A Filosofia no Século XII (2) Em Portugal:
 os Mosteiros e a
Cultura que vem da Europa

 

 

J. F. Meirinhos
Faculdade de Letras da Universidade do Porto

 

 

            O fenómeno de renovação, reforma ou renascimento das formas e expressões da vida cultural verificável na Europa ao longo do séc. XII, descrito em artigo anterior[1], é também ele complexo em Portugal, mas muito menos evidente. Desde logo assistimos sobretudo a um reforma eclesiástica e da administração episcopal como complemento ou em concorrência com a instalação de novos mosteiros que, correspondendo às solicitação do poder político, que eram chamados a apoiar e a legitimar simbolicamente, introduzem práticas escolares e de uso do livro que garantirão a constituição (e não propriamente um “renascimento”) de uma cultura de expressão escrita, com o aparecimento de escolas de funcionamento regular e bibliotecas com grande capacidade de atracção e aquisição de códices[2].

            Em Portugal, até meados do século XII, a cultura escrita, a leitura e o pensamento estão intimamente ligados à predominância beneditina, onde o uso de textos parece desempenhar uma função quase exclusivamente litúrgica e ritual, para o que não era necessária uma formação prolongada ou tematicamente muito diversificada dos monges. A fundação de novos mosteiros no final da primeira metade do século XII, dotados de outro dinamismo e que não descuravam as letras como fonte de prestígio e distinção simbólica, alteraria de forma radical este panorama. Mas, é ainda para a vida interna do mosteiros ou para o serviço burocrático ao reino que o estudo se orienta. No país em nascimento nunca chega a emergir um único grande centro escolar urbano e para estudos mais aprofundados os clérigos são incentivados ou vêm-se constrangidos a demandar o estrangeiro, tendo o rei e as autoridades eclesiásticas mostrado alguma disponibilidade para a concessão de bolsas para estes estudantes, como aconteceu com Sancho I que desde 1192 criou bolsas de estudos para que cónegos regrantes de Santa Cruz pudessem estudar for a do país. Esta dinâmica intrínseca pode explicar também o ténue papel do país no renascimento das ciências, da literaturas, ou do ideal científico. E, no que se refere às escolas urbanas, a situação também não é diferente da de outros reinos cristãos da Península Ibérica pois, como afirmou H. Santiago-Otero, a esta «no le corresponde la situación de renacimiento cultural que se advierte en la Europa Central»[3].

            Mesmo assim, há uma renovação sensível no domínio intelectual. Como veremos, os cónegos regrantes de S. Cruz Coimbra e os monges cistercienses de Alcobaça ocupam um lugar de relevo na recepção e difusão dessa cultura patrística e exegética com que os mosteiros contribuem para a especulação metafísica e moralística durante os séculos XI-XIII, em resistência e em ruptura face às novas vias do pensamento e da ciência, de difusão urbana, particularmente universitária. Quanto ao privilegiado e prolongado contacto com a cultura árabe, lembre-se que embora a “reconquista” tenha durado século e meio, não vemos esse prolongado contacto materializar-se em algum esforço de preservação ou tradução da cultura árabe, que existiu em outros lugares “reconquistados” da península, como por exemplo em Aragão ou Toledo. Mas, neste aspecto, sobre o qual as fontes são omissas merece relevo a inovadora hipótese formulada recentemente por Charles Burnett quanto à origem minhota e possível acção na corte da condessa e rainha Teresa, de Johannes Hispalensis atque Limiensis, notável autor de traduções arabo-latinas e de alguns pequenos escritos científicos.

            É desta situação paradoxal que se tratará aqui, na tentativa de delinear algumas razões e identificar as consequências dessa coincidência no tempo entre estas três orientações culturais, a saber: recepção da cultura franca, indiferença face à cultura árabe e substituição da cultura moçárabe[4].

1. A cultura dos mosteiros

            A questão que nos interessa agora é esta: que ecos das profundas mutações sócio-culturais europeias, que ocorrem ao longo do século de Afonso Henriques, podemos nós encontrar no território português? e ainda: que papel desempenhou Portugal na renovação filosófica do século XII?

            A resposta mais imediata é brevíssima e negativa, porque não se conhece directa ou indirectamente qualquer obra filosófica (mesmo entendida numa acepção larga) que tenha sido elaborada em Portugal neste período[5]. De facto, os textos escritos relevam quase todos da necessidade de composição narrativa de uma gesta em busca de reconhecimento (com textos como os hoje chamados Annales portucalenses veteres, o Chronicon Lourbanense e pouco mais), ou a glorificação hagiográfica de algum personagem, como forma de afirmar a sua instituição (é o caso das Vita Tellonis e da Vita Theotonii, dois fundadores de Santa Cruz de Coimbra). É claro que isto não equivale a dizer, para já, que neste território onde se ouvia sobretudo o fragor metálico de armas e a fúria das cavalgadas, a premência dos interesses retardasse o voo do mocho de Minerva. Sabemos como seria vão e até anacrónico procurar “a” filosofia, numa época em que o saber se pratica sem fronteiras disciplinares e a filosofia não se distingue da teologia ou das artes liberais. De facto, a filosofia é a coroa que abrange todos os domínio do saber, não é exclusiva de um modo de pensar nem é marcada pelas divisões dos campos disciplinares. A filosofia, ou o que dela restava, pervade as próprias estruturas e conteúdos “curriculares” das mais incipientes escolas, assim como andava pelos livros das bibliotecas monásticas, ou dos de alguns mestres privados que os possuíam por gosto ou em apoio da sua profissão. Afortunadamente temos algum conhecimento da situação escolar e do património librário da época. Na ausência de qualquer obra que aqui tenha sido escrita, apenas nos restam essas fontes indirectas para podermos saber algo sobre a filosofia em Portugal ao longo do século XII [6].

            De facto, mais do que a produção filosófica escrita, que tudo indica ser inexistente ou pelo menos não detectável, as bibliotecas dos mosteiros de S. Cruz de Coimbra[7] e de Alcobaça[8] permitem ainda hoje pressentir a renovação da vida literária e intelectual com que animaram as primeiras décadas da existência de Portugal como reino independente. Convém sublinhar desde já que se trata dos dois mosteiros cuja fundação foi apoiada expressamente pelos favores de Afonso Henriques. Também o mosteiro beneditino de Lorvão viveria neste período um certo florescimento.

