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“O Espelho”, de Machado de Assis, ou:
“Sobre o problema da identidade
 do homem, em Rousseau.”
[1]

 

Gilda Naécia Maciel de Barros
Faculdade de Educação da USP

 

Para meus alunos de Filosofia da Educação - 2000

“- Quando tiverem passado além das Sereias, não te direi com precisão qual das duas rotas deverás seguir: cabe a ti decidir em teu coração. Entretanto, vou falar-te a respeito de uma outra. (...) – Deusa, declara-me sem fingimento de espécie alguma: caso eu lograsse evitar a funesta Caribdes, não poderia atacar o outro monstro, quando este investisse contra meus homens?“ [2]

Outro dia, relendo um delicioso conto de Machado, intitulado O Espelho, ocorreu-nos a idéia de submetê-lo, ludicamente, a um exercício de aproximação com o Emílio, obra notável de J.J. Rousseau, muito citada, mas, infelizmente, hoje, pouco lida.

Estabeleçamos, primeiro, as bases para essa aproximação. Deixando de lado os desdobramentos macroscópicos das teses de Rousseau, a saber, sua convicção de que a desigualdade e a injustiça estão na base da sociedade degenerada, que tão bem desenvolve especialmente no Segundo Discurso, e, reservando para outro contexto suas considerações sobre os princípios reguladores que legitimam a vida social igualitária e democrática, magistralmente expostas no Contrato social, fiquemos restritos às ponderações do Emílio.

Rousseau pretende, aí, apresentar e discutir um ideal de formação que, em princípio, retirando a criança da sociedade degenerada, e nela inserindo-a de novo, progressivamente, conforme a ‘marcha da natureza’, ao ritmo de etapas bem marcadas de desenvolvimento físico, psíquico e espiritual, propiciaria ao ser humano o trânsito do estado de inocência para o estado de virtude, sem passar pela queda. Ou seja, o Emílio é oferecido ao leitor como o caminho da boa socialização numa sociedade histórica, povoada de criaturas boas e más, estas, em maior número do que aquelas, hipócritas muitas vezes, agarradas às aparências, a honrarias, ao poder... afastadas de sua natureza, originalmente íntegra. Nesse homem mal socializado, a subserviência ao jogo das aparências, ao jugo da opinião, é, precisamente, o que Rousseau mais critica:

“O homem da sociedade está todo inteiro na sua máscara. Não estando quase nunca em si mesmo, quando está se acha estranho e mal à vontade. O que é, não é nada, o que parece, é tudo para ele.” [3]

A boa socialização implicaria em um processo de construção do eu autônomo, não submetido à tirania que representa, aos olhos de Rousseau, a subserviência à opinião dos outros, deformada por paixões anti-naturais, como, por exemplo, a vaidade, ou congêneres: ambição, egoísmo, intolerância, avareza, luxúria:

“... a sociedade não oferece mais aos olhos do sábio senão um conjunto de homens artificiais e de paixões factícias que são obra de todas essas novas relações e que não têm fundamento verdadeiro da natureza (...)”

Comparando o homem natural, que é bom, com o homem associado, que se depravou, Rousseau estabelece a nítida diferença:

“...o homem selvagem e o homem policiado diferem de tal forma quanto ao fundo do coração e às inclinações que o que faz a felicidade suprema de um reduziria o outro ao desespero (...) Tal é, de fato, a verdadeira causa de todas essas diferenças: o selvagem [4] vive em si próprio; o homem social, sempre fora de si, não sabe viver senão na opinião dos outros e é, por assim dizer, do julgamento deles, apenas, que ele tira o sentimento de sua própria existência.” [5]

Por sua vez, com todos os sutis recursos da pena e humor machadianos, O Espelho apresenta preciosas ponderações sobre a condição do homem que, submetido a um processo cujo caráter alienador Rousseau seguramente condenaria, passa a viver fora de si, no momento em que sua auto-consciência torna-se resultado de um processo de identificação absoluta [6] com a imagem que a sociedade lhe impingiu.

É principalmente na crítica de Rousseau ao viver fora de si [7] que vislumbramos a ponte que possibilitará essa aproximação com Machado; ora, isso nos leva a concentrar a atenção em Jacobina, personagem principal do conto. Nascido Joãozinho, quando jovem Jacobina tornou-se Sr. Alferes, gestado na bolsa amniótica da vaidade e da adulação, por um processo de constituição do que poderia, em Rousseau, corresponder à matriz do homem do homem, inteiramente dependente, como se verá, da opinião dos outros para o reconhecimento da própria identidade.

