi jogar pesado. Fui ao Le Goff e mostrei o texto em que o famoso medievalista explica que a noção de tempo dividido por séculos só aparece em meados do século XIII e só será usada para valer perto de 1600. Logo, quando São Nilo, no século V, começasse a tal “profecia” falando: “Depois do ano 1900, por meados do século XX...” estaria usando, anacronicamente, conceitos que só iriam vigorar mil anos depois...

A Taty, sempre imperturbável, ajuntou triunfante de imediato: “Ele é profeta e tira esses detalhes de letra...”

Um dos aspectos mais assustadores no fanatismo religioso é o fato de que os iluminados, precisamente porque se assenhorearam da verdade absoluta e são os procuradores de Deus para todas as questões humanas, nunca reconhecem um erro e não hesitam em valer-se da mentira para caluniar aqueles que eles julgam inimigos da causa. A campanha contra Harry Potter, que comentaremos mais abaixo, é amplamente ilustrativa a esse respeito.

A autonomia da realidade temporal: o catolicismo e o Islam

Se todo fanatismo abdica do pensamento, pois seu programa apresenta-se em premissas e slogans “evidentes” [11] e indiscutidos, o fanatismo religioso não precisa transformar em absoluto sua causa (pátria, time, partido etc.), pois, no caso, o absoluto já vem dado: Deus. Absoluto e totalitário: o líder religioso, em nome de Deus, interpreta toda a realidade temporal para seus seguidores. A abolição da autonomia da realidade temporal, sua absorção (teórica e/ou prática) pelo religioso, é uma característica definidora do fanatismo.

É oportuno, neste sentido, recordar as diferenças teóricas entre o catolicismo e o Islam quanto à realidade secular [12] . O catolicismo contemporâneo, teoricamente, é a religião que mais defesas teria contra esses fanatismos. O Concílio Vaticano II, por exemplo, afirma categoricamente a autonomia das realidades temporais; uma afirmação que não é tão pacífica no Islam.

Vale a pena analisar essas diferenças à luz de um interessante caso concreto, emblemático: o problema da herança, responsável historicamente pelo nascimento da ciência da Álgebra, no seio do Islam. A Álgebra nasceu, pouco tempo depois do Islam, pela necessidade religiosa de, literalmente, equacionar a vontade de Deus expressa no Alcorão.

Em seu estudo "L'Islam et l'épanouissement des sciences exactes" [13] , Roshdi Rashed mostra a conexão entre Alcorão, ciência e vida prática, precisamente com a Álgebra: 'ilm al-fara'id (ciência da partilha, da herança). Os próprios juristas referem-se à Álgebra como hisab al-fara'id, o cálculo da herança, segundo a lei corânica. E aí temos já um exemplo notável do condicionamento histórico-cultural, próprio do Islam. Trata-se da sólida união que se dá entre a ordem religiosa e a temporal.

Por coincidência, o mesmo problema da herança (para o muçulmano, sob a legislação direta de Allah) é proposto a Cristo. Cristo, porém - que declara algo impensável na visão muçulmana: "A César o que é de César; a Deus o que é de Deus" -, recusa-se a estabelecer concretamente os termos da herança. Trata-se de um episódio evangélico aparentemente intranscendente. "Um da multidão" aproxima-se de Cristo e faz um pedido: que Jesus use Sua autoridade para convencer seu irmão a repartir com ele, de modo justo, a herança (cf. Lc 12, 13). Para surpresa daquele homem (e contrariando a mentalidade antiga e a oriental, que uniam o poder religioso a questões temporais...), Cristo recusa-se terminantemente a intervir e responde: "Homem, quem me estabeleceu juiz ou árbitro de vossa partilha?" (Lc 12, 14). O máximo a que Cristo chega é a uma condenação genérica da cobiça, contando a esses irmãos a parábola do homem rico cujos campos haviam produzido abundante fruto e com o célebre convite à contemplação dos lírios: "Olhai os lírios do campo...".

Bem diferentes são as coisas no mundo muçulmano. Roger Garaudy, no capítulo "Fé e Política", mostra como a tawhid (unidade, dogma central islâmico) muçulmana se projeta sobre a política, o direito e a economia: "Deus é o único proprietário e ele é o único legislador. Tal é o princípio de base do Islam em sua visão de unidade (tawhid)" [14] . Garaudy tem razão ao afirmar que não se dá no Islam (não há sacerdotes), uma teocracia clerical de tipo ocidental, mas é inegável, também, que a visão muçulmana tem favorecido uma forte e arraigada teocracia própria e não por acaso o chefe político se intitula ayyatullah, "sinal de Deus" [15] .

Seja como for, o fato é que, na questão da herança, o Alcorão (4, 11 e ss.) diz concretamente:

"Allah vos ordena o seguinte no que diz respeito a vossos filhos: que a porção do varão equivalha à de duas mulheres. Se estas são mais de duas [16] , corresponder-lhes-ão dois terços da herança. Se é filha única, a metade. A cada um dos pais corresponderá um sexto da herança, se deixa filhos; mas se não há filhos e lhe herdam só os pais, um sexto é para a mãe. Etc., etc.". E conclui: "De vossos ascendentes ou descendentes, não sabeis quais vos são os mais úteis. Isto compete a Allah. Allah é onisciente, sábio".

Contrastemos com o catolicismo. Naturalmente, para um católico, o mundo é criação de Deus e obra de sua Inteligência: o mundo foi criado pelo Verbum e, portanto, conhecer o mundo é conhecer sinais de Deus. E mais: cada criatura é porque é criada inteligentemente por Deus, participa do ser de Deus. O Deus cristão é Emmanuel, Deus conosco, e, pela Encarnação, a eternidade de Deus ingressa na temporalidade: Cristo encabeça, re-capitula (como diz o Catecismo da Igreja Católica) toda a realidade criada.

Daí que a Igreja defenda tenazmente a lei moral, lei natural da dignidade do ser do homem, que lhe foi conferida pelo ato criador do Verbum. Mas, precisamente por essa mesma concepção teológica, o cristão pode afirmar a mais decidida autonomia das realidades temporais: porque o mundo é obra do Verbum, a realidade temporal tem sua verdade própria, suas leis próprias, naturais, descartando o clericalismo [17] .