            O Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra é bem ilustrativo da difusão e recepção das novas ideias. Fundado em 1131 (a vida em comunidade começa em 1132), adere por volta de 1134 à regra agostiniana, bebendo o modelo da sua organização na canónica de S. Rufo de Avinhão, onde colhe também os novos usos litúrgicos[9], sendo também certo que a despeito desta forte e desejada dependência inicial os cónegos de santa Cruz introduzirão elementos próprios na sua organização[10]. O Mosteiro de Santa Maria de Alcobaça foi fundado entre 1248 e 1251, por iniciativa cisterciense ligada ao mosteiro de Claraval ainda em vida de S. Bernardo, em terrenos cuja doação régia foi confirmada em 1253[11]. Ambos se colocavam na esteira da reforma litúrgica gregoriana e dos novos modelos de espiritualidade monástica. Mais importante ainda, veicularam os modelos culturais e religiosos provenientes do norte e de Roma, num movimento de ruptura com as tradições locais visigóticas. Sintomaticamente, o rei não cobre com os seus favores os mosteiros beneditinos já existente, sobretudo instalados na região mais estável a norte e no vale do rio Douro mas institui estoutros, mais sintonizados com a sua estratégia geo-política e disponíveis para a recristianização do território reconquistado através da substituição dos ritos moçárabes, uma política de apoios que, sem dúvida, também parece ser posta em prática como forma de legitimar a sua autoridade. Mesmo assim, D. Teotónio, primeiro prior de S. Cruz, não se coíbe de assumir uma atitude de frontal protecção dos moçárabes que Afonso e os seus homens de guerra haviam feito cativos numa expedição «às regiões mais remotas de Hispânia vizinhas da metrópole que dá pelo nome de Sevilha». Nota o hagiógrafo que entre esses «fizeram cativos também um grupo de cristãos a que em língua vulgar dão o nome de moçárabes (quos uulgo mozarabes uocitant) e que aí se encontravam sob dominação pagã, ainda que observando habitualmente o rito da religião cristã». É por estes que Teotónio se compadece: arengando com vigor perante o rei e os seus guerreiros, obtém a libertação de «mais de mil homens, sem contar com as suas mulheres e criancinhas»[12]. Descontando o possível exagero do escritor quando à veemência do protesto e à contabilidade dos cativos, retemos a indiferença do rei conquistador e a preocupação do piedoso monge com o destino dos cristãos que tinham resistido sob o domínio árabe (por isso ditos de rito moçárabe), como mais um indício da situação de instabilidade e desamparo político e cultural desta comunidade, perante a chegada de novos senhores que favorecem os modelos litúrgicos reformados. Teotónio parece ter salvo os moçárabes cativos, mas a sua cultura não sobreviveu.

            A deliberada ruptura com a cultura estabelecida nos territórios “reconquistados” pode constatar-se na política eclesiástica do conde D. Henrique desde o final do século XI, que coloca franceses portadores do novo espírito nas dioceses de Coimbra (Maurício Burdino, de Limoges, em 1098[13]), Braga (Geraldo de Moissac, em 1099, e em 1108 suceder-lhe-ia M. Burdino como metropolita de Braga) e Porto (Hugo de Compostela, francês de origem, em 1113); a mesma política é continuada pelo seu filho Afonso Henriques, como o testemunha a nomeação do cruzado inglês Gilberto de Hastings para bispo de Lisboa, logo após a reconquista da cidade, que terminou a 4 de Agosto de 1147, na sequência da captura e execução do velho bispo moçárabe durante o saque da cidade e das perseguições realizados pelos cruzados estrangeiros[14]. De qualquer forma, esta presença de guerreiros anglo-saxónicos parece abrir relações de natureza cultural e religiosa com esta região cujos contornos começam a ser conhecidos[15].

            A mesma orientação política está presente na promoção «oficial» da escrita carolina, que funcionou como poderoso elemento simbólico e físico da nova prática cultural, de que os scriptoria dos mosteiros de Santa Cruz e de Alcobaça foram instrumento, contra esse laço material com a tradição moçárabe representado pela escrita hoje chamada "visigótica". É significativo que estes dois importantes centros de recepção e difusão da cultura escrita e escolar não tenham desempenhado qualquer papel na preservação da cultura moçárabe, e menos ainda da árabe. A presença em Portugal da nova escrita é assinalável desde 1050, mas o desaparecimento definitivo da visigótica ocorre já no último quartel do século XII. As causas desta substituição são multifactoriais como assinalou Maria José A. Santos, que atenua a tese tradicional da relação de causalidade entre a presença dos nobres estrangeiros, a introdução do novo rito e do novo monaquismo e o consequente aparecimento e difusão da escrita carolina, porque estes se processam em período de longa duração e não de modo instantâneo e, como se constata pela data referida, começa algum tempo antes daqueles fenómenos[16]. Segundo a autora, essa entrada teria ficado sobretudo a dever-se à chegada e uso de livros escritos na nova grafia. Contudo, como reconhece, esta hipótese carece de testemunhos que tenham sobrevivido e a atestem, mas que se torna verosímil pelo facto de por essa altura terem começado a chegar as reformas gregorianas e com elas os novos livros litúrgicos. Mesmo assim, não se pode negar que o novo poder político, ou eclesiástico ou monástico, favorece exclusivamente a escrita carolina (com a provável resistência de Coimbra, tanto na Sé como em Santa Cruz, de onde provêm os últimos testemunhos da velha escrita). Outras escritas regionais, como, por exemplo, a beneventana da Itália meridional, sobreviveram muito mais tempo à pressão da carolina e da gótica, porque o seu uso não foi política ou culturalmente condicionado, como aconteceu na Península Ibérica onde a difusão da nova escrita é comparativamente rápida. No manuscrito 30 de Santa Cruz pressente-se o dramatismo desta aparentemente simples alteração na escrita: o seu primeiro texto é a História eclesiástica de Eusébio de Cesareia e até ao f. 41ra está escrito em letra visigótica de transição, contudo, a meio de uma frase, esta interrompe-se e é retomada por outra mão mas já em escrita gótica inicial por uma mão que, até ao que final do que nesse caderno estava em branco, ainda tenta imitar o traçado mas não a forma das letras visigóticas, finalmente, a partir do f. 49 e até ao final volume, o copista que em 1191 terminará o seu trabalho usa com perfeito domínio a escrita gótica sem qualquer preocupação de mimetizar a escrita do primeiro copista. O que terá levado o primeiro copista a interromper o seu trabalho permanecer-nos-á para sempre velado, mas estes fólios dão-nos a imagem das mudanças súbitas por abandono da cultura moçárabe substituída pelas práticas agora mais valorizadas do costume franco.

            A pública defesa que o prior de S. Cruz faz dos moçárabes perante o rei Afonso Henriques, referida atrás, não deve ser estranha à ligação pessoal de Teotónio à Sé de Coimbra, praticamente a única a mostrar prolongada resistência ao novo rito gregoriano e à cultura franca. Esta atitude local poderá explicar a existência de livros moçárabes, isto é textos latinos em escrita visigótica, não só no tesouro da Sé mas também no próprio mosteiro de S. Cruz de Coimbra. O seu estado fragmentário quando foram desmembrados para reencadernar outros códices, o que só é possível por terem caído em desuso[17]. Quanto a textos árabes ou possíveis traduções do árabe, apesar de aqui e ali serem referidos em inventários e testamentos, nada sobreviveu.