Mas vamos ao Alferes, ou, antes, ao Jacobina, esta figura central, de tempo ao meio, “provinciano, capitalista, inteligente, não sem instrução, e, ao que parece, astuto e cáustico.” Em discurso categórico sobre a natureza da alma, Jacobina, para iluminar a nossa, diz coisas espantosas acerca da própria, cuja essência recolhe de experiências da juventude.

Seu primeiro artigo de fé diz que o homem é, metafísicamente, uma laranja; o segundo, que, como tal, tem duas almas, uma interior e outra exterior; o terceiro, que a alma exterior muda de forma. Com a ligeireza dos espíritos que não resistem a fazer humor de coisas sérias, se poderia dizer que, do primeiro dogma vem deduzida a importância ôntica da categoria de totalidade; do segundo, de parte, do terceiro, a tese central de Heráclito, concedida ao seu panta rhei uma interpretação rasteira...

 “Cada criatura humana traz duas almas consigo: uma que olha de dentro para fora, outra que olha de fora para dentro (...) A alma exterior pode ser um espírito, um fluido, um homem, muitos homens, um objeto, uma operação. Há casos, por exemplo, em que um simples botão de camisa é a alma exterior de uma pessoa; - e assim também a polca, o voltarete, um livro, uma máquina, um par de botas, uma cavatina, um tambor, etc. Está claro que o ofício dessa segunda alma é transmitir a vida, como a primeira; as duas completam o homem, que é, metafisicamente falando, uma laranja.“

E qual a relação entre as partes do todo? Das mais complexas, como se verá. Logo ficamos sabendo que

“Quem perde uma das metades, perde naturalmente metade da existência; e casos há, não raros, em que a perda da alma exterior implica a da existência inteira.” [8]

Mas Jacobina, antes de ser Jacobina é homem, razão pela qual não deixa de prestar tributo à condição humana e vai logo atrelando sua filosofia da alma a essa relatividade que faz de cada um ele próprio e sua circunstância. Assim, ficamos sabendo: a alma exterior recolhe múltiplas formas, conforme a marcha do tempo e as influências do meio – origem, tipo de formação, boa ou má sorte, enfim, essas vicissitudes todas que nos vão definindo, ao andar da carruagem. Doutamente, esclarece:

“é preciso saber que a alma exterior não é sempre a mesma.. (...) muda de natureza e de estado. Não aludo a certas almas absorventes, como a pátria, com a qual disse o Camões que morria, e o poder, que foi a alma exterior de César e de Cromwell. São almas enérgicas e exclusivas; mas há outras, embora enérgicas, de natureza mudável. Há cavalheiros, por exemplo, cuja alma exterior, nos primeiros anos, foi um chocalho ou um cavalinho de pau, e mais tarde uma provedoria de irmandade, suponhamos. Pela minha parte, conheço uma senhora, - na verdade, gentilíssima, - que muda de alma exterior cinco, seis vezes por ano. Durante a estação lírica é a ópera; cessando a estação, a alma exterior substitui-se por outra: um concerto, um baile do Cassino, a rua do Ouvidor, Petrópolis....... Essa senhora é parenta do diabo, e tem o mesmo nome; chama-se Legião... E assim outros mais casos.”

Vítima, também, da instabilidade da alma exterior, Jacobina confessa:

“Eu mesmo tenho experimentado dessas trocas. Não as relato, porque iria longe; restrinjo-me ao episódio de que lhes falei. Um episódio dos meus vinte e cinco anos...”

O relato do processo pelo qual se vai configurar o domínio sobre ele da alma exterior poderia ilustrar o que, aos olhos de Rousseau, constituiria uma progressiva e alienadora relação de dependência dos homens [9]

 “Tinha vinte e cinco anos, era pobre, e acabava de ser nomeado alferes da Guarda Nacional. Não imaginam o acontecimento que isto foi em nossa casa. Minha mãe ficou tão orgulhosa! tão contente!

