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(Edição - em que procuramos manter o estilo oral - de conferência de
Julián Marías, que, como se sabe, não se vale de texto escrito.
Conferência do curso “Los estilos de la Filosofía”, Madrid, 1999/2000.
Edição: Luiz Fumio Arima. Tradução: Ho Yeh Chia / http://www.hottopos.com)
Julián Marías
Boa tarde. Tudo se acaba, até este interminável curso. Eu tinha proposto, para esta última lição – sobre Ortega –, explicar aos senhores o fato bastante insólito do aparecimento, na Espanha, no começo deste século, de uma figura da magnitude de Ortega, um filósofo de máxima importância.
Porque o fato é que na Espanha não havia a tradição filosófica de uma Alemanha, ou, em um grau menor, a da França, a da Inglaterra e (menor ainda) a de outros lugares como a Itália etc. Na Espanha não existia isto. Na Espanha, como sabem, tinha havido, em conjunto, pouca filosofia, a maior parte dela foi feita na época em que a língua culta era o latim. Quando se começou a escrever em espanhol, já no século XVIII, a filosofia que existia na Espanha não era criativa, era, de certo modo, receptiva; e no século XIX também não houve nada parecido. Houve figuras muito interessantes, como Balmes, que teve uma vida curta, morreu com 38 anos – fato que costuma ser esquecido e é importante –, e como Sánz del Rio, que teve o mérito de entrar em contato, pela primeira vez, com o pensamento alemão de um modo direto, mas que não tinha talentos de escritor, e também não era um filósofo criativo; sua vida inteira foi expor, parafrasear, comentar a obra de Krause.
Ou seja, não havia essa tradição filosófica que faria verossímil o aparecimento de uma das figuras capitais da filosofia. E isto é o que eu quero explicar: como isto foi possível?
Sabemos que Ortega nasceu em Madri, no ano de 1883, e morreu em 1955; morreu relativamente jovem para nossa época – a mesma idade com que morreram Unamuno e Marañon, aos 72 anos.
A idéia muito dominante, muito generalizada – e muito falsa – é que a Espanha das últimas décadas do século XIX, a Espanha da Restauração, era um país de segunda categoria. Na verdade, era um país sumamente civilizado. Era um país que tinha figuras como Menéndez Pelayo, Menéndez Pidal, Gómez Moreno, Cajal, e muitos outros como Galdós, Valera... figuras de primeira classe que representavam um nível cultural, intelectual, altíssimo. Mas dirão os senhores: não eram muitos. De fato, eram grupos relativamente minoritários, não havia um grande contingente culto, como em outros lugares. A universidade da qual se falava sempre mal e com desprezo, tinha um nível incomparavelmente inferior às da Alemanha ou de Inglaterra ou da França. Mas tinha figuras muito interessantes, de grande capacidade criativa. Ou seja, era um país sumamente civilizado.
Ortega tinha 17 anos quando acabou o século. Ele tinha uma excelente formação. Saiu da Espanha com seus conhecimentos lingüísticos, com seu grego e seu latim e suas línguas modernas, e um conhecimento de toda a história da filosofia, e uma bagagem de leitura imensa – porque era um grande leitor –, este era o jovem Ortega que saiu da Espanha, e que estava indo para o centro da filosofia, o lugar em que a filosofia se cultivava, com mais intensidade, com mais criatividade: a Alemanha.