            As bibliotecas dos mosteiros de Santa Cruz e de Alcobaça desempenharam um inegável papel na revitalização da vida intelectual e espiritual da última metade do séc. XII em Portugal. A situação dos mosteiros de tradição beneditina, sob o peso do seu isolamento face aos circuitos de difusão do saber, é bem diferente. Como escreveu José Mattoso a propósito dos mosteiros na região do Porto: «De fait, les moines portugais de cette époque, vivant aux frontières de l’Islam, n’ont aucune prétension d’ordre intellectuel. (...) Dans les documents connus, aucune référence explicite n’est faite à la “bibliothèque”», mesmo assim os livros existiam e eram guardados e distribuídos para leitura como impunham os costumeiros e a regra de S. Bento[18]. De facto, nessas instituições a biblioteca e mesmo o scriptorium, quando existiam como espaços autónomos, não ocupavam o lugar de destaque que teriam em Santa Cruz ou Alcobaça.

            Da dependência de Santa Cruz de Coimbra face a S. Rufo de Avinhão e de Alcobaça face a Claraval resulta directamente a personalidade espiritual e doutrinal que cada mosteiro assumiu. Os primeiros códices de que se dotaram diziam respeito à liturgia, à lectio divina ou à exegese, com o intuito de servir à formação intelectual dos monges e dos clérigos, na linha das reformas monásticas do século[19]. É bem conhecido o caso de S. Cruz referido na Vida de D. Telo (obra escrita por Pedro Alfarde cerca de m dos seus fundadores e ele próprio antigo copista da Sé de Coimbra) onde se descrevem três momentos que mostram a preocupação dos promotores da nova canónica em equipar o mosteiro com os livros de constituição e para o serviço divino, dentro das novas orientações eclesiásticas. É à canónica de S. Rufo de Avinhão que, por várias vezes, se deslocam cónegos de Santa Cruz para procurar e copiar livros que «faziam falta» à vida do mosteiro[20]. A comitiva que no regresso de audiências com o papa chega em 1135 a Avinhão a pé, depois de peripécias várias que o narrador interpreta como sinal do «incomparável patrocínio de Deus», aproveitará para que um dos seus, o monge Domingos, «selando previamente amizade com os presbíteros de S. Rufo», traga consigo o Costumeiro, que ele próprio tinha ido para procurar, obra indispensável para a organização da vida comunitária do novo mosteiro[21]. Em 1136 é enviado o presbítero Pedro Salomão e o seu ajudante para aí o copiar de novo juntamente com outros livros «e eles prodigalizam-lhes a maior abundância de tudo, facultando-lhes quanto necessitavam, quer dos Costumeiros quer quanto dos outros livros a copiar». A minúcia descritiva do hagiógrafo permite-nos saber que se demoraram nesta tarefa desde 11 de Novembro de 1136 (dia da festa de S. Martinho) até ao dia 11 de Abril de 1137 (dia de Páscoa), tendo chegado a Coimbra «cerca de quinze dias antes da festa de S. João, trazendo consigo um Costumeiro plenário, de todo o ano»[22]. Mais tarde, quando em 1139 D. João Peculiar, outro dos fundadores de S. Cruz e agora arcebispo de Braga, regressava de uma embaixada que o mosteiro enviara ao papa Inocêncio III em súplica de recomendação de privilégio, a passagem por S. Rufo servirá de novo para copiar livros:

(…) o mesmo presbítero Pedro permanece em S. Rufo, quase um ano inteiro, a saber se havia alguma coisa que fizesse falta, quer no Costumeiro, quer em algum saber eclesiástico (ecclesiastica doctrina). E foi assim que, bem instruído em tudo quanto dizia respeito à disciplina eclesiástica (ecclesiastico ordine), nos trouxe um Capitulário inteiro, o Antifonário, o Costumeiro, o <Comentário> sobre < o Evangelho de> João, assim como a sua Interpretação do Génesis à letra e as Questões sobre os evangelhos de Mateus e de Lucas, o Hexameron de Ambrósio, bem como o seu Sobre a Penitência, e ainda o Livro pastoral [ou Sobre a dignidade sacerdotal] e a Exposição de Lucas de Beda[23]

            Neste episódio é já bem evidente um novo interesse da comunidade regrante na ecclesiastica doctrina e os instrumentos preferidos são precisamente textos exegéticos de três das mais importantes autoridades patrísticas: Agostinho, Ambrósio e Beda. Tenho defendido que o actual manuscrito 58 de Santa Cruz é precisamente o que o presbítero Pedro traz de S. Rufo, mas sem que possamos saber se foi ele a manuscrevê-lo, códice esse que inclui exactamente as últimas seis obras enumeradas e precisamente na mesma ordem[24].

            Apesar de algumas destas obras conterem inegáveis conteúdos filosóficos, convém dizer que a filosofia ou as sete artes liberais têm uma presença muito ténue nas estantes das bibliotecas monásticas. Os textos habituais para o ensino das artes da linguagem quase não existiam, ou não sobreviveram. Seria também fácil constatar a ausência, entre os manuscritos do século XII ou do início do XIII, de Boécio, do Organon Aristóteles, para já não falarmos de outros textos e autores recém traduzidos a partir do árabe, que estiveram na raiz dessa inovadora irrigação bibliográfica que alterou os rumos da filosofia no ocidente. O mesmo se poderia dizer quanto à presença da literatura clássica. Depois da época de Martinho de Braga e do desaparecimento dos últimos traços de romanidade com a difusão da cultura e do rito visigóticos e das formas peculiares da sobrevivência da cultura latino-cristã no período árabe, a presença de textos clássicos é indetectável e são escassíssimas as referências a códices com textos clássicos não patrísticos. Se não parece que em S. Cruz tenha existido alguma vez um interesse classicista, já em Alcobaça essa presença é sensível, mas em período mais tardio[25]. Mesmo obras muito difundida e emblemáticas da sacra doctrina, como as Sentenças de Pedro Lombardo, não existem em manuscritos do século XII, e os livros de S. Anselmo existentes em Alcobaça também são de data posterior. Mas inúmeros manuscritos do século XII atestam o vigor das leituras teológicas destes homens[26]. Nessas bibliotecas pontificam as obras úteis à lectio divina, à exegese escriturística e à formação litúrgica geral. Como seu complemento sobressaem as enciclopédicas características daquele pensamento simbolista e espiritualista, escritas por autoridades acarinhadas como Isidoro[27], Beda ou Rábano Mauro[28], que o século XII veio simultaneamente prolongar, mas também afastar com a emergência de enciclopedistas influenciados pelos novos textos e pela ciência árabe, como Adelardo de Bath, Hermano de Caríntia, ou os chartrenses, dos quais não se encontram traços em bibliotecas ou registos portugueses. Note-se que mesmo alguns dos autores e compiladores do século XII presentes nessas bibliotecas, como Hugo de Folieto e Papias, relevam do mesmo espírito simbolista e alegorizante[29]. É ainda o antigo saber que vemos perdurar, como não é de estranhar em ambientes monásticos, dedicados aos cuidados pastorais e ao serviço religioso. É difícil determinar qual o grau de importância do enciclopedismo clássico e baixo-medieval na cultura ou nas possíveis escolas monásticas, até porque a presença das obras relativas ao trivium de autores referidos também se pode dever ao imenso prestígio de que disfrutavam em matérias teológicas e exegéticas, como é bem comprovável pelo grande número de manuscritos do século XII com textos seus.