Chamava-me o seu alferes. Primos e tios, foi tudo uma alegria sincera e pura. Na vila, note-se bem, houve alguns despeitados; choro e ranger de dentes, como na Escritura; e o motivo não foi outro senão que o posto tinha muitos candidatos e que esses perderam. Suponho também que uma parte do desgosto foi inteiramente gratuita: nasceu da simples distinção. Lembra-me de alguns rapazes, que se davam comigo, e passaram a olhar-me de revés, durante algum tempo. [10] Em compensação, tive muitas pessoas que ficaram satisfeitas com a nomeação; e a prova é que todo o fardamento me foi dado por amigos..”.

Logo ficamos sabendo que, com o posto e a distinção, foi desencadeado o processo de transformação de Jacobina, bem nos moldes rousseaunianos da gestação do eu humano, nutrido na opinião alheia, sem consistência própria. Para esse homem- máscara a única saída é a abertura para o outro. Em Jacobina, o amor de si vai transformar-se naquela forma de amor próprio [11] , tão condenada pelo autor do Emílio.

Jamais negando a importância das paixões e nem o papel do mundo na floração delas, ouçamos o aluno imaginário dizer ao seu preceptor:

“Mas que ser sensível pode viver sempre sem paixões, sem ligações? Ele não é um homem; é um bruto ou é um Deus. Não podendo, pois, me garantir de todas as afecções que nos ligam às coisas, vós me ensinastes ao menos a escolhê-las, a não abrir minha alma senão às mais nobres, a não me prender senão aos mais dignos objetos que são meus semelhantes, a estender, por assim dizer, o eu humano a toda a humanidade, e a me preservar, assim, das vis paixões que o concentram.” [12]

A consolidação, em Jacobina, da imagem do Alferes, vai ser acelerada por uma estada no sítio da tia Marcolina. Aí, mimado por todos os lados, o jovem passa a ser objeto da mais cuidada atenção de todos e de altas distinções e honrarias, sofrendo uma influência avassaladora. Símbolo da corrupção bem intencionada, tia Marcolina não perde oportunidade para lembrar ao sobrinho o quanto, de agora em diante, ele é alferes:

E sempre alferes; era alferes para cá, alferes para lá, alferes a toda a hora. Eu pedia-lhe que me chamasse Joãozinho, como dantes; e ela abanava a cabeça, bradando que não, que era o "senhor alferes". Um cunhado dela, irmão do finado Peçanha, que ali morava, não me chamava de outra maneira. Era o "senhor alferes", não por gracejo, mas a sério, e à vista dos escravos, que naturalmente foram pelo mesmo caminho. Na mesa tinha eu o melhor lugar, e era o primeiro servido.“

Com tantos assédios e cortejos, a alma exterior de Jacobina cresce, avançando em direção à alma interior. As coisas vão se definir melhor quando Jacobina é posto diante do mimo supremo, o presente da tia, um

 “grande espelho, obra rica e magnífica, que destoava do resto da casa, cuja mobília era modesta e simples... Era um espelho que lhe dera a madrinha, e que esta herdara da mãe, que o comprara a uma das fidalgas vindas em 1808 com a corte de D. João VI. Não sei o que havia nisso de verdade; era a tradição. O espelho estava naturalmente muito velho; mas via-se-lhe ainda o ouro, comido em parte pelo tempo, uns delfins esculpidos nos ângulos superiores da moldura, uns enfeites de madrepérola e outros caprichos do artista. Tudo velho, mas bom...”

Espelhos comportam uma ambigüidade simbólica, pois ao mesmo tempo em que podem ser vistos como instrumento de devolução do eu, também podem ser vistos como instrumento de rapto da alma [13] .

Aqui, o espelho pode representar também a presença do mundo, a alteridade. De alguma forma é também uma ponte: entre o eu e a imagem do eu, entre o eu e o mundo. [14]

Como se verá, a Machado não escapa o valor emblemático desse objeto, chave na definição do destino de Jacobina, cuja transformação não se fez esperar:

“O certo é que todas essas coisas, carinhos, atenções, obséquios, fizeram em mim uma transformação, que o natural sentimento da mocidade [15] ajudou e completou.”

Com a transformação, a máscara não tardou a tomar o lugar do rosto. Neste ponto narrativo crucial apresenta-se o problema da persona. Quem é, agora, afinal, Jacobina? Onde o original? Onde o artificial?