Esta é a doutrina oficial da Igreja, que rejeita tanto o clericalismo, que pretende absorver a realidade temporal pela religião, quanto o laicismo, que pretende afastar Deus da realidade social. Assim, na mesma passagem (4, 36) em que a Constituição Dogmática sobre a Igreja Lumen Gentium (Vaticano II) [18] afirma: "nenhuma atividade humana pode ser subtraída ao domínio de Deus", ajunta: "é preciso reconhecer que a cidade terrena, a quem são confiados os cuidados temporais, se rege por princípios próprios". Do mesmo Vaticano II é a Constituição Pastoral Gaudium et Spes, que afirma: "Se por autonomia das realidades terrestres entendemos que as coisas criadas e as mesmas sociedades gozam de leis e valores próprios, a serem conhecidos, usados e ordenados gradativamente pelo homem, é absolutamente necessário exigi-la. Isto não é só reivindicado pelos homens de nosso tempo, mas está também de acordo com a vontade do Criador. Pela própria condição da criação, todas as coisas são dotadas de fundamento próprio, verdade, bondade, leis e ordem específicas. O homem deve respeitar tudo isto, reconhecendo os métodos próprios de cada ciência e arte" (1, 3, 36) [19] .

Em extremo sentido contrário, um ayyatulah Khomeini [20] pôde afirmar:

"Costuma-se dizer que a religião deve ser separada da política e que as autoridades religiosas não se devem imiscuir nos assuntos de Estado. (...) Tais afirmações só emanam dos ateus: são ditadas e espalhadas pelos imperialistas. A política estava separada da religião no tempo do Profeta? (Que Deus o abençoe, a Ele e aos seus fiéis)" (p. 27).

"O Islam tem preceitos para tudo o que diz respeito ao homem e à sociedade. Esses preceitos procedem do Todo-Poderoso e são transmitidos pelo seu Profeta e Mensageiro. (...) Não existe assunto sobre o qual o Islam não haja emitido seu juízo" (p. 19).

"A instauração de uma ordem política secular equivale a entravar o progresso da ordem islâmica. Todo poder secular, seja qual for a forma pela qual se manifesta, é forçosamente um poder ateu, obra de Satanás. É nosso dever exterminá-lo e combater seus efeitos. (...) Não temos outra solução senão derrubar todos os governos que não repousam nos puros princípios islâmicos, sendo, portanto, corruptos e corruptores (...). É esse o dever, não só dos iranianos, mas de todos os muçulmanos do mundo." (p. 23).

Naturalmente, esses princípios teóricos não têm correlação necessária com a prática, na qual pode-se encontrar muçulmanos tolerantes e católicos fanáticos. Sobre estes, ainda falaremos, mas já adianto um depoimento. O aiatolá Khomeini não está muito distante de certos clericalismos católicos, sejam eles de esquerda ou de direita. S. Tomás de Aquino, agudamente, fala daqueles que, pensando ter fé, erigem em “dogmas de fé” seus próprios juízos e opiniões... Antológico, neste sentido, é o sermão no qual o bispo tradicionalista D. Marcel Lefebvre anuncia sua separação da Igreja de Roma, por não concordar com a liberdade do Vaticano II:

"É possível aceitar o Concílio, quando em nome do concílio dizeis que é preciso destruir todos os Estados católicos? Que não precisamos mais do Estado católico, logo não mais Estados onde reine Nosso Senhor Jesus Cristo? Não, não é mais possível (...). Vede a imagem da República Argentina. Em que estado se encontrava, ainda há dois meses, uma anarquia completa... Agora [após o golpe do ditador Gal. Videla, nota nossa], tem um governo de ordem que possui princípios, autoridade (...) Eis o reino de Nosso Senhor Jesus Cristo que nós queremos" [21] .

É a tendência àquilo que o filósofo espanhol Julián Marías (constantemente perseguido durante toda a ditadura clerical...) qualificou como "catolicismo insaciável" [22] . O autor denuncia um perigo característico da mentalidade clerical. Há alguns senhores na Igreja, diz Marías, que não se contentam com que alguém seja católico; para eles não basta que se creia nos artigos da fé, que se recebam os sacramentos e se procure, na medida do possível, cumprir os dez mandamentos. É necessário, além disso, opinar que o único catolicismo autêntico é o deles, é necessário adotar certas posições políticas, com as quais não se sentem solidários os católicos do resto do mundo; é necessário crer em uma série de “dogmas” - que vão da política à pedagogia, passando pelas artes, ciências, cultura etc. -e que nada têm que ver com o catolicismo.

É óbvio que o perigo da disfunção da insaciabilidade não diz respeito somente ao catolicismo, mas a todas as religiões.

A teoria da decisão: a virtude cardeal da Prudentia, defesa contra o fanatismo

Precisamente porque é na prática que tudo se resolve, a primeira investida das seitas é contra a virtude da Prudentia, a arte de decidir.

Para bem entender o grandioso significado da Prudentia [23] , virtude cardeal que é o melhor antídoto contra o fanatismo, vale a pena tentar conhecer o seu significado clássico.

Baseados em quê tomamos nossas decisões? A arte de decidir bem, reta e adequadamente, era denominada pelos antigos Prudentia. Originariamente, a virtude da Prudentia nada tem a ver com a encolhida cautela a que, hoje, chamamos prudência; Prudentia (a legítima, a verdadeira) é, pura e simplesmente, a arte de decidir corretamente.

Estudando o tratado De Prudentia de Tomás de Aquino, deparamos com uma doutrina maravilhosa e riquíssima e, além do mais, de extrema atualidade. Encontramos, por exemplo, que a Prudentia é uma virtude intelectual; seu princípio é a inteligência reta, o olhar límpido capaz de ver a realidade e, com base na realidade vista, tomar a decisão boa, para “fazer a coisa certa”.

A inteligência da Prudentia é uma virtude e não se confunde com dotes de inteligência, digamos, de Q.I., porque só o homem bom consegue ter a inteligência que não distorce o real (pense-se, por exemplo, na dificuldade de ver a realidade por conta de preconceitos, inveja, egoísmo etc.). Virtude da inteligência, mas da inteligência do concreto: a Prudentia não é a inteligência que versa sobre teoremas ou princípios abstratos e genéricos, não!; ela olha para o “tabuleiro” de nossas decisões concretas, do aqui e agora, e sabe discernir o lance certo, moralmente bom.

Entre muitos outros pontos geniais (o papel da memória na Prudentia, por exemplo) da doutrina clássica, destacaria aqui seu critério para saber o que é bom: a realidade! Saber discernir, no emaranhado de mil possibilidades que esta situação me apresenta (que devo dizer a este aluno?, compro ou não compro?, devo responder a este mail? etc.), os bons meios concretos que me podem levar a um bom resultado e, para isto, é necessário um único requisito: ver a realidade.