            No domínio espiritual e teológico chegam de imediato a S. Cruz e Alcobaça algumas obras dos mais importantes teólogos do século, empenhados na renovação monástica, litúrgica e de costumes, como Bernardo de Claraval[30], Ricardo[31] e Hugo[32], cónegos de S. Victor, ou outros de idêntica orientação espiritual[33].

            A este propósito deve ser bem salientada a existência em dois manuscritos portugueses, os únicos conhecidos[34], da Expositio in libro Ihesu filii Sirach, um comentário ao Eclesiástico, seguido de um Sermão sobre a I Epístola de S. João, escrita por um mestre Hugo, que alguns erradamente identificaram como sendo o monge de S. Victor. A presença desta obra, escrita seguramente no séc. XII, nos dois mosteiros adquire grande importância, não só por serem os dois únicos apógrafos conhecidos, mas também por não estar fora de hipótese tratar-se de obra de autor português, o que a tornaria absolutamente singular dada a já referida ausência de outra produção teológica ou filosófica ao longo deste século. Apenas estudos mais aprofundados poderiam conduzir a alguma conclusão.

            Também no plano espiritual e cultural estes dois mosteiros se colocam do lado das novas fundações monásticas, vitorina ou cisterciense, onde sobressaíam, respactivamente, as figuras e carisma de intelectuais como Hugo de S. Victor e Bernardo de Claraval. Estes dois autores desfrutaram desde cedo em Portugal de grande prestígio e ascendente intelectual, como o atesta a presença de obras suas em ambos os mosteiros, praticamente desde as respectivas fundações.

            Em contrapartida, por aquilo que hoje podemos conhecer, não é detectável em Portugal ao longo do século XII qualquer presença ou influência directa da nova literatura filosófica: as obras cosmológicas dos chartrenses, os comentários lógicos e dialécticos, as novas enciclopédias, os textos naturalísticos, as súmulas escolares de filosofia, as sumas e sentenças de teologia. Alguma dessa produção, como pudemos ver acima, virá a entrar em Alcobaça nos séculos seguintes e em menor grau também em S. Cruz,[35] mas tudo leva a crer que já em reacção a outras inovações mais arrojadas dos séculos XIII e XIV.

2. A cultura dos mestres

            Contudo, aquelas obras não estão totalmente ausentes de Portugal no período de Afonso Henriques, pois no Livro das calendas da Sé de Coimbra está registada, por morte de Mestre Martins em Paris, a doação de um impressionante rol de obras, que abrangem campos tão diversos como a teologia, a sermonística, e exegese, a história, a medicina, a astronomia, a filosofia, a liturgia, a aritmética:

[1175 Fevereiro 1] Paris, morte de mestre Martins cónego presbítero que deu à canónica um livro de sermões e parte das Epístolas de Paulo em sete cadernos, o Cântico dos Cânticos, o livro de Isodoro sobre a exposição das Histórias, prática de medicina, um livro de astronomia, a Filosofia de mestre Guilherme, o livro Defloratione da missa, um livro de Garlando, um livro de questões, as Dietas particulares, um livro de aritmética, um ábaco, um livro de Constantino, outras Dietas, um livro de medicina, um livro sobre Mateus[36].

            Não sendo este o lugar para tentar identificar todas estas obras, elencadas sem um critério evidente, atente-se pelo menos no que nos podem dizer quanto à filosofia e campos afins. Trata-se de uma biblioteca privada bem fornecida, de pelo menos 14 obras (mas não sabemos em quantos códices), onde se cruzam obras úteis à vida eclesiástica e ao trabalho de mestre. Repare-se desde logo na modernidade deste património, porquanto três dos autores nomeados são dos séculos XI-XII: Guilherme, Garlando e Constantino. A «Filosofia de mestre Guilherme (philosophiam magistro Villielmi)» aparenta ser a Philosophia mundi de Guilherme de Conques,[37] discípulo de Bernardo de Chartres e depois mestre na mesma escola, onde, por volta de 1125, escreveu esta obra que se ocupa do homem e do cosmos, recorrendo abundantemente a fontes médicas. Embora a referência «livro de Garlando (librum Gerlandi)» não seja muito elucidativa, poderá apontar quer para o poeta e gramático do século XII João de Garlandia (Iohannes de Garlandia)[38], quer para Garlando computista (Garlandus compotista), um intelectual do século XI (c. 1015-1084/1102), natural de Liège e depois mestre em Besançon, de vastos interesses intelectuais que escreveu obras de cronologia, astronomia, aritmética, música, para além de um compêndio de lógica e uma enciclopédia de teologia[39]. Embora não saibamos qual a obra legada, a fazer fé nos restantes livros da lista é mais provável que o «librum Gerlandi» versasse temas científicos e não é improvável que se trate da sua obra mais famosa, a Dialectica, cuja difusão e influência em autores seguintes parece ter sido reduzida[40]. Sem outras indicações é quase impossível decifrar de que tratava o «livro de questões (librum questionum)», designação interessante porque identifica a obra pelo género literário e método problematizador que passará a ser usado em todas as áreas científicas e que constituiu uma das mais importantes aquisições da racionalidade argumentativa do século XII e verdadeiro traço caracterizador da escolástica posterior[41]. O mestre doa ainda um importante conjunto de cinco obras médicas, entre as quais «um livro de Constantino (librum Constantini)», que aponta para Constantino Africano, monge cassinense do século XI, com notável trabalho de tradução para latim de obras médicas a partir do árabe, para além de alguns pequenos tratados próprios e a adaptação do manual de Abu Ja‘far Ahmad ibn Ibrahim ibn abi Kalid al Jazzar, Kitab Zad al-musafir wa-qut al-hadir, conhecido no ocidente como Viaticum Constantini. Outra tradução que lhe era atribuída como obra própria, o Pantegni, seria profusamente utilizada em matéria física e antropológica pelos filósofos dos séculos seguintes[42]. É para uma destas duas obras que poderá apontar a doação. Para além das obras filosóficas e médicas não tem menos interesse a notável presença de dois tratados sobre artes do quadrivium, astronomia e aritmética, bem como um ábaco (ou um livro sobre o ábaco?).

            O proprietário dos livros era provavelmente Mestre por alguma escola de Artes liberais ou mesmo de medicina. Não é despiciendo que fosse Mestre em Paris, possuindo uma biblioteca actualizadíssima e compaginada com os interessas da época, em perfeita integração na nova cultura urbana. A extensão da lista é notável pela sua diversidade e modernidade, sem paralelo nas biblioteca dos mosteiros atrás referidos, tendo em conta, repito, o limitado conhecimento que podemos ter dos respectivos armários durante o século XII[43]. Após a sua doação, que utilização terá sido feita destes livros pelos cónegos e leitores da Sé de Coimbra? Ignoramo-lo. Também desconhecemos qualquer obra teológico-filosófica que no século XII tivesse resultado do estudo dessas obras ou das dos outros mosteiros. A ausência de testemunhos, mesmo indirectos, parece indicar que de facto não foram escritas. Como sabemos, os interesses dos meios literatos, monásticos ou catedralícios, centravam-se preferentemente na literatura hagiográfica, na historiografia e analística, e sobretudo na produção de diplomas. De facto nestes domínios há alguma produção original, apesar da inspiração em modelos esteriotipados[44].