Em Rousseau, o ponto crítico da formação social de Emílio é precisamente torná-lo apto a viver com os homens, mas não como eles. Para o homem bem educado, a unidade subjetiva implica num saber-se quem se é, agir como se fala, sem depender radicalmente da opinião alheia. No caso de Jacobina, os resultados da transformação foram onticamente definitivos:

“O alferes eliminou o homem. Durante alguns dias as duas naturezas equilibraram-se; mas não tardou que a primitiva cedesse à outra; ficou-me uma parte mínima de humanidade. Aconteceu então que a alma exterior, que era dantes o sol, o ar, o campo, os olhos das moças, mudou de natureza, e passou a ser a cortesia e os rapapés da casa, tudo o que me falava do posto, nada do que me falava do homem. A única parte do cidadão que ficou comigo foi aquela que entendia com o exercício da patente; a outra dispersou-- se no ar e no passado.“

Nesse ponto, instaura-se em nosso personagem o vazio de dentro, inteiramente ocupado pela alma de fora. Mas Jacobina ainda não tem consciência dele. É preciso esperar a crise de identidade:

– “Vamos aos fatos. Vamos ver como, ao tempo em que a consciência do homem se obliterava, a do alferes tornava-se viva e intensa.”

Um coração bom, ensina o Rousseau do Segundo Discurso, não deformado pela sociedade degenerada, é capaz de experimentar apenas duas emoções primitivas básicas: o amor de si e a piedade; aquela, voltada para a auto-conservação; esta, uma abertura para o outro que sofre, uma pequena fresta no todo monádico que é o ser natural, apto, porém, a relativizar-se, desde que bem conduzido e bem ambientado. Tendo perdido a sua integridade essencial, o Alferes torna Jacobina incapaz de experimentar o sentimento básico da piedade:

“As dores humanas, as alegrias humanas, se eram só isso, mal obtinham de mim uma compaixãoapática ou um sorriso de favor. No fim de três semanas, era outro, totalmente outro. Era exclusivamente alferes.”

Jacobina agora é um outro, inteiramente alienado, diria Rousseau, estranho a si próprio; logo estará à busca de sua quididade. Instaurado e consolidado o processo de afastamento de si, abafada a espontaneidade natural por conta de sua alferesmania, vai ele perder-se no temido abismo da indiferenciação ôntica.

Aos poucos, Machado vai retirando do espaço de Jacobina os circunstantes - a dona do sítio, os criados e amigos. Isolado do mundo e de gente no sítio de tia Marcolina, instaura-se na intimidade de Jacobina o vazio do ser. Esse sítio deserto pode ser visto como sinal metafísico da vida em sociedade, posta agora entre parêntesis, o que mergulha Jacobina no caos psíquico e espiritual. Cessara o alarido do mundo – aquele coro de vozes que lhe reforçava o sentimento de identidade, com o enfático “alferes!” “alferes!”, “alferes!”. A presença da ausência é então introduzida com a mais brutal, avassaladora solidão.

Confrontado com o sentimento, para ele insuportável, da absoluta realidade de não ser, inicia-se para Jacobina a descida aos infernos. A gravidade da situação é cuidadosamente configurada: com a ausência do ‘outro’, penosamente a ‘vida’ do alferes se vai esvaindo, esvaindo.... perdendo, opressoramente, a substância e, com esta, a subsistência:

Mas o certo é que fiquei só, com os poucos escravos da casa. Confesso-lhes que desde logo senti uma grande opressão, alguma coisa semelhante ao efeito de quatro paredes de um cárcere, subitamente levantadas em torno de mim.”

Era a alma exterior que se reduzia; estava agora limitada a alguns espíritos boçais. O alferes continuava a dominar em mim, embora a vida fosse menos intensa, e a consciência mais débil.“

Foi quando, então, o aniquilamento se perfez:

 “Na manhã seguinte achei-me só. ...... sem mais ninguém, entre quatro paredes, diante do terreiro deserto e da roça abandonada. Nenhum fôlego humano. Corri a casa toda, a senzala, tudo; ninguém, um molequinho que fosse. Galos e galinhas tão-somente, um par de mulas, que filosofavam a vida, sacudindo as moscas, e três bois. Os mesmos cães foram levados pelos escravos. Nenhum ente humano.”

