Comentários do Leitor
(
ferrat@uol.com.br ) Fiquei contente com
esta tradução direta do chinês e que evita o uso de conceitos ocidentalizantes
como ser, essência, sentido etc. Além disso, o texto tem beleza poética,
essencial no caso de uma obra como o Dao de Jing (Tao te ching). Para
quem sabe chinês - ou está estudando - trata-se de uma edição bilíngüe,
o que é fundamental para uma compreensão mais completa do texto. Quem
sabe no futuro, possamos contar com uma edição comentada, como o é
a tese de onde o livro foi tirado.
0 Tao da filosofia chinesa
ALEXANDER C.Y. YANG Foi grande minha satisfação, como chinês e professor de língua e cultura chinesa radicado no Brasil, ao saber que a clássica obra chinesa "Tao Te Ching" ("Dao De Jing" de Laozi, na romanização oficial) foi traduzida por Mário Bruno Sproviero, do departamento de línguas orientais da USP, e apresentada como parte de sua tese de livre-docência "Laozi e a Reversão do Reino do Homem". A obra em questão é das mais divulgadas da literatura mundial, provavelmente a segunda depois da Bíblia, tendo sido traduzida inúmeras vezes nas principais línguas modernas. Quanto ao autor, o célebre historiador chinês Si Ma Qian (cerca de 145 c. 90 a.C.), o Heródoto chinês, nos descreve o primeiro retrato de Laozi. Este era de um pequeno povoado chamado Qu Ren, que ficava no Estado sulista de Chu, seu nome era Li Er, seu nome literário era Li Dan. Trabalhou na sede da dinastia Zhou como cronista oficial do departamento de arquivos. Residiu muito tempo na capital de Zhou, mas por causa da decadência da dinastia e do enfado da vida urbana e burocrática, decidiu abandonar tudo. Quando chegou à fronteira, o guarda não o deixou prosseguir sem antes Ihe consignar um livro. Laozi atendeu ao pedido do guarda e entregou um escrito sobre o curso e sua virtude, com pouco mais de 5.000 ideogramas. Partiu para o ocidente e nunca mais se soube de seu paradeiro. Si Ma Qian salienta que Laozi visava ao ocultamento e anonimato. Teria nascido em 604 a.C., 53 anos antes de Confúcio (551-479 a.C.). A moderna crítica histórico-literária considera tal relato em parte mítico e supõe que o livro tenha sido escrito na época dos Estados Combatentes (481-221 a.C.). Entre seus principais argumentos, ressalta que o livro não é mencionado nos escritos confucianos da época nem mesmo no outro grande autor taoísta clássico, Zhuangzi (c. 370 c. 300 a.C.), que apenas se refere a personagem de Lao Dan. Fung Yu-lan, o mais famoso historiador contemporâneo da filosofia chinesa, considera que na biografia de Si Ma Qian foram confundidas duas personagens: uma real, Li Er, que quis permanecer incógnita, e outra, lendária, Li Dan, a personificação do ideal de sábio da antiguidade. Quanto às traduções desse livro em português, não realizadas a partir do original chinês, constato grandes distorções, já que se utilizam de diferentes traduções com linhas interpretativas diversas, agravadas, no caso, por se tratar de um texto que no original é complexo e hermético em muitas partes. A tradução em questão, segundo meu conhecimento, é a primeira a ser feita diretamente do chinês clássico para o português por um sinólogo brasileiro. O texto original utilizado na tradução foi o do sinólogo holandês Duyvendak ("Tao To King", Adrien Maison-neuve, Paris, 1975). Percebe-se logo que o tradutor procurou adequar-se escrupulosamente aos princípios clássicos da tradução: 1) dar uma transcrição completa das idéias; 2) manter o estilo e o modo de escrever; 3) apresentar a mesma facilidade de entendimento. Assim, foi muito feliz a tradução do título do livro "Escritos do Curso e Sua Virtude", sobretudo da própria palavra "Tao" por "Curso", já que "Tao" tanto significa "via, curso" quanto "correr, discorrer" e, em português, "curso" e "correr" ("discorrer") tem a mesma raiz. Além disso, "curso" contém a idéia básica de ordem (por exemplo, "curso dos astros" e "curso dos rios"), o que é fundamental para o conceito de Tao. Outro ponto muito interessante da tradução é a linguagem simples, compassada, bem ao estilo chinês. O ideal literário da cultura chinesa clássica era a economia no dizer: o máximo de significado com o mínimo de expressão, o escrito sendo apenas um suporte para a meditação. A literatura chinesa já exerceu considerável influencia na literatura americana, principalmente no período entre as duas guerras. Espero que possa exercer certo efeito na literatura brasileira, principalmente na tradução de textos chineses. Para dar um exemplo, no capítulo 80, que trata da utopia taoísta da vida em pequenas comunidades, sentimos como chinês e brasileiro, a mesma poesia no original e na tradução: "pequeno rio, pouca gente". Quatro palavras, como no original, todo o ideal taoísta de vida comunitária! E no fim do mesmo capítulo: "reinos vizinhos visíveis/ aqui e ali/ rumor de cães e galos audíveis/ aqui e ali/ a gente envelheça e morra sem vaivém/ aqui e ali". Ouve-se a sonoridade da frase, sente-se o silêncio da vida campestre, compreende-se o ideal chinês de que "viver é ter raízes na terra". Faço votos que outras traduções do chinês para o português possam seguir-se no mesmo diapasão desta. Também seria desejável outra edição desse trabalho que incluísse a tese do professor Sproviero sobre a proposta fundamental do Dao De Jing. Sabemos, porém, que as edições bilíngües chinês-português são muito onerosas. Congratulo-me com a editora Mandruvá pela louvável iniciativa de publicar a Série Acadêmica. Alexander C.Y. Yang é professor titular de língua e literatura chinesa na USP. |