            As bibliotecas dos mosteiros fundados no tempo de Afonso Henriques haveriam de produzir os seus teólogos e filósofos, não no tempo do primeiro rei, mas seguramente em consequência do património librário então constituído, que permitia uma primeira e até sólida formação intelectual. De qualquer forma, os autores e obras que vieram a obter alguma projecção desenvolveram a sua actividade no estrangeiro. Fruto também da política régia de bolsas para estudantes que prosseguiam estudos no estrangeiro.

            Logo no primeiro quartel do século XIII, Fernando Martins, depois frei António e santo venerado em Pádua e Lisboa, frequentou certamente as bibliotecas dos mosteiros de cónegos regrantes de S. Vicente de Fora em Lisboa e de S. Cruz em Coimbra, vindo a produzir na longínqua Itália uma obra escrita que também espelha com vigor e profundidade as leituras do tal enciclopedismo antigo que subsistia no mosteiro[45]. Um outro autor, quanto a mim também saído do ambiente monástico português, produzirá no final da primeira metade do século XIII uma paráfrase do De anima de Aristóteles eivada de psicologia simbolista e de espiritualidade monástica chartrense entrelaçada com a filosofia de Avicena e a nova metafísica peripatética; trata-se de Pedro Hispano Portugalense, mestre de Artes e Médico, autor de uma Scientia libri de anima e de um De longitudine et brevitate vitae, autor que tem sido confundido com o Pedro Julião que em 1276 veio a ser papa sob o nome de João XXI[46]. Não menos interessante e enigmático, pelos seus interesses e pelo fáustico percurso pelas ciências naturais entre Toledo e paris, é o dominicano frei Gil de Santarém.

            Uma consequência, ainda mais distante, do papel didáctico destes mosteiros (onde ao longo de todo o século XIII continua a concentrar-se a formação escolar[47]) e da sua necessidade de afirmação intelectual, encontrá-la-emos na carta de informação enviada ao papa em 12 de Novembro de 1288, sobre a instituição do studium generale português nesse final do século XIII[48], documento que permanece como uma marca da hegemonia dos mosteiros na vida escolar e intelectual portuguesa numa altura em que continuavam a não existir verdadeiras escolas urbanas, mais de um século depois de estas, nomeadamente em França, terem contribuído decisivamente para agitar ventos de renovação filosófica.

*

            São parcos os elementos disponíveis sobre a situação da filosofia nos territórios lusitanos durante o século XII. Que se saiba, não se escreveu aí qualquer obra que possa incluir-se no âmbito da filosofia, mas constata-se um crescente interesse pelas obras de exegese e especulação teológica, transportadas pela vaga de reformas monásticas que chegavam do norte. Essa influência é acompanhada pela supressão (tudo indica que deliberadamente) de toda a cultura moçárabe e dos prováveis focos de cultura árabe. Trata-se de uma opção antes de mais geo-política, que terá efeitos colaterais no próprio respirar da vida intelectual portuguesa nascente, inserida definitivamente no espaço da latinidade, sob a influência da cultura franca e da cúria romana. A entrada na via europeia ocorre sem que o Portugal nascente pareça ter dado qualquer contributo para a recuperação do legado árabe, o qual, paradoxalmente, ao longo do século XIII recolocaria a Europa na senda da racionalidade grega através de um torrencial fluxo de traduções arabo-latinas.

            Algum tempo depois da sua fundação, as bibliotecas monásticas portuguesas vieram a produzir os seus teólogos e filósofos, ainda herdeiros do século XII nas suas hesitações e indefinições de orientação filosófica e doutrinal (que não valerá a pena estar agora a particularizar). Com esta sequela que atrás se esboçou sumariamente, a renovação intelectual do século XII aparece-nos, em Portugal, diferida e de certo modo diluída no tempo.

            Os mosteiros de S. Cruz de Coimbra e de Alcobaça, poderosos também pela influência sobre um vasto território e sobre inúmeros outros mosteiros que deles dependiam, viriam a ser os dois maiores centros de ligação com a cultura franca, praticando plenamente as novas directivas de reforma litúrgica dimanadas da cúria romana, sendo por isso actores principais da sua irradiação a todo o território nacional, re-instaurando uma unidade linguística, de ritos e de formas de vida cultural. Como vimos, só algum tempo mais tarde, já no século XIII, a filosofia teria alguns afloramentos na obra de autores portugueses que, não o esqueçamos, escreveram os seus textos no estrangeiro, precisamente em Itália e França.

            Com a entrada da cultura que nos séculos XI e XII restabeleceu a ligação com a cúria romana e com a romanidade clássica e chegava através dos francos, e o simultâneo apagamento das culturas árabe e moçárabe [ver próximo artigo], o destino europeu de Portugal ficava instaurado, mas esta ruptura impedia também um papel mais forte na recuperação do legado científico e cultural árabe.

(Continua no próximo número: A filosofia no século XII. 3. Em Portugal: o legado árabe e o tradutor João de Sevilha e Lima)



[1] Ver a primeira parte deste estudo, publicada em Mirandum 9 (2000) 51-74; versão on-line: http://www.hottopos.com.br/mirand9/meirin.htm . Retomo aqui a segunda parte de «Ecos da renovação filosófica do século XII, em Portugal no tempo de Afonso Henriques. A cultura que vem da Europa e o legado árabe», in IIº Congresso Histórico de Guimarães, D. Afonso Henriques e a sua época (Guimarães, 24-27 de Outubro de 1996), Actas do Congresso, vol. IV: Sociedade, administração, cultura e Igreja em Portugal no século XII, Câmara Municipal de Guimarães, Guimarães 1997 (pp. 151-170).

[2] Um balanço das reformas eclesiásticas e monásticas durante os séculos XI-XII na península Ibérica encontra-se em R. García-Villoslada (dir.) Historia de la Iglesia em España, vol. II-1º: La Iglesia en la España de los siglos VIII-IX (Biblioteca de Autores Cristianos, serie maior, 17) La Ed. Católica, Madrid, 1982, em especial os cap. IV, VI-IX. Em duas colectâneas de estudos de José Mattoso encontram-se diversos contributos que incidem sobre os movimentos de reforma monástica e a consequente renovação cultural e espiritual em Portugal nos séculos XI-XIII, com especial incidência no monaquismo beneditino e suas derivações, cfr. J. Mattoso, Religião e cultura na Idade Média portuguesa (Temas portugueses), INCM, Lisboa 1982 e Id., Portugal medieval, novas interpretações (Temas portugueses), INCM, Lisboa 1985.