Magistralmente elevado à máxima potência, dá-se o confronto humano primal: Jacobina diante de si mesmo. Mas, quem, depois de constituir-se e passar a viver inteiramente às expensas da opinião, sobreviverá a uma introspectiva varredura da alma, em busca de seu eu? Com esse enfrentamento existencial um terror pior do que a morte arrasta-se para a intimidade de Jacobina; a morte seria melhor, talvez, pois o livraria precisamente da consciência de tal condição. Ele próprio o reconhece:

 “Parece-lhes que isto era melhor do que ter morrido? era pior.”

Terror potencializado com a morte da última esperança de fuga e do mergulho em um angustiante vazio:

 “.... finalmente, esperei que o irmão do tio Peçanha voltasse naquele dia ou no outro, visto que tinha saído havia já trinta e seis horas. Mas a manhã passou sem vestígio dele...”

O pânico toma de assalto Jacobina, estendendo tentáculos mortais por todo o ser:

 “ à tarde comecei a sentir a sensação como de pessoa que houvesse perdido toda a ação nervosa, e não tivesse consciência da ação muscular.”

“...O irmão do tio Peçanha não voltou nesse dia, nem no outro, nem em toda aquela semana. Minha solidão tomou proporções enormes. Nunca os dias foram mais compridos, nunca o sol abrasou a terra com uma obstinação mais cansativa. As horas batiam de século a século no velho relógio da sala, cuja pêndula tic-tac, tic-tac feria-me a alma interior, como um piparote contínuo da eternidade.”

O impiedoso tic-tac do relógio do sítio sacramenta a nova condição existencial de Jacobina, à procura da própria substância, solto no vazio do espaço e do tempo. Jacobina transmuda-se em uma consciência, sem consistência, desse vazio, desse absoluto.

“Never, for ever!- For ever, never! Não eram golpes de pêndula, era um diálogo do abismo, um cochicho do nada. E então de noite! Não que a noite fosse mais silenciosa. O silêncio era o mesmo que de dia. Mas a noite era a sombra, era a solidão ainda mais estreita, ou mais larga. Tic-tac, tic-tac. Ninguém, nas salas, na varanda, nos corredores, no terreiro, ninguém em parte nenhuma...”

Sem a alma exterior, Jacobina, nem inteiramente vivo, nem inteiramente morto, tem a quididade de um tertius Aquele saudável sinal de vitalidade - o medo, que não sente, cedera lugar ao terror e angústias primais, que afloram em mergulhos existenciais de absoluta negação:

“Oh! fora bom se eu pudesse ter medo! Viveria. Mas o característico daquela situação é que eu nem sequer podia ter medo, isto é, o medo vulgarmente entendido. Tinha uma sensação inexplicável. Era como um defunto andando, um sonâmbulo, um . boneco mecânico.”

Um robot, diríamos hoje, sem luz, extraído de espírito. E tal como nas histórias de horror o sangue humano garante ao vampiro esvaído a sobrevivência, a sobrevida de Jacobina vai depender, agora, do sono. Nele, Jacobina trazia de volta seu mundo, que o estado de vigília punha entre parêntesis, disfarçando sua triste condição. Recriando o passado, recupera a identidade, à medida que retoma a condição de alferes:

“Dormindo, era outra coisa. O sono dava-me alívio (...) eliminando a necessidade de uma alma exterior, deixava atuar a alma interior. Nos sonhos, fardava-me orgulhosamente, no meio da família e dos amigos, que me elogiavam o garbo, que me chamavam alferes; vinha um amigo de nossa casa, e prometia-me o posto de tenente, outro o de capitão ou major; e tudo isso fazia-me viver.”

Curto engodo:

 “Mas quando acordava, dia claro, esvaía-se com o sono a consciência do meu ser novo e único porque a alma interior perdia a ação exclusiva, e ficava dependente da outra, que teimava em não tornar... Não tornava. “

Como recuperá-la?