Mas é preciso dizer, desde já, que Ortega não era só isso. Ortega não era só um estudioso, um estudante. Ortega não era o que se chamava de um Gelehrter, um scholar, não era isto; era um espanhol mergulhado no seu país, preocupado com seu país, que conhecia detalhadamente em sua realidade física e em sua história. Um homem preocupado com o drama do 98, recém ocorrido em sua plena adolescência, preocupado com os companheiros da geração anterior, à qual de certo modo parecia incorporado por sua precocidade, ou seja, Ortega parecia ser um mais do 98, porque era mais jovem que eles, mas a atitude era muito parecida e além do mais sua precocidade literária foi muito grande também. Este homem, preocupado com a Espanha, mergulhado nos problemas da Espanha, e que não era puramente um homem de teoria, e esse fato é decisivo como veremos a seguir: um intelectual alemão podia ignorar dos problemas de seu país; já um espanhol, não, em absoluto. E portanto, ele ia a Alemanha preocupado precisamente com sua nação, como uma preocupação humana histórica, com uma consciência enorme do que significava a Europa. Não se esquecem que para Ortega, a Espanha era o problema e a Europa, a solução. Ele tratava de evitar todo provincianismo, e procurava a versão espanhola da Europa. Isto não se pode separar da figura de Ortega nem por um só momento.
E este homem, este jovem chega à Alemanha, primeiro a Leipzig, depois a Berlim. Em Berlim, conheceu um filósofo muito interessante, muito refinado e muito agudo, Simmel, mas depois se estabelece em Marburgo. Marburgo era o centro principal do neokantismo. O neokantismo era o sistema, era a disciplina, era justamente aquilo que Ortega tinha dito: que depois do positivismo havia uma operação que executar: ir à escola. Ir à escola significa ir ao passado, e aí surgem neoísmos: o neokantismo, secundariamente o neocristianismo, o neohegelianismo, o neotomismo, o neoescolasticismo em geral, em outra versão... Em Marburgo estavam duas grandes figuras, Hermann Cohen e Paul Natorp, seguidores de Kant. De Kant com uma forte influência platônica, com uma grande influência platônica. Ortega, evidentemente, parte de toda a tradição intelectual, dos pré-socráticos, de Platão e de Aristóteles, de Descartes, de Leibniz, depois dos idealistas alemãos, de Kant principalmente. Kant era o que se ensinava em Marburgo; Marburgo era o kantismo.
O que havia, sem dúvida, era o sistema, o grande sistema filosófico, com uma dependência excessiva que Ortega descobrerá logo, naturalmente. E havia uma equipe, uma equipe de jovens estudantes, de jovens doutorandos, dirigidos pelas duas grandes figuras de Cohen e Natorp, que fazem com que os estudantes, os jovens, ingressem nesse enorme universo kantiano, com toda sua dificuldade: o rigor, a exigência e o esforço.
Esta era a grande disciplina que Ortega adquiriu, e isto é fundamental. Em algum lugar dos seus escritos juvenis, ele disse: “eu saí da Espanha procurando encher de idealismo alguns barris e vocês não imaginam o trabalho que isso me custou”. Esta primeira formação, esta formação de disciplina intelectual, ele a completou, evidentemente, com o domínio do alemão e com o conhecimento de todo o mundo cultural alemão – que possuía de um modo extraordinário. Todo o pensamento contemporâneo alemão aparece em Ortega com um realce que não tinha nem sequer nos alemães de seu tempo.
Isso foi crucial, mas não parou por aí. É importante, em dois sentidos, que não tenha parado por aí. Por um lado, ele não podia ser simplesmente o Gelehrter, o intelectual, o homem ocupado com questões acadêmicas. E é isto que ele repreenderá, com grande amargura, na cultura alemã posterior. Isto, por um lado. Esse homem que tinha que se angustiar, que tinha que se preocupar com os problemas reais, com os problemas históricos, com os problemas sociais, com os problemas de seu país, que estava numa situação difícil em muitos sentidos, especialmente depois do 98, mas não foi somente por isso.
Por outro lado, havia uma atitude dele presente desde o começo, que era a visão da Europa. Ele achava que a Europa era evidentemente o nível que devia ser atingido pela Espanha, que, em muitos sentidos, estava por baixo. Mas não para imitar, não para repetir. Ortega cunhou uma expressão interessante: ele diferenciava, desde muito jovem, entre provincial e provinciano. Provincial, dizia ele, é tudo que pertence a uma província, somos todos provinciais. Já provinciano é aquele que pensa que sua província é o mundo e seu vilarejo, uma galáxia. Em nossa época o provincianismo é o mais extremo e ridículo que se pode imaginar. Se Ortega estivesse vivo, não sei o que pensaria. Bem, sim, sei o que pensaria...