[3] H. Santiago-Otero, La cultura en la Edad Media Hispana (1100-1470), Ed. Colibri, Lisboa 1996, p. 79. Sobre as escolas e principais autores da Península nos séc. XII-XIII, ver Adeline Rucquoi, «Contribution des Studia generalia à la pensée hispanique médiévale», in J.M. Soto Rábanos (coord.), Pensamiento medieval hispano. Homenaje a Horacio Santiago-Otero, CSIC — Diputación de Zamora, Madrid 1998, vol. II, pp. 737-770.

[4] Os dois últimos tópicos serão mais desenvolvidos em próximo artigo.

[5] Veja-se o facto de nada existir sobre este período no domínio latino-cristão, na recentíssima e desenvolvida obra: P. Calafate (ed.), História do pensamento filosófico português, vol. I: Idade Média, Ed. Caminho, isboa 1999.

[6] O mesmo tipo de análise indirecta foi já usada com sucesso por J. Mattoso, Le monachisme ibérique et Cluny. Les monastères du diocèse de Porto de l’an mille à 1200 (Recueil des travaux d’histoire et de philologie, IVe s., 39) Université de Louvain, Louvain 1968, p. 280: «Les moines portugais du XIe et du XIIe siècle n’ont laissé auncun traité spirituel, pas même des sermons ou des homélies», o que justifica o recursos à análise das fórmulas usadas nos documentos para obter um conhecimento, indirecto, da formação espiritual dos monges, através do seu eco nas fórmulas de legitimação jurídica pela autoridade da fé. Ver também de J. Mattoso, «A "lectio divina" nos autores monásticos da Alta Idade Média», reed. in Id., Religião e cultura..., op. cit., pp. 325-353.

[7] Ver no novo catálogo dos manuscritos de S. Cruz (A.A. Nascimento — J.F. Meirinhos (org.), Catálogo dos códices da livraria de mão do Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra na Biblioteca Pública Municipal do Porto, Ed. da Biblioteca Pública Municipal do Porto, Porto 1997) os estudos de A.F. Frias «O mosteiro de Santa Cruz. Perspectivação histórica» (pp. XXXI-LVIII) e de A.A. Nascimento «O Scriptorium de Santa Cruz de Coimbra: momentos da sua História» (pp. LXIX-XCV), bem como a introdução da obra A.A. Nascimento, Hagiografia de Santa Cruz de Coimbra, Edições Colibri, Lisboa, 1998. Existe um catálogo da biblioteca e do cartorário, intitulado Bibliotheca Manuscripta Monasterii S. Crucis Colimbricensis e que foi elaborado por D. José de Avé-Maria, um dos seus últimos bibliotecários, no início do século XIX, pouco tempo antes da incorporação do fundo na Biblioteca Pública Municipal do Porto em 1834; foi publicado por A.G.R. Madahil, «Os códices de Santa Cruz de Coimbra», in Boletim da Biblioteca da Universidade de Coimbra, 8 (1927) 379-420, 9 (1928) 192-229 e 352-383, 10 (1932) 55-105, 11 (1933) 50-96. Um actualizado levantamento dos códices datáveis do período que aqui nos interessa encontra-se em Santo António em Santa Cruz. Códices do Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra no Tempo de Santo António (Roteiro da Exposição da BPMP no VIII Centenário do Nascimento de Santo António - 26 de Setembro a 8 de Dezembro de 1995), Biblioteca Pública Municipal do Porto, Porto 1995.

[8] O Inventário dos códices Alcobacenses, 5 vol., Biblioteca Nacional, Lisboa 1930-1932, a que foi acrescentado um volume de índices em 1978, fornece preciosas mas não exaustivas informações sobre este fundo de manuscritos. Um catálogo mais actualizado, embora com limitações, foi publicado por Thomas L. Amos, Descriptive inventories of Manuscrips Microfilmed for the Hill Monastic Library. Portuguese Libraries: The «Fundo Alcobaça» of the Biblioteca Nacional, Lisbon, 3 vol. [o último com colaboração de J. Black], Hill Monastic Manuscript Library, Collegeville, Minn., 1988-1990. Sobre a história e as particularidades do scriptorium de Alcobaça ver A.A. Nascimento — A.D. Diogo, Encadernação portuguesa medieval. Alcobaça, (Temas portugueses) Imprensa Nacional Casa da Moeda, Lisboa 1984. Para o conhecimento dos textos e das leituras em Alcobaça são indispensáveis pelo menos os seguintes textos de A.A. Nascimento: «A experiência do livro no primitivo meio alcobacense», in IX centenário do nascimento de S. Bernardo. Encontros de Alcobaça e Simpósio de Lisboa (Memorabilia Christiana 2) Universidade Católica, Braga (pp. 121-145); Idem, «Livro e leituras em ambiente alcobacense», in ibidem, pp. 147-174; bem como a entrada lexical «Alcobaça» no Dicionário da literatura medieval galega e portuguesa, ed. Caminho, Lisboa 1993, pp. 32-35.

[9] P.R. Rocha, «La rayonnement de l’Ordre de Saint-Ruf dans la péninsule ibérique, d’après sa liturgie», in Le monde des chanoines (Xie-XIV s.), Cahiers de Fanjeaux, 24, Privat Ed., Paris 1989, pp. 193-208.

[10] A.F. Frias, De signis pulsandis. Leitura hermenêutica de S. António de Lisboa e de Frei Paio de Coimbra. 2 vol., Porto 1994; tese de Mestrado apresentada à Faculdade de Letras da Univ. do Porto, que inclui a edição do Costumeiro primitivo de Santa Cruz..

[11] Sobre o papel de ambos os mosteiros na política régia afonsina ver J. Mattoso, «1096-1325», in Id. (dir.) História de Portugal, vol. II: A monarquia feudal (1096-1480), pp. 9-309, Círculo de Leitores, Lisboa 1993, cfr. pp. 82-86.

[12] Este episódio é relatado no cap. XVII da Vita Sancti Theotonii / Vida de D. Teotónio. Ver a nova edição crítica e tradução em A.A. Nascimento, Hagiografia de Santa Cruz de Coimbra, ed. cit., pp. 176-177.

[13] Suceder-lhe-ia D. Gonçalo, bispo entre 1109-1128. Segundo os historiadores D. Telo terá fundado S. Cruz por o pouco diplomático infante Afonso Henriques o ter preterido em favor de Bernardo arcediago de Braga, como sucessor de Gonçalo; também não é improvável que Telo fosse visto como demasiado próximo das pretensões de Toledo, contra a desejada ligação a Braga, cfr. por exemplo A.A. Nascimento, Hagiografia de Santa Cruz de Coimbra, ed. cit., pp. 25-30 e 131-132 (n. 33).

[14] Cf. Conquista de Lisboa aos Mouros em 1147. Carta de um cruzado inglês que participou nos acontecimentos, trad. J.A. de Oliveira, Livros Horizonte, Lisboa 1989, pp. 77-79. Durante muito tempo esta obra, De expugnatione Lyxbonensi, foi erradamente atribuída a Osberno, a quem é de facto dirigida; H. Livermore (em «The “Conquest of Lisbon” and its Author», Portuguese Studies, 6, 1990, pp. 1-16) identificou o autor “R.” com o padre anglo-normando Raol.