 “Eu saía fora, a um lado e outro, a ver se descobria algum sinal de regresso. Soeur Anne, soeur Anne, ne vois-tu rien venir? Nada, coisa nenhuma; tal qual como na lenda francesa. Nada mais do que a poeira da estrada e o capinzal dos morros. Voltava para casa, nervoso, desesperado, estirava-me no canapé da sala. Tic-tac, tic- tac. Levantava-me, passeava, tamborilava nos vidros das janelas, assobiava. Em certa ocasião lembrei-me de escrever alguma coisa, um artigo político, um romance, uma ode; não escolhi nada definitivamente; sentei-me e tracei no papel algumas palavras e frases soltas, para intercalar no estilo. Mas o estilo, como tia Marcolina, deixava-se estar. Soeur Anne, soeur Anne...Coisa nenhuma. Quando muito via negrejar a tinta e alvejar o papel.” (...) Comia mal, frutas, farinha, conservas, algumas raízes tostadas ao fogo, mas suportaria tudo alegremente, se não fora a terrível situação moral em que me achava. Recitava versos, discursos, trechos latinos, liras de Gonzaga, oitavas de Camões, décimas, uma antologia em trinta volumes. As vezes fazia ginástica; outras dava beliscões nas pernas; mas o efeito era só uma sensação física de dor ou de cansaço, e mais nada. Tudo silêncio, um silêncio vasto, enorme, infinito, apenas sublinhado pelo eterno tic-tac da pêndula Tic-tac, tic-tac...

Terrível situação moral, que Rousseau veria gestada pelo mau uso da imaginação, a ativadora de nossas paixões, boas ou más, estas, sempre contrárias à natureza:

“O mundo real tem seus limites: o mundo imaginário é infinito. Não podendo alargar um, restrinjamos o outro, pois é de sua diferença que nascem todas as penas que nos tornam realmente desgraçados. Tirai a força, a saúde, o bom testemunho de si, todos os bens desta vida se encontram na opinião; tirai as dores do corpo e os remorsos da consciência, todos os nossos males são imaginários. [16]

Eis chegado o ponto alto do conto. Se quiser atravessar o Rubicão, Jacobina não pode fugir ao confronto. Deve partir em busca do seu eu. Mas, como achá-lo? A alma interior não lhe bastava. Carecia da alma de fora, sua contraprova.

Jacobina se nos desvela em sua condição humana dilacerada, em contradição - divisão interior funesta, porque paraliza a ação, mas aniquila e parece bloquear o caminho da redenção. Agora, quando lhe escapa o sentimento da unidade do eu, aproxima-se para ele o momento culminante de um processo de entropia:

“Convém dizer-lhes que, desde que ficara , não olhara uma só vez para o espelho. Não era abstenção deliberada, não tinha motivo; era um impulso inconsciente, um receio de achar-me um e dois, ao mesmo tempo, naquela casa solitária; e se tal explicação é verdadeira, nada prova melhor a contradição humana, porque no fim de oito dias deu-me na veneta de olhar para o espelho com o fim justamente de achar-me dois.”

Quando, finalmente, Jacobina enfrenta sua condição, o que vê? Um vazio ôntico, a desestruturação:

“Olhei e recuei. O próprio vidro parecia conjurado com o resto do universo; não me estampou a figura nítida e inteira, mas vaga, esfumada, difusa, sombra de sombra. A realidade das leis físicas não permite negar que o espelho reproduziu-me textualmente, com os mesmos contornos e feições; assim devia ter sido. Mas tal não foi a minha sensação. Então tive medo; atribuí o fenômeno à excitação nervosa em que andava; receei ficar mais tempo, e enlouquecer.”

Percepção angustiante, que se potencializa quando sobrevém um ímpeto de fuga. Ao ponto em que chegou, parece não haver mais retorno: sombra de ser, neste existir instável, torna-se um espectro, imagem sem definição:

 “Vou-me embora, disse comigo. E levantei o braço com gesto de mau humor, e ao mesmo tempo de decisão, olhando para o vidro; o gesto lá estava, mas disperso, esgaçado, mutilado... Entrei a vestir-me, murmurando comigo, tossindo sem tosse, sacudindo a roupa com estrépito, afligindo-me a frio com os botões, para dizer alguma coisa. De quando em quando, olhava furtivamente para o espelho; a imagem era a mesma difusão de linhas, a mesma decomposição de contornos... Continuei a vestir-me.“

Que fazer? Para tão grande mal, apenas uma saída: trazer de volta a alma exterior. Porque desde que se tornou Alferes, Jacobina é toda ela, e só ela. Uma inspiração redentora irá devolvê-la, ainda que isso possa significar o mergulho absoluto na fantasia. Movido por lúcida loucura, agarra-se à farda de Alferes, simbolo material de sua alma:

...“Estava a olhar para o vidro, com uma persistência de desesperado, contemplando as próprias feições derramadas e inacabadas, uma nuvem de linhas soltas, informes, quando tive o pensamento ... Lembrou-me vestir a farda de alferes. Vesti-a, aprontei-me de todo; e, como estava defronte do espelho, levantei os olhos, e...não lhes digo nada...”