Mas este ver a realidade (por mais assintótico que possa ser, como em toda virtude) é só uma parte da Prudentia; a outra parte, ainda mais decisiva (literalmente), é transformar a realidade vista em decisão de ação: de nada adianta saber o que é bom, se não há a decisão de realizar este bem...

A prudentia é assim a arte de exercer bem a liberdade.

Os fanáticos de nosso tempo, que ignoram o verdadeiro significado da clássica Prudentia, atentam contra ela de diversos modos: em sua dimensão cognoscitiva (a capacidade de ver o real, por exemplo aumentando o ruído - exterior e interior – que nos impede de “ouvir” o real) e em sua dimensão preceptiva: o medo de enfrentar o peso da decisão, que tende a paralisar os imprudentes (pois é, a Prudentia toma corajosamente a decisão boa!).

É dessa dramática imprudência da indecisão que tratam alguns clássicos da literatura: do "to be or not to be..." de Hamlet aos dilemas kafkianos (o remorso impõe-se a qualquer decisão), passando pelo “Grande Inquisidor” de Dostoiévski, que descreve "o homem esmagado sob essa carga terrível: a liberdade de escolher" e apresenta a massa que abdicou da prudentia e deixa-se escravizar, preferindo "até mesmo a morte à liberdade de discernir entre o bem e o mal". E, assim, os subjugados declaram de bom grado aos tiranos: "Reduzi-nos à servidão, contanto que nos alimenteis".

Já se pode avaliar, assim, a relação entre abolição da prudentia e fanatismos. A grande tentação da imprudência (sempre no sentido clássico) é a de delegar a outras instâncias o peso da livre decisão que, para ser boa, depende só da pessoal visão da realidade.

Uma das mais perigosas formas de renúncia a enfrentar a realidade (ou seja, a renúncia à Prudentia) é trocar essa fina arte de discernir o que a realidade exige, naquela situação concreta, por critérios operacionais rígidos, como num “Manual de escoteiro moral”. É bem o caso do radicalismo de certas propostas religiosas: em vez de se dar ao trabalho de discernir os casos, simplifica-se grosseiramente tudo: é pecado e pronto! Ou na formulação que entrou em voga com a novela “O Clone”: Haram! (voltaremos a este tema quando tratarmos do neo-maniqueísmo).

Certamente, há absolutos na moral (não existem homicídios ou adultérios bons); refiro-me aqui à indevida absolutização do relativo... O regime Taliban, por exemplo, pretendia tornar dispensável o discernimento de cada fiel, por meio de um extenso e detalhado sistema de normas, que determinava inclusive as formas verbais de que a torcida podia se valer num jogo de futebol: ante a alegria do gol, a exclamação devia ser: “Al-hamdu lillah” (louvor a Deus); ante uma roubada do juiz, Allahu Akbar (“Deus é grande”) e, em qualquer caso: Allah (qualquer palavrão estava proibido pelo Ministério do Vício e da Virtude).

Mesmo sem chegar a extremos como o da criação de um Ministério do Vício e da Virtude, a tentação é a de tornar dispensável a virtude pessoal da prudentia: deixando tudo definido, previsto e operacionalizado num código a ser escrupulosamente consultado e obedecido.

Lembro-me aqui daquele sargento que comandou a operação de resgate, no Parque Nacional do Itatiaia, de um amigo meu, alpinista de primeira escalada, que acabou por ficar sinucado numa estreita pedra, sem poder sair. O sargentão do resgate subiu a uma pedra paralela e chegou a uma distância de 3 ou 4 metros do meu amigo, que com a chegada do socorro estava relativamente sereno. Tomando o megafone (desnecessário), com a melhor psicologia de caserna, o sargento berrou a ordem: “Vítima, não entre em pânico, vítima!” (pois a primeira regra do “Manual de Resgate” é: “Faça com que a vítima não entre em pânico”...).

Para além de leis secas, rigidezes e literalidades, as religiões correm ainda outro risco de imprudentia: no afã de libertar-se do peso da responsabilidade de decidir, o crente transfere o “abacaxi” para Deus (ou para o sobrenatural, ou para o iluminado pastor da comunidade). Certamente, Deus pode inspirar-nos em nossas dificuldades de decisão e a Ele devemos humildemente recorrer para pedir luzes e discernimento. O problema, nisso como em tudo, são os abusos.

Todo aquele que crê, dizíamos, está legitimado em pedir luzes a Deus para suas decisões (é, segundo a doutrina católica, “conselho”, dom do Espírito Santo); o que não se pode é avalizar com a autoridade divina posições meramente temporais. Seja como for, a iluminação sobrenatural deve ser, caso queiramos fazer uso público dela, de tal ordem que torne visíveis para qualquer um a realidade de que se trata (é isso que se pede naquele verso do mais clássico hino ao Espírito Santo, o “Veni Creator”: Mentes tuorum visita, visita as mentes dos que são teus...). Outra atitude degeneraria em tirania, em teocracia.

Um exemplo nos ajudará a entender. O exemplo nos vem da própria Bíblia, do capítulo 13 do profeta Daniel. Dois anciãos, juízes (iníquos) de Israel, repelidos pela bela Susana em seus desejos adúlteros, vingam-se levantando contra ela o falso testemunho de adultério: “Vimos um jovem assim, assim, adulterando com ela no jardim etc.”. Quando a multidão já está preparada para aplicar à casta Susana a pena de morte por apedrejamento, Deus inspira ao jovem Daniel (cujo nome, aliás, significa, juiz de Deus) a defesa da inocente. Mas Daniel não afirma em nenhum momento sua iluminação sobrenatural. Apresenta argumentos humanos, que todos podem comprovar e evidenciam a injustiça daquele processo: interroga em separado, diante do povo, os juízes iníquos: “Debaixo de que árvore ela estava adulterando?” e ante a disparidade de respostas, torna-se evidente que estavam mentindo.

É muito perigoso o uso indevido da religião em questões meramente temporais [24] . O Brasil inteiro chorou o desaparecimento de Chico Xavier, uma figura boníssima e um exemplo de humildade e de amor. Mas esse grande líder espírita protagonizou alguns episódios curiosos e que suscitam inquietante reflexão.

Num processo por homicídio, em 1985, um juiz de Campo Grande aceitou que a defesa apresentasse “cinco cartas psicografadas pelo médium Chico Xavier, nas quais a vítima dá a entender que a arma disparou acidentalmente. O júri o absolveu, mas a sentença foi anulada por recurso da promotoria, que quer condenação por homicídio doloso” (“Marido das cartas psicografadas volta a júri”, O Estado de S. Paulo, 6-4-90, p. 16).