[15] Anne J. Duggan, «Aspects of Anglo-Portuguese relations in the Twelfth Century. Manuscripts, relics, Decretals and the Cult of St Thomas Becket at Lorvão, Alcobaça and Tomar», Portuguese Studies, 14 (1998) pp. 1-19. Estas relações podem explicar a rápida difusão em Portugal do culto de Tomás Becket, cuja Vita e Miracula também se encontram noutro manuscrito do séc. XII-XIII em S. Cruz (ms. 60), sobre o qual A. Duggan publicará em breve um estudo com novos elementos quanto às relações culturais anglo-portuguesas no séculos XII-XIII.

[16] Maria José Azevedo Santos, Da visigótica à carolina, a escrita em Portugal de 882 a 1172 (Aspectos técnicos e culturais), (Textos universitários de ciências sociais e humanas) FCG-JNICT, Lisboa 1993, cfr. pp. 260- 272 e 279.

[17] Ver o frag. de um códice jurídico do séc. IX no ms. 52 de Santa Cruz, ou até um pedaço de pergaminho com escrita visigótica inserido no interior da pasta de papel que serve de miolo à capa do ms. 90 da mesma biblioteca; para códices completos ver os ms 4, 30, 47, 51 de Santa Cruz. Também nas bibliotecas de Alcobaça e de Lorvão sobreviveram códices em escrita visigótica de transição para a carolina ou a gótica.

[18] J. Mattoso, Le monachisme ibérique..., op. cit., p. 293. Na mesma linha ver J. Mattoso, «A cultura monástica em Portugal», reed in Id., Religião e cultura..., op. cit., pp. 355-393, sendo as páginas 377 e segg. dedicadas às bibliotecas.

[19] A relação directa entre as novas orientações monásticas e o tipo e conteúdo de livros copiados é constatado por D. Nebbiai Dalla Guarda, «Livres et bibliothèques dans les monastaires français au XIIe siècle», in F. Gasparri (org.), Le XII.e siècle. Mutations et renouveau em France dans la première moitiè du XIIe siècle (col. Cahiers du Leopard d’Or, 3) Ed. Le Leopard d’Or, Paris 1994, pp. 205-255.

[20] Cfr. A. Cruz, Santa Cruz de Coimbra, op. cit., pp. 43-50.

[21] Vita Tellonis, VII, em A.A. Nascimento, Hagiografia de Santa Cruz de Coimbra, Edições Colibri, Lisboa, 1998, p. 71.

[22] Vita Tellonis, VIII-IX, Ibidem, pp. 76-77.

[23] Vita Tellonis, XIII, Ibidem, pp. 80-81.

[24] Cfr. a minha descrição do manuscrito em A.A. Nascimento — J.F. Meirinhos (org.), Catálogo dos códices da livraria de mão, obra cit., pp. 271-274.

[25] Ver a propósito o ensaio de A.A. Nascimento, simultaneamente programático e de síntese do estado da questão, onde também se propõe o recurso a metodologias de análise indirecta para obter alguma informação: «Étant donné que les témoins matériels de la lecture des auteurs anciens ont disparu, il ne nous reste qu’a interroger les textes pour percevoir les éventuels effets de cette lecture», A.A. Nascimento «La recéption des auteurs classiques dans l’espace culturel portugais: une question ouverte», in Cl. Leonardi - B.M. Olsen (ed.) The Classical Tradition in the Middle Ages and the Renaissance. Proceedings of the First European Science Foundation Workshop on «The Reception of Classical Texts» (Florence, Certosa del Galluzzo, 26-27 June 1992) (Biblioteca di Medioevo latino, 15) CISAM, Spoleto 1995, pp. 47-56, cit. p. 53.

[26] O escrúpulo historiográfico obriga a dizer que a existência hoje de manuscritos datáveis do século XII, não significa que eles pertenciam desde essa altura aos fundos codicológicos onde hoje se conservam. Poderiam ter sido oferecidos ou adquiridos muito mais tarde. Por outro lado, sabemos bem que as datações são na maior parte dos casos conjecturais e portanto falíveis, por vezes com erros de muitas décadas ou séculos. Por estas razões cada caso aduzido a seguir exigiria uma investigação particular (para a qual raramente haveria informações suficientes) no sentido de se determinar a época de entrada ou o uso desses manuscritos nos respectivos mosteiros. Por outro lado, muitos desses manuscritos poderiam estar décadas sem atrair a atenção de qualquer leitor, enquanto outros seriam disputados a cada momento. Em conclusão, assinalar a presença de um manuscrito afinal pode querer dizer pouco ou nada sobre a sua efectiva influência.

[27] Etimologias: S. Cruz 17

[28] De computo: S. Cruz 8; Alcobaça 426.

[29] Hugo de Folieto em códices do início do século XIII: Santa Cruz 34 (Porto, BPMP 43), Alcobaça 238, e um códice de 1183: Lorvão 5 (ANTT, C.F. 90). Papias: S. Cruz 8 (Porto, BPMP 30, séc. XIII), Alcobaça 424, 425 e 426. Sobre a presença e a influência de Papias no ensino e na formação da dicionarística em Portugal ver T. Verdelho, As origens da Gramaticografia e da Lexicografia Latino-Portuguesas (Linguística, 18) Junta Nacional de Investigação Científica e Tecnológica, Aveiro 1995, em especial as pp. 150-156, 183-190.

[30] Santa Cruz 33 (Porto, BPMP 44), códice contendo os Sermões de S. Bernardo de Claraval, sendo a última parte datada de 1187 (que aparenta ser contemporânea da primeira parte). Como é natural, esta presença é mais sensível em Alcobaça, mas também reduzida face à produção do santo e ao facto de ele ter sido patrono fundador do mosteiro: Sermões, epístolas e pequenos tratados (Alcobaça 152), Sermões sobre o Cântico dos Cânticos (Alcobaça 357), Sermões e Sentenças (Alcobaça 358), para além de outros pequenos textos em miscelâneas do século XIII: Alcobaça 168, 180, 187.

[31] Em manuscritos do século XIII: Beniamin minor: Santa Cruz 32, ou o De dignitate sacerdotali: Alcobaça 170 ou o Tractatus de statu interioris hominis: Alcobaça 379 e outras obras em Alcobaça 238, etc.

[32] Em Santa Cruz, para além de um fragmento do séc. XII do De arrha animae (4 fólios, que sobreviveram como guardas anteriores do ms. 20 de Santa Cruz), encontram-se outras obras completas do autor: Speculum Ecclesiae: Santa Cruz 32 (séc. XIII); De Sacramentis Christianae Fidei: Santa Cruz 16 (séc. XIII). Mas a sua presença em Alcobaça é mais imponente: mss. De Sacramentis em Alcobaça 156 (séc. XIII); De arca Noe em Alcobaça 154 (séc. XIII); Lamentações de Jeremias em Alcobaça 242 (séc. XIII); Livro dos provérbios em Alcobaça 243 (séc. XIII) e uma colectânea no códice Alcobaça 155 (séc. XIII); e ainda pequenos textos em Alcobaça 170 (séc. XIII).