E recupera, com a farda, a platéia, repovoando o silêncio com o ruído do mundo:

“... o vidro reproduziu então a figura integral; nenhuma linha de menos, nenhum contorno diverso; era eu mesmo, o alferes, que achava, enfim, a alma exterior.”

Voltando, metafisicamente, a ser laranja, Jacobina agora reune em uma as duas almas, a alma interior inteiramente identificada com a exterior, então recuperada.

A pouco e pouco, os personagens voltam à cena. O sítio, repovoado, devolve-lhe a vida. Como no sono, a alma interior subsume a alma exterior, que produz para seu uso. A farda lhe resgata a alma exterior adormecida, e, com ela, temporariamente, a consciência de si.

 “Essa alma ausente com a dona do sítio, dispersa e fugida com os escravos, ei-la recolhida no espelho. Imaginai um homem que, pouco a pouco, emerge de um letargo, abre os olhos sem ver, depois começa a ver, distingue as pessoas dos objetos, mas não conhece individualmente uns nem outros; enfim, sabe que este é Fulano, aquele é Sicrano; aqui está uma cadeira, ali um sofá. Tudo volta ao que era antes do sono. Assim foi comigo. Olhava para o espelho, ia de um lado para outro, recuava, gesticulava, sorria e o vidro exprimia tudo.”

Reintegrado em seu ser, Jacobina volta à vida, ou, como diria Rousseau, ao simulacro dela, devolvido a si próprio pela intermediação de uma hetero consciência, a do mundo:

 “Não era mais um autômato, era um ente animado. Daí em diante, fui outro. Cada dia, a uma certa hora, vestia-me de alferes, e sentava-me diante do espelho, lendo, olhando, meditando; no fim de duas, três horas, despia-me outra vez. Com este regime pude atravessar mais seis dias de solidão sem os sentir..”

Inverteu-se, em Jacobina, a relação entre o homem e a máscara - pois não é ele, agora, o Alferes, travestido de homem, e, como tal, uma laranja transgênica, com duas almas, uma interior e outra interior: a interior identificada e reificada pela exterior?

Enquanto se veste de alferes para o espelho – vale dizer, para si, para a auto-contemplação, é ele próprio; mas também é ele outro, o mundo, ou a consciência do mundo, enquanto vestido de alferes, no espelho, agora para aquele, que só se recupera enquanto, travestido, se mira, pelo espelho, no outro.

O alferes do ou no espelho, visto pelo alferes diante do espelho - contraponto do eu, atualiza a alteridade, posta, antes, entre parêntesis, quando o sítio se tornara um ermo.

Chegamos, ao final, à questão da identidade. Quem é essa criatura que o enigmático Machado colocou diante do espelho? Que lhe restou de Jacobina, de Joãozinho, de Alferes, de homem? Um pedaço de cada um deles? Um amálgama de carne e osso, um ser teratológico, hibridado, sem consciência de si que não seja a consciência de outro?

Certamente não sabemos quem é essa criatura, em toda a complexidade de sua gestação.... Para os estudiosos da alma humana, um fértil objeto de reflexão – que se me permita esta falta metafísica, que certamente os científicos do homem recriminariam. Não veria nele Rousseau o anti-Emilio, o homem inteiramente construído e destruído pela opinião?

Mas, insistindo, de forma irreverente, talvez, numa leitura rousseauniana desse conto, voltemos a Machado. À parte o desfrute estético desse mergulho magistral na condição humana, o que poderia ser colhido das linhas ou entrelinhas de O Espelho?