Em outro júri de homicídio, um juiz de Gurupi-GO, em 1987, convocou Chico Xavier como testemunha (não como testemunha ocular, mas mediúnica!!), pelo fato de o médium ter recebido mensagem do além da pretensa vítima (“Testemunha do crime: o médium”, O Estado de S. Paulo, 25-3-87, p. 17). E o "Jornal Espírita" comentou essa notícia em matéria de primeira página: "Haverá de chegar um tempo em que os espíritos poderão vir do 'lado de lá' - com o aval das autoridades - consertar tantas injustiças" (Ano XI, No. 143, Maio de 1987).

Outro tanto poderia ser questionado a propósito da prática de cirurgias por médiuns, o que equivale a uma dispensa do diploma de médico. Etc.

Agradeçamos que os espíritos nos orientem sobre questões de foro íntimo ou, então, tal como no caso do profeta Daniel, nos apontem as razões - visíveis para todos - que possam nortear nossas decisões prudentes. Mas que, pelo menos, não pretendamos extrair conseqüências de nossas inspirações religiosas pessoais que possam afetar o direito dos demais.

Adélia Prado, com um realismo que é a defesa do bom senso da Igreja, diz-nos em sugestivo trecho de Filandras:

"Tia Zina a esta hora começa a ficar insuportável, vai me aporrinhar para valer. Mudei em alguma coisa, sim. Tempos atrás pedia, tira meu medo, Deus. Hoje, digo, estou com medo, meu Pai, me abraça (...) Sabina deixou um recorte de jornal debaixo da minha porta: APARIÇÃO DE NOSSA SENHORA EM MINAS GERAIS! É gozação dela comigo, porque a vidente tem o mesmo nome meu e ela pensa que eu vou sair correndo para ver a aparição. Boba. Nossa Senhora está na minha casa é me esperando, pra me ajudar a dar banho em tia Zina, sem fazer careta. Sabina emprega muito mal a palavra 'mística'. Tivesse ela que dar banho em tia Zina, descobriria com quanta água e sabão se faz um santo. Falo sem soberba, não quero menos" [25] .

A base dos fanatismos, nunca é demais insistir, é o medo, sobretudo o medo à liberdade. Daí sua pretensão de erradicar a prudentia e, portanto, o risco da liberdade pessoal.

Sonham, por exemplo, com um programa que filtrasse toda a pornografia na Internet. Recentemente, conversando com um líder de uma dessas instituições, empenhado em obter o tal programa, argumentei que seria tecnicamente impossível filtrar imagens pornográficas (como o programa iria distinguir a lasciva Joana Prado da Madre Teresa de Calcutá?), mas que este filtro já existia e se chama liberdade. Naturalmente, ele não levou a sério o que eu disse, ainda mais quando citei Julián Marías (aliás, durante longos anos membro do seletíssimo Pontifício Conselho de Cultura):

De modo que, por fim, a liberdade - como tantas vezes - é o remédio. Já disse muitas vezes - falando de coisas mais de tipo político, mas que se podem generalizar e transportar a estratos muito mais profundos e muito mais importantes do que a política -, que a liberdade - que tem inconvenientes, que tem males, sem dúvida nenhuma - se cura não suprimindo a liberdade mas sim com mais liberdade. Que a exerçam todos, não que a exerçam uns quantos em nome dos demais, porque daí se trata de manipulação. Que a exerçam todos, que cada pessoa seja livre, seja realmente livre e aja de acordo com sua liberdade pessoal e então as coisas se equilibram… Persistem as dificuldades, persistem as confusões, persistem os conflitos - a vida humana é conflituosa -, mas afinal se produz pelo menos um incremento da autenticidade, um incremento da veracidade. (“A Moralidade Coletiva”, Videtur 5, 1998 - www.hottopos.com/videtur5/a_moralidade_coletiva.htm ).

Como aquele meu interlocutor prefere a censura e a repressão, recomendou-me uma página de um “site de família cristã”, que traz um enorme e complicadíssimo material de programas e downloads para “substituir” a liberdade. E, segundo esse “site cristão”, o mais indicado programa de filtro é um tal de We-Blocker. Ao explicar, como funciona o We-Blocker, o site convida as famílias cristãs a procurarem diligentemente os sites mais escabrosos, a visitarem esses sites nocivos, para que possam enviar seus net-endereços para integrar a lista do bloqueador!!! Vale a pena ler a proposta do prórpio site cristão (os grifos são nossos):

O We-Blocker mantém uma "lista-negra" de sites bloqueados. Você pode adicionar na lista os endereços que julgar indesejados.

O programa pede sua autorização para fazer uma atualização automática dessa lista, via internet, com base em uma lista oficial mantida pela empresa com contribuições de internautas do mundo inteiro.

Você também pode ajudar os outros pais compartilhando sua lista de sites não recomendáveis. Funciona assim: ao bloquear um site, você é encorajada a enviar essa informação à equipe do We-Blocker que faz uma revisão e depois o acrescenta na lista central.

(www.portaldafamilia.hpg.ig.com.br/Artigos/artigo051.htm#weblocker)

Temperança e neo-maniqueísmo: medo ao mundo, exaltação do negativo.

A melhor análise da temperança e, por contraste, do maniqueísmo que lhe é oposto, encontra-se no clássico Das Viergespann [26] de Josef Pieper, inspirado na genial antropologia de S. Tomás de Aquino. A idéia fundamental, legitimamente cristã, da temperança como virtude cardeal, é simplesmente a de que as forças fundamentais da auto-realização são as mesmas que, se mal empregadas, podem levar à auto-destruição. Com isto se afirma uma visão do mundo extremamente positiva e saudável: o mundo é bom, foi criado por Deus; a matéria (a comida, a bebida, o sexo) é boa, foi criada por Deus; a reta afirmação do próprio eu é boa; etc. A temperança é, para Tomás, o bom gerenciamento da dinâmica dessas forças fundamentais em ordem à auto-realização. A ênfase nunca é na repressão, na negação dessas forças.

Bem diferentes são as coisas para o maniqueísmo; a antiga heresia do maniqueísmo que, sempre de novo, reaparece aos olhos dos cristãos como se fosse a mais pura ortodoxia. O maniqueísmo é a heresia de origem oriental que afirma um princípio positivo do mal, identificado com a matéria, o mundo, o sexo...

Não é de estranhar, portanto, que o neo-maniqueísmo exagere no apreço pela virtude da temperança e a erija como a principal das virtudes. Na verdade, não se trata de um apreço pela virtude (contra o qual, afinal, nada haveria a objetar...), mas por uma pseudo-temperança, desvirtuada de seu caráter essencial, fundamentalmente positivo. Esse neo-maniqueísmo manifesta-se nas ênfases e no tom das pregações: o pecado do sexo é tema recorrente e a forma negativa (que insiste no NÃO pecar) pode-se tornar para jovens cristãos programa de vida, estampado até em camisetas...