Ortega acreditava na Europa, mas não para ser imitada, não para ser repetida; ele dizia: “Não devemos ser outra França, outra Alemanha, outra Inglaterra: já existem esses países”. O que sim, é preciso, é dar uma interpretação espanhola do mundo, é preciso integrar o que significa a visão que esta instalação humana, que é a Espanha, tem”.
Pois bem, em 1914, o ano de meu nascimento, o ano do primeiro livro de Ortega, Meditações do Quixote, estoura a Guerra Mundial, a Primeira Guerra Mundial: algo atroz! Quando a Espanha pensava em se apoiar, pensava em se fundamentar precisamente nesse nível que era a Europa, especialmente intelectual e cientificamente, sobrevém a extinção da Europa, a discórdia da Europa, a hostilidade interna da Europa.
Não se esqueçam do que foi aquilo. A Primeira Guerra Mundial foi uma guerra de trincheiras, uma guerra na qual morreram milhões de pessoas, milhões. Foi, além do mais, uma guerra que produziu os primeiros ramos de algo novo que é o nacionalismo. Os primeiros ramos da hostilidade entre países. Os países da Europa sempre fizeram guerras, sempre lutaram uns contra outros, mas sempre se admiraram, sentiam-se como uma comunidade humana, cultural, civilizada. Pela primeira vez na história produz-se um tipo de hostilidade entre países: não se podia tocar certas músicas em alguns países, não se podia ler certos autores, certos escritores, poetas, ou filósofos porque eram inimigos. Isto foi uma coisa terrível, uma coisa terrível que vem rondando a realidade profunda da Europa desde então, desde 1914.
Pois bem, Ortega teve uma atitude de fidelidade à Europa. Isso é fundamental. Ortega achava que era necessário salvar, afirmar, conservar a Europa como tal. E que a Espanha era um país europeu que tinha naturalmente que afirmar esta identidade e mantê-la a qualquer custo. Por isso, quando Ortega começou a ser traduzido, depois da Guerra Mundial, naturalmente, primeiramente foi para o alemão. Não se esqueçam que era o país em que a filosofia tinha vigência, provocava entusiasmo. O entusiasmo que Ortega provocou na Alemanha foi profundo. Há alguns dados que vale a pena recordar: quando ainda estava vivo, La rebelión de las masas tinha vendido muito mais que trezentos mil exemplares na Alemanha. Seu livro Über die Liebe, Estudios sobre el amor, era o presente tradicional dos namorados alemães, em centenas de milhares de exemplares. Os cursos de Ortega e os livros de Ortega se difundiam como os de nenhum autor alemão. Quando Ortega morreu em 1955, as livrarias alemãs encheram suas vitrines de exemplares de seus livro com um retrato com tarja preta. Eu li mais de cem artigos necrológicos sobre a morte de Ortega na Alemanha. A comoção que causou foi muito maior do que a que causou Heidegger mais tarde.
E isto por muitas razões. Entre outras, pela pavorosa queda de interesse pela filosofia na Alemanha, da exigência da filosofia na Alemanha – isso quase se evaporou. Há um dado que não tem nada que ver com a Espanha nem com Ortega, mas que é revelador: a figura filosófica mais importante, mais interessante da Alemanha, Gadamer, acaba de completar cem anos. Será isto verossímil? Será possível que não tenham aparecido depois de 1900 – ele nasceu exatamente em 1900 – figuras superiores ou comparáveis a Hans Georg Gadamer? Isto é um fato. Outro fato é que Ortega descobre precisamente naquele momento, justamente naqueles anos, descobre a grande inovação filosófica da época, da qual falamos no outro dia: a fenomenologia. Lembram-se como Husserl começa a publicar as Investigações Lógicas em 1900 (traduzida ao espanhol em 1929, muito antes do que ao qualquer outra língua ocidental). Depois, em 1913, publica a teoria da fenomenologia. A palavra “fenomenologia” não tinha aparecido ainda nas Investigações Lógicas, mas aparecia já, teoricamente nas idéias, e então introduziu o método do qual falamos no outro dia: o método descritivo, o método que se fundou na forma mais depurada de idealismo, na redução fenomenológica, o colocar entre parênteses, a eliminação de toda tese existencial, de toda afirmação ou negação da realidade ou dúvida, e portanto a pura distinção das vivências da consciência pura. Este é o método de Husserl, o método fenomenológico, que foi a grande descoberta, a grande contribuição teórica de Husserl em 1913.
