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Kant

(Edição - em que procuramos manter o estilo oral - de conferência de
 Julián Marías, que, como se sabe, não se vale de texto escrito.
Conferência do curso “Los estilos de la Filosofía”, Madrid, 1999/2000.
 Edição: Jean Lauand.  Tradução: Elie Chadarevian / http://www.hottopos.com)

 

Julián Marías

 

Hoje vamos falar de Kant. Kant é uma das maiores figuras da História da Filosofia, mas além disso representa algo de muito especial neste curso, cujo tema é "Os estilos da Filosofia". Como veremos, ele não só representa um estilo novo, mas também tem uma particular consciência disto.

Kant, Emanuel Kant, nasceu em 1724 e morreu em 1804. Nasceu, viveu e morreu em Königsberg, não saiu de sua cidade natal. Era um homem metódico, as pessoas acertavam seus relógios quando o senhor Kant passava, porque sabiam a que hora passava. Há uns  versos de Antonio Machado que dizem:

Tartarin em Königsberg!
Com a mão no queixo,
tudo chegou a saber.

Era de uma família modesta, muito religiosa, protestante, pietista, teve uma vida de professor, solitário, uma vida enormemente singela e simples. É curioso o fato de que tinha boa imaginação: dava cursos de geografia e, ao que parece, descrevia países que não conhecia, que nunca tinha visitado, com grande imaginação.

Seu pensamento filosófico começou cedo, sem muita precocidade, mas há uma longa época em sua vida - que é o que depois se denominou "o período pré-crítico" - na qual - mais ou menos - segue os caminhos do pensamento dominante das primeiras e médias décadas do século XVIII. Depois há uma época bastante longa em que não escreve, medita, pensa... e então começa o período crítico: em 1781 publica seu livro principal, Crítica da razão pura, Kritik der reinen Vernunft, que depois voltou a publicar - uma edição bastante modificada - em 1787. Justamente a palavra "crítica" é essencial nesse período; ele publica outros livros importantes: Crítica da razão prática, Crítica do juízo, Fundamentação da metafísica dos costumes...

O interessante é que nessas obras de maturidade, mais propriamente pessoais, que marcam um estilo novo - ele tem consciência disto - diz que se trata de "uma revolução copernicana". Ele pensa na inversão da concepção astronômica de Ptolomeu feita por Copérnico e apresenta sua filosofia como sendo "uma revolução copernicana", eine kopernikanische Wendung.

Ou seja, ele tem plena consciência de um novo estilo. Este estilo tem que ver, evidentemente, com a tendência que já temos encontrado (e a vimos claramente em Descartes): a tendência a evitar o erro. Mais do que a descoberta da verdade, com mais força ainda, o que se busca é evitar o erro.

Lembrem como Descartes põe em dúvida muitas possibilidades de conhecimen-to, ele acha que não são seguras e busca evitar o engano, e procura um fundamento indubitável, que vai ser o cogito, a mente que pensa: algo do qual não se pode duvidar. Isto aparece também no empirismo, especialmente em Locke, também há uma espécie de renúncia a muitos problemas - já os vimos outro dia - justamente porque se trata de poder estar seguro mediante a experiência.

Pois bem, isto é capital. Não esqueçamos que Kant recebe uma poderosa influência não só de Locke, mas também de Hume, a quem chama "esse homem adulto", que chega a uma forma inclusive quase cética do empirismo de Locke e questiona uma série de possibilidades de conhecimento: isto faz com que Kant fique em alerta, e ele vai se concentrar sobre os objetos da razão e seus limites, suas possibilidades. É a crítica da razão.

Cabe aqui um esclarecimento terminológico: em Kant a palavra "puro" quer dizer: independente da experiência. Kant dirá em algum lugar: "Todo conhecimento começa com a experiência mas nem todo conhecimento se funda na experiência". Há conhecimentos que não se fundam na experiência, isto quer dizer "puro" ou também, com outro termo que ele usa muito, "a priori". "A priori" ou "puro" quer dizer independente da experiência, oposto a "a posteriori", que é fundado na experiência.