O neo-maniqueísmo odeia o mundo, não vê o mundo como criação de Deus e, conseqüentemente, vê o diabo (afinal, para o maniqueu, o mal tem um princípio positivo: o mau) por todas as partes: nos filmes, na TV, nas revistas, na mídia em geral... Nessa pregação não há o menor respeito pela inteligência, não há o mínimo senso do ridículo, não há sequer a necessidade da verdade: se é “por Deus” vale tudo, inclusive mentir.

Antológicas, nesse sentido, foram as campanhas “cristãs” contra os livros e, sobretudo, os filmes da série Harry Potter. A bem da verdade, devo dizer que o fanatismo, neste caso, foi - e ainda é - muito mais forte nos meios evangélicos do que nos católicos. Em todo caso, apresento a seguir um resumo da “cruzada”, tão reveladora de como funciona a mente caluniadora fanática.

Em meados de 2001, pouco antes do lançamento do primeiro filme da série Harry Potter (a partir de agora abreviado por HP), foi publicada uma “notícia”, claramente um trote debochado e absolutamente inverossímil, num conhecido site satírico (no melhor estilo Casseta & Planeta), o The Onion, no qual se atribuíam à autora de HP, J. K. Rowling, disparatadas afirmações blasfemas e, entre outras infinitas tolices (na verdade, tratava-se claramente de uma sátira aos cristãos fanáticos...), a matéria dizia que, por causa de HP, o número de crianças satanistas nos EUA teria crescido de cem mil para quatorze milhões!!

Pois bem, essas baboseiras eletrônicas, clarissimamente um trote ridículo, apareceram com toda a seriedade (e estão lá até hoje) em dezenas de sites protestantes e em alguns ilustres sites católicos. A difusão católica começou pelas revistas da vetusta Fraternidade Sacerdotal Pio X, dos tradicionalistas cismáticos do já citado bispo Mons. Lefebvre. Daí passou para sites, tão respeitáveis como os da Canção Nova, do PHN (Por Hoje Não vou mais pecar), Rádio Rainha da Paz e diversos outros.

Como católico (e fã do HP...) senti que esse desrespeito à verdade e à inteligência era expor a minha Igreja ao ridículo e reagi, procurando mostrar aos sites católicos que se tratava de um trote e, além disso, enviei mensagens de alerta também para dezenas de listas de discussão católicas da Net (um debate que gerou mais de mil mensagens de resposta no começo de novembro de 2001!). Por mais que apresentasse provas claríssimas de que se tratava de um trote, de uma calúnia, em geral só encontrei resistências: uma quase absoluta incapacidade de abrir-se para a realidade. Quando tornou-se insustentável o caráter ridículo da “notícia”, finalmente retiradas do ar, discretamente, as páginas sobre HP. Curiosamente quase nenhum site cristão teve a decência de fazer uma retificação das graves calúnias que tinham disseminado.

Pois bem, em sua insaciável compulsão de satanizar, em novembro de 2002, às vésperas do lançamento de um novo filme da série HP, os neo-maniqueus repetiram a história: outro trote, com as mesmas calúnias de outro site satírico etc. Essa calúnia foi abortada rapidamente porque o autor da coluna satírica do jornal canadense National Post deu-se ao trabalho de esclarecer aos cristãos brasileiros que sua matéria era uma sátira... à tolice dos cristãos fanáticos! Recolho as tristes histórias desses trotes, com todos os dados, na já citada página que mantenho em meu site pessoal: http://jean_lauand.tripod.com/page13c.html Dessa vez, a confusão ficou restrita a sites evangélicos, os sites católicos, advertidos a tempo, não caíram na esparrela.

Por que esta aversão ao mundo? O sentimento básico do fanático é o medo, o medo à alegria, o medo ao mundo, o medo às outras religiões, medo, medo, medo... Para vencer este medo, vale-se da distorção de outra virtude cardeal: a Fortaleza.

O neo-maniqueísmo, dizíamos, dispõe de critérios para identificar os bandos “do bem” e “do mal”: do bem são as músicas, as festas, a arte etc. produzidas pela instituição; “do mal” são as do mundo: estabelece-se assim a ruptura: músicas “de Jesus” X “músicas do mundo”; festas “de Jesus” X festas “do mundo” etc.

Talvez os pregadores não se atrevam a dizer isto com todas as letras, mas propaga-se a mentalidade de que o cinema, a televisão, a música etc. devem ser rejeitados em bloco, como perigosos para a pureza dos sectários. Suas pregações começam falando de certos exageros (reais ou forjados), digamos, da televisão ou da música “do mundo” e, sutilmente, passa-se à exclusão em bloco da TV ou da música popular... Como maniqueus, é constante a referência ao diabo como Inimigo onipresente em todas as instâncias do mundo.

Como uma boa síntese crítica de todos esses maniqueísmos, vale a pena copiar uma mensagem enviada às listas católicas da Net, datada de 6-12-02:

Outro artigo, publicado hoje pelo Pe. N., desta vez a conclamar radicalmente os músicos católicos a uma "consagração a Deus" em oposição à consagração a Satanás.

Com efeito, depois de afirmar, que "há uma multidão de artistas, de bandas e conjuntos que, mesmo sem uma consagração formal, estão à serviço de Satanás", o ilustre prelado propõe aos músicos "de Deus":

"Que o seu ministério, que o seu conjunto, sua banda seja consagrada ao Senhor... Ou você tem um ministério de música consagrado ou cai e todos caem. Para viver a sua consagração, você precisa abolir: o fumo, a droga e o álcool. ... Ou você é consagrado inteiramente ao Senhor e vence Satanás pelo poder de Jesus, ou é um ingênuo, que faz um pouquinho de sucesso e depois é derrubado por ele. É colhido como se colhe o joio e é jogado na lama. Por isso, músicos de Deus: ‘Ou santos ou nada’. É preciso se decidir por compromisso de castidade e vivê-lo" (http://200.210.112.17/portal/canais/noticias/cnj_nprev.php?id_materia=185)

Minha perplexidade fundamental refere-se à dicotomia (um bocado maniqueísta, talvez) que estabelece a divisão entre músicos de satanás / músicos de Deus. Sou ardente admirador da (divina) música brasileira e fico a me indagar se, segundo a visão do ilustre prelado, são "de Satanás": Tom Jobim, Vinicius de Moraes, Chico Buarque, Cartola, Pixinguinha, Milton Nascimento, Elizete Cardoso, Elis Regina, Daniela Mercuri, Renato Teixeira e tantos outros para não citar os Roberto Carlos e as infinidades de duplas e cantores sertanejos (ou country, como preferem alguns), ou mesmo roqueiros como Renato Russo, que musicou o hino à caridade do Apóstolo São Paulo "ainda que eu falasse a língua dos homens e falasse a língua dos anjos..." etc. Para não falar na imortal Amália Rodrigues, cujo segredo da voz era "a voz avinhada", o bom vinho português...