Pois bem, em 1914, Ortega recebe a fenomenologia. Percebe que é um método magnífico, que era justamente o que iria fecundar a filosofia naquele momento, mas em 1914, escreve um prólogo ao livro de um poeta espanhol, Moreno Villa, e nele disse – como Ortega acostumava dizer as coisas: não numa revista técnica, mas num prólogo a um poeta – precisamente que não se pode fazer a redução fenomenológica. Porque a redução fenomenológica, é colocar entre parênteses, mas para isso – como comentávamos no outro dia – é preciso estar fora dos parênteses. Pode-se voltar a fazer uma segunda redução, de fora de outro parênteses exterior, ou seja, da realidade: não se pode eludir a realidade, faz-se a partir do real, e por conseguinte, a consciência, a consciência pura, que será justamente a grande descoberta de Husserl; essa consciência pura, dirá Ortega, não existe, não é realidade. Quando há algo, quando há realidade, há eu e a coisa. O ter “consciência de” é algo diferente, não é isso, não é realidade. A consciência não é realidade. Quer dizer, Ortega aceita a fenomenologia, ele acha que é um grande método descritivo, que dará uma incrível fecundidade à filosofia, mas ao mesmo tempo, o princípio no qual se fundamenta, o princípio idealista não lhe parece ser aceitável, ou seja, é um fato extraordinário que Ortega supere a fenomenologia no ano seguinte de sua formulação teórica.
Ele retém o método descritivo. E rejeita precisamente aquilo que mais tarde vão rejeitar os grandes discípulos de Husserl: Max Scheler ou Martin Heidegger, aos quais Husserl de certo modo repudiará, porque ele acha que eles fazem antropologia ou outra coisa qualquer, mas não fenomenologia.
Reparem neste fato, um fato inadvertido, e que é absolutamente difícil. Husserl faz duas coisas: por um lado Husserl fazia a ciência descritiva das vivências, das essências da consciência pura; por outro lado, fazia a filosofia fenomenológica, a forma mais refinada do idealismo. O idealismo que se empenha em evitar a tese existencial, a posição da realidade, que a elimina e que fica simplesmente com uma mera descrição de vivências da consciência pura. Esta é a questão. Portanto, é curioso ver como Ortega possuía a forma de sistema que existia na época, o kantismo, ver que ele parte dessa concepção sistemática e exigente que é o sistema – Ortega dirá em algum momento que o sistema é a exigência e a honra do pensador. Ao contrário dos idealistas alemães que eram sistemáticos porque achavam que deviam ser, porque a imagem que tenha da filosofia era o sistema, que portanto elaboravam essas grandes construções intelectuais como catedrais. E os senhores lembram que – como já falei anteriormente – Ortega dizia que era necessário escrever um ensaio intitulado Genialidad e inverecundia en el idealismo trascendental. Pois bem, Ortega acreditava no sistema, acreditava que a filosofia é sistema, mas não por capricho, não porque o filósofo o queira, mas sim porque a realidade é sistemática. A filosofia é sistema porque é o reconhecimento do caráter sistemático da realidade, ele era sistemático mesmo que não quisesse, porque a realidade o obrigava a ser, impunha a ser, e não porque o quisesse.