[33] Remígio de Auxerre: Defloratio no códice Santa Cruz 32 (séc. XIII) ou o códice Santa Cruz 80 (Porto, BPMP 859) que contém uma miscelânea de textos de Defensor de Ligugé, Liber scintillarum; Ambrósio Autperto, De conflictu viciorum et machina virtutum; e o De iiii virtutibus principalibus de autor anónimo. Alcobaça é muito mais rica neste género de textos, por isso não são aqui enumerados.

[34] Trata-se dos códices S. Cruz 61 (séc. XII) e Alcobaça 244 (início do séc. XIII).

[35] De facto, apenas Alcobaça se fará eco e legará para a posteridade manuscritos contendo obras com estas orientações. Para um levantamento preliminar dessa presença ver a segunda parte do estudo de A.A. Nascimento «O livro de teologia: génese de uma estrutura e estruturação de uma ciência», in Didaskalia, 25 (1995) 235-255, cfr. em especial as pp. 249-252.

[36] «[1175 Fevereiro 1] Parisius, obitus magistri Martini presbiteri canonici qui dedit canonicis librum sermonum et partem epistolarum Pauli in VII.em caternos, Cantica Canticorum, Genesim, librum Isidori de expositione Historie, practicam de medicinis, librum de astronomia, Philosophiam magistri Vilielmi, librum de defloratione misse, librum Gerlandi, librum questionum, dietas particulares, librum arismetice, abacum, librum Constantini, alias dietas, librum de medicinis, librum super Matheum», in P. David - T.S. Soares, Liber anniversariorum ecclesiae cathedralis Colimbriensis (Livro das Calendas) 2 vol., Coimbra 1947-1948 (cfr. vol. I, p. 79) e A.J. Costa, «A Biblioteca e o tesouro da Sé de Coimbra nos séculos XI a XVI», Boletim da Biblioteca da Universidade de Coimbra, 38 (1983) p. 57.

[37] G. Maurach (ed.) Guillelmus de Conchis, Philosophia mundi [texto latino com trad. alemã], Pretoria University Press, Pretoria 1980. Sobre Guilherme ver D. Elford, «William of Conches», in P. Dronke (ed.) A History of Twelfth-Century... op. cit., pp. 308-327.

[38] É esta a identificação proposta por A.J. Costa, «A Biblioteca...», art. cit., pp. 18-19.

[39] Cfr. um resumo bio-bibliográfico em P. Dronke (ed.) A History of the Twelfth-Century..., op. cit., p. 448, baseado na obra que se cita na n. seguinte.

[40] Garlandus Compotista, Dialectica. Firts edition of the manuscripts, with an introduction on the life and works of the author and on the contents of the present work by L.M. de Rijk (Philosophical texts and studies, 3) Van Gorcum, Assen 1959.

[41] Ver a propósito a recente obra de B. Lawn, The Rise and Decline of the Scholastic "Quaestio Disputata": with Special Emphasis on its Use in the Teaching of Medicine and Science (Education and Society in the Middle Ages and Renaissance, 2) E.J. Brill, Leiden-New York-Köln 1993.

[42] Ch. Burnett — D. Jacquart (dir.): Constantine the African and ‘Ali Ibn al‘-Abbas Al Magusi (Studies in Ancient Medicine, 10) E.J. Brill, Leiden - New York 1994; Daniele Jacquart, «La scolastique médicale», in M.D. Grmek (dir.) — B. Fantini (col.), Histoire de pensée médicale en Occident. vol. 1 Antiquité et Moyen Âge, Ed. du Seuil, Paris 1995, pp. 175-210, cfr. em especial pp. 179-182 e 317. Sobre Constatino e o Viaticum, ver M.F. Wack, Lovesickness in the Middle Ages. The «Viaticum» and its Commentaries (Middle Ages series) University of Pennsylvania Press, Philadelphia 1990, cfr. em especial pp. 31-38.

[43] A biblioteca do mosteiro de São Vicente de Fora em Lisboa apresentava no primeiro quartel do século XIII um património de obras científicas bem mais interessante, como o atestam três empréstimos realizados em 1207, 1218 e 1226 e registados num códice que hoje pertence ao fundo de Santa Cruz de Coimbra, cfr. A. Cruz, Santa Cruz de Coimbra..., op. cit., pp. 192-194.

[44] Um conspecto da literatura latina de autores portugueses (infelizmente sem as respectivas referências bibliográficas) encontra-se nas pp. 17-51 de J.G. Freire, Oração de Sapiência. O latim medieval em Portugal: Língua e literatura, Universidade de Coimbra, Coimbra 1995; mas, no que à teologia e filosofia as obras assinaladas são posteriores à primeira metade do século XIII; cfr. também A.A. Nascimento, «O livro de teologia...», art. cit., pp. 252-255.

[45] Santo António de Lisboa, Obras completas, 2 vol. em edição bilingue, trad. introd. e notas por H.P. Rema (Tesouros da literatura e da história) Lello e Irmão, Porto 1987. Sobre a sua formação junto dos cónegos regrantes, vejam-se as pp. 17-96 do vol. I da obra de F.G. Caeiro, Santo António de Lisboa, 2 vol. (Estudos Gerais) IN-CM, Lisboa 1995 (2ª ed.).

[46] Pedro Hispano, Obras filosóficas, I: Scientia libri de anima, ed., introd. e notas por M. Alonso Alonso (Libros pensamiento, 4) Juan Flors Ed., Barcelona 1961; e De longitudine et brevitate vitae, in Pedro Hispano, Obras filosóficas, III, ed., introd. e notas por M. Alonso Alonso, CSIC, Madrid 1952. Sobre a identificação deste Pedro Hispano remeto para J.F. Meirinhos, «Pedro Hispano Portugalense? Elementos para uma diferenciação de autores», in Revista española de filosofía medieval 3 (1996) 51-76 (cfr. em especial as pp. 67-71 e 75).

[47] Sobre as escolas em Portugal nos séculos XII ver os ainda insuperados estudos de A.M. de Sá, «Primórdios da Cultura Portuguesa I», Arquivos de História da Cultura Portuguesa, I-1 (1967) 1-113 e «Primórdios da Cultura Portuguesa II», Arquivos de História da Cultura Portuguesa, II-1 (1968) I-VIII, 1-129; F.G. Caeiro, «As escolas capitulares no primeiro século da nacionalidade portuguesa», Arquivos de História da Cultura Portuguesa, I-2 (1966) 1-48; Idem, «A organização do ensino em Portugal no período anterior à fundação da Universidade», Arquivos de História da Cultura Portuguesa, II-3 (1968) 1-23.

[48] A.M. de Sá,Chartularium Universitatis Portugalensis (1288-1537). Vol. I: (1288-1377), Instituto de Alta Cultura, Lisboa 1966, doc. 2, pp. 6-7.

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