O Pe. N.conclui que Satanás reina no mundo da arte:

"Porque você músico, artista, é o mais almejado pelo inimigo. Porque até hoje, ele reinou no mundo da música. E como príncipe desse mundo, tem o domínio da música, da arte."

Já o Papa João Paulo II, pelo contrário, dirige sua "Carta aos Artistas" a TODOS os artistas (e não somente aos cristãos) dizendo-lhes:

"Ninguém melhor do que vós, artistas, construtores geniais de beleza, pode intuir algo daquele pathos com que Deus, na aurora da criação, contemplou a obra das suas mãos. Infinitas vezes se espelhou um relance daquele sentimento no olhar com que vós - como, aliás, os artistas de todos os tempos -, maravilhados com o arcano poder dos sons e das palavras, das cores e das formas, vos pusestes a admirar a obra nascida do vosso génio artístico, quase sentindo o eco daquele mistério da criação a que Deus, único criador de todas as coisas, de algum modo vos quis associar".

E diz também o Papa no ponto 10 dessa Carta (e parece estar a falar da música popular brasileira):

"De facto a arte, mesmo fora das suas expressões mais tipicamente religiosas, mantém uma afinidade íntima com o mundo da fé, de modo que, até mesmo nas condições de maior separação entre a cultura e a Igreja, é precisamente a arte que continua a constituir uma espécie de ponte que leva à experiência religiosa"

Será que a música brasileira, imensamente rica, é o reino de Satanás? Ou será que ele (Satanás) não prefere a música "religiosa" insossa e de má qualidade, que se recusa a celebrar o mundo como Criação?

Diga-se de passagem que uma das especialidades folclóricas de alguns desses grupos fanáticos é a de “decodificar” supostas “mensagens satânicas subliminares” em filmes, canções e até em rótulos de shampoo. Desacostumados a pensar por conta própria, sucumbem a uma tática de sugestão de um primarismo incrível: o iluminado decodificador, depois de advertir contra o Inimigo, avisa que há uma inequívoca ação subliminar de Satanás, digamos, na canção “Ragatanga” do grupo Rouge (o exemplo é real e teve uma incrível difusão em meios sectários de jovens evangélicos e católicos). Copio a resposta, um tanto jocosa, que foi enviada em 15-10-02 para dezenas de listas católicas quando começou a circular essa tolice, importada de listas evangélicas (cfr. http://jean_lauand.tripod.com/page13e.html#324 ). As sentenças assinaladas com > são da mensagem original, que alertava contra o diabo:

C. caríssima,

Tava demorando... (aliás, preparem a paciência que daqui a poucas semanas estréia mais um filme do Harry Potter...)

Essa msg é hoax puro, pega-trouxa!!! É mais uma gracinha do gênero jogo dos 7 erros, com todas as características típicas de trote:

- Explicar "didaticamente" o óbvio e mandar verificar o inverificável.

- Tom de alerta, alarmista.

- Informações esquisitas com "cara" de científicas.

- Tom onisciente que não dá nenhum site ou lugar para verificação e quando você procura as informações essenciais nos buscadores da Net (tipo Google, Yahoo etc.) não encontra nada.

Etc.

Vamos lá...

> Alerta geral

> Ragatanga

> Atenção Brasileiros! É preciso que saibamos a verdade

> sobre o grupo Rouge!

Esse tom alarmista-profético já é indício de trote!

> Em toda a Europa já se sabe que o hit Ragatanga é uma

> espécie de

> mantra que cultua as forças satânicas,

O autor do hoax já nos deixa intimidados (puxa!, toda a Europa sabendo e só o burro aqui que não sabia). Só que não há nenhum site europeu falando essa bobagem... Se houver algum, ele que indique!

> e se por acaso você não

> acredita tente decifrar o que diz no refrão.

De novo eu me sinto um trouxa (eu não sei nem por onde começar a "decifrar" o refrão) e, portanto, estou predisposto a aceitar a explicação "científica" que ele vai me dar daqui a pouco

> Aserehe ra de re

> De hebe tu de hebere seibiunouba mahabi

> An de bugui an de buididipi

> No dialeto da tribo Assab da Eritréia, no noroeste da

> África

A Eritréia não fica no noroeste, mas no nordeste da África e Assab é a capital e não uma tribo na Eritréia.

> essa canção ao som de tambores é dançada enquanto

> forças malignas

> são evocadas. Segundo a diretora do Instituto de Ciências

> Paranormais de South Hampton Kathrine Marshall,

Não existe nenhum Instituto de Ciências Paranormais de South Hampton. As pouquíssimas menções a Kathrine Marshall na Net (não chegam a 20) cruzadas com paranormal ou psychology dão resultado zero nos buscadores...

> as mesmas que a tribo africana usa para comprometer suas

> "miereliens", o que pra nós ocidentais quer dizer alma.

O "para nós ocidentais" é ótimo...

> Cuidado! Talvez as meninas do grupo Rouge não tenham

> consciência do que elas estão fazendo com as suas vidas e > as de  milhões de crianças e adolescentes do Brasil. O que > se tem de  concreto é que uma das meninas do grupo Las

> Ketchup (Rouge da Europa) desenvolveu um tipo de

> câncer linfático e a mais nova entrou em depressão

> profunda.

O cara é um gozador...

> No Brasil, o religioso e padre Quevedo já afirmou:

> “Não duvideis dos  poderes do demônio, ele se manifesta

> das formas mais ingênuas para atrair aqueles que serão os

> seus pupilos na Terra: As Crianças!”

Putz! Logo o Pe. Quevedo...!! O autor do hoax é ótimo!

> Se você tiver oportunidade assista ao clipe das Rouge e

> notará que entre o 11º e o 12º quadro do clipe, imagens

> satânicas são exibidas ao fundo.

Nessa do 11o. e 12o. o cara se superou... Ele é ótimo! "Se você tiveroportunidade de ver o clipe" (como se isso fosse difícil), e aí vem o "fácil": notar que entre o 11o. e o 12o. quadro do clipe...