Portanto, vejam, com que tipo de radicalidade aparece o problema filosófico em Ortega. Em 1928, quando Curtius o traduziu ao alemão, ele disse que a Alemanha havia perdido o sentido da filosofia e o gosto pela filosofia depois da Guerra Mundial, mas recuperou-o, graças a “este pequeno celtíbero do Escorial”. É a fórmula certeira que ele emprega. Ou seja, Ortega devolveu à Alemanha o sentir e o gosto pela filosofia. E foi fecundante para o crescimento alemão de um modo incrível. Justamente porque não era meramente um intelectual, mas um homem comprometido com problemas reais de seu país e do mundo e da Europa, é claro, porque além do mais foi fiel à Europa. Porque compreendeu que não se podia sacrificar parte da Europa e nem renunciar a nenhuma parte dela.
Isso acaba explicando um pouco de porque este homem, este jovem espanhol, será um filósofo totalmente extraordinário. Mas em que consiste essa filosofia? A filosofia dominante na época era o idealismo. O idealismo tinha partido da primeira descoberta cartesiana, continuando naturalmente depois até 1928 ou 1929, e se pensava que a realidade verdadeira não são as coisas – como pensou o realismo –, que a realidade verdadeira são as idéias, as idéias, o que eu penso, a consciência, em última instância. E esta era exatamente a filosofia européia até então. E a forma mais refinada do idealismo, que supera o positivismo, que supera o psicologismo, era precisamente a de Husserl: a fenomenologia. E então se descobrem os objetos ideais: os números, as figuras, as espécies; o que não é real, o que não tem realidade precisamente porque havia sido eliminado o problema da realidade. A lógica pura. E então, começam a proliferar objetos, objetos ideais e o mundo se enriqueceu imensamente.
Este será o ponto de vista. Mas não esqueçamos de que se trata da consciência pura. A consciência, para Husserl, é o absoluto. Ele diz: “relativo a nada”. Já Ortega acha que isso não é assim, que isto é impossível. Que a consciência não é realidade, que a consciência é justamente o estar co-migo.
Ortega diz – e é a tese que formula em seu primeiro livro Meditaciones del Quijote, e que resume admiravelmente o seu pensamento filosófico –: “eu sou eu e minha circunstância”. E acrescenta: “e se eu não a salvo, não me salvo a mim mesmo”.
Ou seja, os realistas pensam que a realidade são as coisas. Os idealistas pensam que a realidade é a idéia: eu, a cosnciência. Mas Ortega não se limita a dizer: Não, não é isso; as coisas sozinhas não, eu não sei nada sobre elas, não sei nada das coisas, não sou testemunha delas... Porque o eu também não: eu nunca estou sozinho. Ah, este é o grande erro do idealismo! Eu estou sempre com as coisas, com umas ou com outras; eu mudo, há pouco eu estava em casa, agora estou aqui com vocês nesta sala. Sim, sim, mas estou sempre com alguma coisa. Não, eu nunca estou só. E além do mais há uma parte, uma parte que me acompanhou da minha casa até aqui, este corpo, esta mente, a realidade psíquica, que não me abandonou. Mas não é só isso; Ortega não se limitou a dizer: eu e as coisas, eu e minha circunstância – e circunstância é tudo o que me rodeia, tudo o que encontro ou posso encontrar. Por isso disse: eu sou eu e minha circunstância: isto é o decisivo! A realidade, a realidade a que ele chamará de realidade radical, a realidade com a qual me encontro, com a qual tenho que ver, é eu e minha circunstância, eu com tudo o que me rodeia, com tudo o que me encontro. Não é que eu esteja com isso; é que sou isso, minha realidade consiste nisso, minha realidade inclui o mundo enquanto circunstância.