Se postulamos como condição metafísica do homem a totalidade, vertendo em linguagem filosófica a bem humorada fórmula cítrica machadiana, essa unidade tem duas partes, a alma de dentro e a alma de fora, que se correspondem, com maior ou menor intensidade. Dessa correspondência não estaria a depender, então, a unidade do eu, sempre precária e perigosamente ameaçada, uma vez que cada uma das faces pode subsumir a outra, em parte ou no todo? Não seria Jacobina a ilustração lúdicamente literária dessa última hipótese? Então, penso eu, também não o seria o homem do homem, de Rousseau?Que responsabilidade recai sobre pais e educadores, na gênese e nutrição dessas almas, quando o equilíbrio do todo depende de uma sofisticada dialética entre o ponto de dentro e o ponto de fora? Sendo a relação entre o eu e o nós ativa e mutável, a sua estabilidade, uma vez abalada, não poria o ser humano à mercê do funesto desvario, campo de atração incontrolável, projetando-o na rota da fuga para o incomensurável? Pois quem, sendo profundamente humano, poderia, como Ulisses, superar o destino e escapar, ileso, ao campo de atração fatal de Cila e Caribdes?



[1] O espelho [Esboço de uma nova teoria da alma humana], de Machado de Assis, In: Obra Completa, de Machado de Assis, vol. II, Nova, Aguilar, Rio de Janeiro, 1994.

[2] Palavras de Circe a Ulisses. In Odissédia, rapsódia XII. S.Paulo:Difel, 1960.

[3] Emílio, IV trad. de Sérgio Milliet, Difel.

[4] Neste contexto, o ‘selvagem’ corresponde ao homem natural. Em notas ao Segundo Discurso, Lourival Gomes Machado esclarece que Rousseau se serve desse conceito apenas para verificar suas hipóteses; a psicologia do primitivo não lhe serve de apoio para indução científica; apenas de forma inexata o selvagem representa o estado de natureza, para Rousseau, que distingue dois tipos de selvagens: os bons [primitivos], que conservaram a simplicidade do estado de natureza original; os maus [bárbaros], que incorporaram os vícios da corrupção social sem as vantagens da civilização. Cf. In J.J. Rousseau, Obras, ed. Globo, p. 248, n. 36; p. 253, n. 89.

[5] O.C. éd. Pleiade., III, Sur l’origine de l’inégalité, pp. 191-3.

[6] O ‘absoluta’ aqui é muito importante, pois está fora de questão negar a participação do ‘outro’ na construção de nossa identifidade. Na relação complexa entre o ‘eu’ e o ‘nós’ a partir de cuja trama se constroem as subjetividades, a condição essencial de cada um e de todos é de uma dependência mútua primária. Quando Rousseau insiste em que a educação de Emílio deve protegê-lo da ‘dependência dos homens’ está se referindo, entre outras coisas, à tirania da opinião.

[7] Rentrer sur soi même” é a contrapartida, recomendada por Rousseau, e por ele avidamente procurada em seu destino pessoal.

[8] “Shylock, por exemplo. A alma exterior daquele judeu eram os seus ducados; perdê-los equivalia a morrer. ‘Nunca mais verei o meu ouro, diz ele a Tubal; é um punhal que me enterras no coração.’ Vejam bem esta frase; a perda dos ducados, alma exterior, era a morte para ele.”

[9] É importante lembrar que o tema da dependência dos homens tem, em Rousseau, também, fortes implicações políticas, que não estamos considerando aqui. Consulte-se o Segundo Discurso, em especial no que se refere à hipotética decadência progressiva do homem, caracterizada pelos estágios referentes às relações entre rico/pobre, forte/fraco, senhor/escravo.

[10] Em Rousseau, as desgraças começaram quando os homens começaram a se comparar e, logicamente, a se preferir aos outros. Cf. Segundo Discurso.

[11] Vale dizer, sentimento de auto-preferência, além do necessário à própria conservação, nascido do hábito de comparar-se aos outros.

[12] O.C. éd. Pleiade. t. IV, Émile et Sophie, p. 883.

[13] Hans Biedermann – Dicionário Ilustrado de Símbolos, S. Paulo: Companhia Melhoramentos, 1993.

[14] No conto de fadas, ele também tem o dom de falar a verdade: “Diga-me, espelho meu, existe alguém mais bela do que eu?”

[15] No Emílio, Rousseau insiste em marcar a importância do momento de apresentação do mundo ao jovem educando, porque teme precisamente a influência nefasta do homem corrompido, favorecendo a geração de paixões negativas, contrárias à natureza. Uma introdução extemporânea na vida social, sem preparo, pode ser funesta. Algo parecido parece ter ocorrido no conto de Machado.

[16] Emílio, Difel, II.