> O que isto quer realmente dizer?

> Será que as meninas venderam as suas almas em troca do

> sucesso?

E de um câncer...? (também ele falso)

> Pessoalmente acho que não vale arriscar. Por isso, se você > ouvir a  música Ragatanga em algum lugar, saia de perto,

> tente desligar o som e evite que as pessoas que você ama,

> principalmente as crianças, ouçam. E não esqueçam: Há

> maldade nos atos mais simples e teoricamente ingênuos

> nessa vida,e se existe Deus, com certeza existe o contrário.

Hoax puro! E dos bons! Hoax irresistível para certos setores da Igreja. Já, já, você vai ver em pregações e em "órgãos católicos" o "satanismo" do Rouge (não esqueça: entre o 11o. e o 12o. quadro), baseado nessas tolices!

E vão começar campanhas contra o satanismo do Rouge, que tudo que vão conseguir é dar mais publicidade ainda para essas meninas! Até quando, Senhor?

Um forte abraço

N.

A situação fica ainda mais problemática quando, à margem da medicina, são feitas curas “espirituais”. Numa pregação eletrônica recente, sobre o perdão, ouvi o ministro exortando milhares de jovens a perdoarem, em nome de Jesus, pois com o perdão se resolveriam todos os seus problemas espirituais... e também algumas doenças:

“... Essa depressão que você tem é que você ainda não perdoou. Agora feche os olhos, cruze os braços, invoque o Espírito Santo e perdoe e você ficará livre dessa depressão etc.”.

Fiquei muito assustado, imaginando que, passado o fervor do meeting, e, com a fé na cura “realizada”, algum ouvinte que realmente sofresse de depressão jogasse os remédios fora porque o ministro garantira que Jesus o tinha curado...

Os neo-maniqueus sofrem de uma contradição básica: odeiam o mundo, a mídia, a música do mundo, a Internet etc., mas querem apropriar-se dessas ferramentas para o seu gueto: a música religiosa deles, no afã de ser moderna, imita a diabólica música do mundo; a mídia é para pregações eletrônicas e a Internet para a comunicação intra-gueto...

“São” Tertuliano, o herege. O maniqueu é “do contra”.

São muito salutares as recentes atitudes de abertura ao mundo do Concílio Vaticano II e do próprio Catecismo da Igreja Católica. O difícil equilíbrio é assim expresso por João Paulo II:

Em especial podem recordar-se duas tentações, de que nem sempre souberam desviar-se: a tentação de mostrar um exclusivo interesse pelos serviços e tarefas eclesiais, por forma a chegarem frequentemente a praticamente uma abdicação das suas responsabilidades específicas no mundo profissional, social, económico, cultural e político; e a tentação de legitimar a indevida separação entre a fé e a vida, entre a aceitação do Evangelho e a ação concreta nas mais variadas realidades temporais e terrenas. (Christifideles Laici, 2. Mais textos a esse respeito em: http://jean_lauand.tripod.com/page14a.html )

Já na primeira edição de seu estudo sobre a Temperança, Josef Pieper alertava contra a atitude maniquéia, anti-cristã de ser “do contra”. É muito perigosa psicologicamente uma atitude prioritariamente defensiva, de retranca, “anti” isso, anti aquilo. Já em 1939, Pieper faz notar que essa distorção aparece emblematicamente nos escritos montanistas de Tertuliano (ca. 200).

A posição ambivalente de Tertuliano, como uma espécie de quasi-Padre da Igreja (para Santo Tomás, ele não passa de um herege: “haereticus, Tertulianus nomine”) [27] , faz com que continue sendo, ainda hoje, o antepassado direto da distorção na doutrina da temperança. Basta ler os títulos de seus livros: “Sobre o recato”, “O véu das virgens”, “Sobre a moda feminina e os enfeites das mulheres”, “Sobre o jejum”, “Convite à castidade”, “Sobre os espetáculos”, para reparar que a temperança tem o lugar primordial em suas preocupações. (Das Viergespann, p. 235)

Vejamos, a título de exemplo do tom geral de Tertuliano, um trecho de suas pregações contra os adornos das mulheres:

Pecam, de fato, contra Deus as mulheres que sobrecarregam de cremes a pele, que sujam as faces de vermelho, que alongam os olhos com tinta preta (...) aceitando esses acessórios vindos do artista inimigo, que é o diabo. Realmente, quem incitaria a modificar o corpo senão aquele que transfigurou com a maldade o próprio espírito humano? Vejo algumas de vós que pintam os cabelos com açafrão (...) Coisa ruim, coisa péssima a si mesmas pressagiam com a sua cabeça a cor do fogo do inferno! (...) Enquanto o Senhor afirma “Quem de entre vós pode tornar preto o cabelo branco ou branco o cabelo preto?” as vemos esforçarem-se por tornar pretos os cabelos brancos e outras que lamentam terem vivido até a velhice e suspiram pelo tempo da juventude em que pecamos. Etc. (Tertuliano, A Moda feminina, Lisboa, Verbo, 1974, pp. 60 e ss.).

Trata-se, como tudo no fanatismo, de uma forma de soberba. Nesse sentido, Pieper, na melhor tradição de Santo Tomás de Aquino, lembra que o bom humor é sempre uma boa defesa contra radicalismos tolos: “Não somos Deus, nem ‘como Deus’. É aí que se começa a mostrar a oculta conexão que enlaça a virtude da humildade com o dom - talvez também cristão - do bom humor” [28]

Conclusão

A prudentia nos faz ver quem somos realmente, quem realmente é o ser humano em sua vocação e circunstância, visão que possibilita, por sua vez, a compreensão e a vivência de uma antropologia correta, a partir da qual podemos julgar com retidão se determinadas atitudes e idéias propostas por grupos religiosos correspondem àquilo que o próprio Criador espera de nós.

Certamente, Deus espera de nós um comportamento saudável, sem acanhamentos, sem o cultivo doentio de regras (e regrinhas) infindáveis que, como uma cerca de arame farpado, seria a proteção para criaturas incapazes de exercitarem ao máximo tudo aquilo que faz de nós seres incomparáveis dentro da Criação: a inteligência, a liberdade, a capacidade de amar, de criar, de brincar, de falar etc.

Deus nos quer abertos para a realidade, para a beleza das coisas criadas, para a aventura divina da liberdade humana, e não acabrunhados pelo medo e, em última análise, cegos. Talvez com aquela cegueira suprema, denunciada por Jesus Cristo:  “Se fôsseis cegos não teríeis pecado; mas vós mesmos dizeis ‘Nós vemos!’ e por isso vosso pecado permanece” (Jo 9, 41).