Vejam o problema se estabelece a um nível muito mais radical. Não se trata de eu entre as coisas, mas eu com as coisas, eu fazendo algo com elas, porque viver é fazer algo. Por isso a realidade radical é vida, é minha vida; não a vida em geral, que é uma teoria, mas a vida de cada um, a minha, a de cada um de nós, quando dizemos: “minha vida”. E essa vida inclui a realidade inteira, inclui aquilo que nos rodeia. Essa é a realidade radical e as demais realidades são secundárias; para Ortega são realidades radicadas. São realidades que eu encontro em minha vida, que se manifestam, que aparecem em minha vida, que se manifestam nela, que se constituem nela: mas isso não quer dizer, acrescenta Ortega, que a realidade radical signifique a única realidade, e menos ainda a mais importante, não! Ela é, sim, a realidade na qual aparecem todas as demais realidades, qualquer realidade para que signifique realidade para mim, tem que aparecer em minha vida, tem que aparecer e se manifestar nela – o próprio Deus. Deus é criador, criador de toda a realidade, mas Deus – para que eu possa dizer algo sobre Deus, para que saiba algo sobre Ele, para que seja realidade para mim – tem que aparecer na minha vida, tem que se manifeste em minha vida, constituir-se nela.
É nesse sentido, uma vida radicada; criadora, mas radicada. Vejam como se trata de estender a um nível de radicalidade muito mais profundo. E isto significa que essa realidade a que chamamos de vida, de minha vida, de vida humana, não é coisa alguma. Não é coisa alguma: pois é ação, é projeto, é imaginação, antecipação, projeção. Este é o ponto de partida, e esta é a origem da metafísica orteguiana, que como podem ver, não é idealismo, nem realismo, e nem uma mera coexistência de eu e as coisas, mas justamente a constituição de uma atividade dinâmica, ativa, que consiste precisamente em projetar-se uma sobre a outra.
E consiste em interpretação. Viver é interpretar, viver é projetar-se sobre as coisas para interpretá-las, justamente para realizar os projetos que constituirão nossa vida. Este é o ponto de partida. Esta é justamente a origem, o núcleo fundamental do pensamento orteguiano, que, como podem ver, é bem mais profundo que os anteriores.
E naturalmente há o problema de como isso se conhece, em que consiste precisamente o conhecimento. Como sabem, o conceito de razão é fundamental. O conceito de razão que se tem usado desde os gregos, naturalmente, e depois na Idade Média, e depois no Renascimento, e em Descartes e em Leibniz, e depois em dois termos diferentes, Verstand e Vernunft, pelos alemães, os idealistas alemães.
Mas tem preponderado uma idéia deficiente de razão: a razão explicativa, a razão científica, o modelo científico da razão, que consiste em reduzir as coisas a suas causas, elementos ou princípios; o que traz consigo, evidentemente, um inconveniente: para a ciência, isso pode se aplicar, mas não basta, pois quando uma realidade me interessa por si mesma, não basta reduzi-la a causas, princípios ou elementos: se eu digo que a água é H2O, e tenho sede, eu não posso beber H2O, preciso de água; se quero ver seus rostos, preciso de luz, e não de fótons ou ondas eletromagnéticas. Essa idéia redutiva da razão que serve para muitas coisas não é apta para conhecer as realidades que interessam por si mesmas: a vida humana, a história... e então sobrevem, por um lado, o racionalismo extremo – formulado por Hegel: “o racional é real e o real é racional”, que é um ato de fé, porque não é racionalmente cognoscível que isto seja assim – e, por outro lado, o abandono da razão, o irracionalismo, que não é possível, porque o homem não pode viver a não ser raciocinando. O homem tem poucos e pobres instintos, não tem nenhum sistema de tropismo que conduza sua conduta como ocorre com os animais, não há outra saída para o homem a não ser pensar, raciocinar.
E Ortega naquela famosa frase de Meditaciones reuniu justamente os dois conceitos “contrários”, razão/vida, na razão vital. Este foi o grande passo que a filosofia deu neste século: a razão vital sem a qual a vida humana não é possível.