[1] Estudo escrito em janeiro de 2003, a convite da Profa. Dra. Lisandre Castello Branco, como um capítulo do livro Liberdade e Repressão a ser publicado pela editora Pulsional.

[2] "A fanatic is one who can't change his mind and won't change the subject”.

[3] Fanaticism consists of redoubling your effort when you have forgotten your aim”

[4] Desde o primeiro momento, devo advertir que sou católico praticante e faço parte ou colaboro de muitos modos com diversas instituições e movimentos da Igreja. Tal fato leva-me a tratar mais amplamente, porque o conheço melhor, do caso católico (sem que isto signifique, de nenhum modo, uma especial propensão do catolicismo para o fanatismo). E, além disso, se por um lado, pode apresentar o perigo do parti pris; por outro, o fato de estar pessoalmente engajado ajuda-me a manter um tom de caridade para com todas as instituições e religiões... Ainda no âmbito pessoal, ante algumas críticas e acusações que tenho recebido ao tratar do tema deste estudo, esclareço que aceito plenamente a legítima autoridade da Igreja e creio na existência do diabo, no fim do mundo, no Anticristo etc.., como creio em todos os pontos da fé católica: nada mais e nada menos. Devo esclarecer também que sou apaixonado pelo pensamento de Santo Tomás de Aquino e estudo-o, até por obrigação profissional, há três décadas. Curiosamente, porém, o nome de Santo Tomás tem sido tristemente usurpado por alguns dos fanatismos católicos contemporâneos. Embora eu, pessoalmente, me guie por Santo Tomás, nunca aceitei o rótulo de “tomista”: S. Tomás é grande demais para caber num “ismo” e as características fundamentais de seu pensamento - como tem sido destacado pelo próprio João Paulo II - são a abertura e a universalidade (às quais eu acrescentaria a philosophia negativa) que o tornam refratário a qualquer fanatismo ou amesquinhamentos de certos “tomismos” anti-Tomás... Finalmente, observo que se há diversas instituições e movimentos religiosos com propensão ao fanatismo, isto não significa que todos seus integrantes sejam fanáticos: há gente boníssima e que se atém ao essencial do evangelho, procurando inclusive corrigir os excessos e disfunções dessas instituições, acreditando numa possível reforma dessas distorções...

[5] Já um Santo Tomás de Aquino advertia que a moral é o próprio ser do homem.

[6] Como inquietantes são certas saudações que, por vezes, ocorrem na comunicação interna de comunidades religiosas: “Oi, galerinha do bem”; “santos”, “povo escolhido”, Fulaninho é “dos nossos” etc.

[7] “Nóis é nóis e o resto é resto (/bosta)”, diz a conhecida paródia da famosíssima canção “Battle Hymn of the Republic”, mais conhecido como “Glória, glória, Aleluia”... Há diversas versões, por exemplo: Nóis é nóis e o resto é resto/ ... Louvemos ao Senhor (/ É o timão ê ô).

[8] Do ponto de vista religioso, Deus sendo um absoluto não há, a rigor, “exagero” na entrega incondicional a Deus; o problema está quando ocorre um gap entre a convocação a essa entrega e a realidade, que por vezes nada tem de divino, em que se traduz o projeto concreto da instituição...

[9] Una vida presente - Memorias – I, Madrid, Alianza, 1989, p. 262. Cfr. tb. pp. 287-8, 305-6, 317 e ss.

[10] Ibidem, p.288.

[11] E o que é evidente “goes without saying”.

[12] Recolho aqui, resumidamente, algumas idéias que discuto em meu livro “Em diálogo com Tomás de Aquino”, São Paulo, Mandruvá, 2002, pp. 69-83.

[13] . In Quatre conférences publiques organisées par l'Unesco, UNESCO, 1981, p. 152.

[14] . Garaudy, Roger Promessas do Islam, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1988, p. 70.

[15] . Embora Garaudy, acostumado - por seu passado marxista - à distinção entre socialismo ideal e "socialismo realmente existente", uma e outra vez recorra à "distinção entre o ensino corânico e a prática dos países muçulmanos..." (p. 70).

[16] . E se só há filhas...

[17] Tratamos mais amplamente do tema em Tomás de Aquino hoje, Curitiba-S. Paulo, PUC-PR - GRD, 1993.

[18] Sugestivamente, no capítulo IV, dedicado aos leigos - a cuja iniciativa e responsabilidade de cristãos compete a santificação da ordem temporal.

[19] . Cfr. também o decreto Apostolicam Actuositatem II, 7.

[20] . Em seus Princípios políticos, filosóficos, sociais e religiosos, Rio de Janeiro, Record, 1980.

[21] Mons. Lefebvre “Homilia em Lille, 29-8-76” in Chalet, Jean-Anne Monseigneur Lefebvre, o Bispo Rebelde  , São Paulo, 1977, pp. 161 e ss.

[22] Em "Dios y el César", um luminoso artigo de 1952 (não por acaso proibido na Espanha franquista e publicado no exterior), in Sobre el Cristianismo, Barcelona, Planeta, 1998, pp. 51 e ss.

[23] . Grafo em latim Prudentia para evitar a confusão com nossa palavra “prudência”, que, em muitos aspectos, é o oposto da clássica virtude da Prudentia. Trata-se de um conhecido fenômeno de semântica, que estudei em Provérbios e Educação Moral - a filosofia de Tomás de Aquino e a pedagogia árabe do mathal, São Paulo, HotTopos, 1997.

[24] Naturalmente, questões éticas como a defesa da vida ou da justiça social não são questões meramente temporais e as religiões podem - e devem - trazer reflexão adequada para seu equacionamento na sociedade.

[25] . Prado, Adélia, Filandras, Rio de Janeiro, Record, 2001, pp. 79-80.

[26] München, Kösel Verlag, 1964.

[27] Exemplo dessa apreciação ambivalente de Tertuliano é o artigo que lemos na revista Catolicismo, da TFP, janeiro de 2003: “Tertuliano foi certamente um dos maiores gênios que o cristianismo produziu. Dada a imensa estatura de Santo Agostinho, a se admitir a comparação entre ambos, pode-se calcular a estatura de Tertuliano”; e embora reconhecendo “a mentalidade destemperada”, isto é atribuído ao “mau uso de seu gênio extremado até o excesso” etc.

http://www.catolicismo.org.br/materia/materia.cfm?idmat=6&mes=janeiro2003

[28] Josef Pieper, “Demut und Humor” in Das Viergespann, München, Kösel Verlag, 1964, p. 264.