Mas Ortega deu um passo a mais: a razão vital é a própria vida. A própria vida na sua função de dar razão; é a vida que faz com que as coisas me sejam inteligíveis. Eu entendo que isto é um microfone porque eu lhe atribuo uma função – a de fazer minha voz chegar aos senhores – se Platão aqui estivesse, ele não veria isto como um microfone porque não saberia para que serve, não veria nele nenhuma função vital. Isto é, a própria vida é o instrumento da razão. Não é que haja uma razão e uma vida; mas sim que a própria vida é o instrumento da racionalidade. E isso é o que significa “razão vital”.
Mas é preciso continuar. E Ortega continua. A vida humana é uma vida concreta, é uma vida histórica. É claro que essa razão funciona não somente na minha vida humana individual, funciona dentro de uma sociedade, dentro de um sistema de vigências, crenças e usos sociais. Portanto, é uma razão histórica. A razão, em sua forma concreta, é histórica; razão vital e razão histórica são a mesma: uma, vista de um modo concreto, na qual aparecem os limites não da vida individual, mas da vida coletiva. E isto levará Ortega a fazer uma sociologia inteiramente nova: não diferenciará somente entre vida individual e vida coletiva, mas diferenciará também a vida inter-individual (na qual existem várias vidas presentes, mas que há nelas, em última análise, as características da liberdade, da escolha, da decisão...) da vida coletiva, da vida social, que consiste nos usos, nas vigências, no que se faz, no que se diz (e que ninguém sabe porque se faz, porque se diz... e esta é a tremenda realidade social).
Essa realidade humana, insisto, não é coisa; é histórica. A vida humana consiste em historicidade, é algo que acontece historicamente. Mas não podemos esquecer o que temos antes: a vida humana é uma estrutura, não se dissolve no que foi a tentação do final do século, de Dilthey, de historicismo, reduzir a formas históricas. Não é isso, a história nos conduz à realidade, a história nos conduz ao futuro e é algo que descobre justamente uma estrutura, que não é rígida, que não é imóvel, que consiste em tensões, em movimento.
Nisso consiste – em uma palavra – a metafísica de Ortega. E portanto, a vida humana é primariamente imaginação, interpretação, projeção. E por isso poderá dizer, para compreender a vida humana em seu conjunto, que a vida humana é escolha, é responsabilidade, é moral, intrisecamente moral. Eu tenho que justificar – antes de mais nada, para mim mesmo – por que escolho o que escolho, porque entre as possibilidades que a circunstância me oferece, escolho esta ou aquela, em cada caso. Por isso, Ortega achava que não tinha nenhum sentido essa palavra que se usa muito: “amoral” – pois amoral não é nada humano; ou é moral ou é imoral, isto é, a moralidade é para ele como uma condição fundamental, radical à vida humana, que é uma escolha, uma escolha justificada, uma escolha responsável.
Reparem como tudo isto que está resumido aqui em poucos minutos é o levantamento do problema filosófico em Ortega. É de uma extensão enorme, Ortega falou sobre uma quantidade enorme de coisas: estudou a história, a estrutura da sociedade, a rebelião das massas, os problemas da moralidade, a diferença entre o homem e a mulher, o Estado, a interpretação das histórias – a história da Espanha, a história de Roma, a da Grécia... Porque Ortega partia de uma concepção originalíssima da realidade. Precisamente por isso chegará – não vou falar disso que seria muito complicado – a própria idéia do real, a idéia do ser. Ortega irá mais além da idéia do ser e mostrará como a realidade e o ser não são o mesmo; o ser é a interpretação mais ilustre do real, do que há, mas é evidente que o que há, ultrapassa... Não está muito seguro de que tudo o que há, seja. E nos lembrou de que há três esplêndidas palavras filosóficas – que estão ainda esperando que as usemos; ele assim o fez e eu também –: ser, estar e haver; o que é, o que está e o que há.
Como podem ver, foi uma renovação radical da filosofia, radical porque é de raiz; foi justamente um enfoque novo dos problemas da filosofia, dos problemas do conhecimento, dos problemas da realidade e, é claro, dos problemas da vida humana.