Em segundo lugar, outro esclarecimento terminológico, quando Kant fala de crítica da razão pura e de crítica da razão prática o leitor não filósofo supõe que há uma contraposição entre puro e prático. E não: a razão pura é toda a razão; é a razão pura teórica e a razão pura prática. Ou seja, o adjetivo "puro" corresponde às duas, a diferença é que uma é teórica e outra é prática.

Kant vai empreender a tarefa da crítica da razão, de estabelecer os limites da razão, suas possibilidades, sua justificação e isso justamente no momento em que a Física de Newton tem um enorme prestígio. E as três perguntas fundamentais que Kant lança na Crítica da Razão Pura são: Como é possível a matemática pura? Como é possível a física pura? É possível a metafísica?

Vejam a diferença entre as perguntas: toma como certo que são possíveis a matemática e a física puras e pergunta se é possível a metafísica. E diz que ainda não se encontrou o caminho seguro da filosofia: enquanto a matemática e as ciências encontraram um caminho seguro e progridem, avançam, se consolidam; em filosofia, em metafísica não se chegou a ter o caminho seguro da ciência "kein sicherer Weg der Winssenschaft" e isto é justamente o que ele vai buscar, o que vai determinar a obra de Kant.

Isto vai levar Kant a uma reflexão muito profunda. Normalmente considera-se que o pensamento conhece as coisas; conhece as coisas tal como são. E Kant diz: não, isto não é possível. O que chama de "a coisa em si", "das Ding an sich" não se pode conhecer; porque eu conheço "a coisa em mim". O que eu conheço, conheço submetido a mim; submetido ao meu espaço, ao meu tempo, às minhas categorias, isto é a "coisa em mim", que ele chamará "fenômeno", opondo-o ao "noumeno", a coisa em si.

Quando eu conheço algo, transformo, modifico a coisa em si, que, como tal, é inadmissível. É contraditório que eu conheça a coisa em si porque quando a conheço está em mim, ingressa em minha subjetividade, que a modifica.

É algo capital, decisivo, que vai iniciar uma nova maneira de propor os problemas filosóficos e é justamente isto que a Crítica da Razão Pura vai explorar.

Então faz uma crítica muito profunda da qual, naturalmente, só podemos dar umas poucas amostras. Por exemplo, recordem como, por meio de Deus, esse famoso problema da comunicação das substâncias foi resolvido na filosofia do século XVII (Deus como garantia da evidência em Descartes: não há um gênio maligno que nos engana etc.). A abordagem de Kant é diferente: fala-se da existência como se fosse uma qualidade das coisas... e não! Sein ist keine reales prädikat, o ser não é um predicado real. O que isto quer dizer? Não é que uma coisa seja o que é e além disso exista; não! a existência não é um predicado real. Ele diz "Cem táleres - a moeda da época - pensados são o mesmo que cem táleres reais" (bem, no meu bolso, não, não é o mesmo...[risos] - se tenho mil pesetas possíveis ou se tenho mil pesetas reais, há uma pequena diferença...). Mas, em que consiste a diferença? Não no conteúdo, mas na conexão com a experiência. Digamos: os cem táleres reais estão aqui, tenho-os na mão, estão nesta mesa, estão em conexão com a experiência; os outros, não. Portanto é um caráter que não é intrínseco à própria coisa: a existência é justamente algo que é a conexão de alguma coisa com o conjunto da experiência: é o que os filósofos dessa época - e Kant é o primeiro - chamarão "a posição", está posto: o ser não é um predicado real. Por exemplo, Fichte, o discípulo mais próximo de Kant dirá, em sua forma de idealismo: o eu se põe a si mesmo e ao não-eu; o não-eu, o mundo, é posto pelo eu - por isto é idealismo. Há um ato de posição: isto é muito importante no pensamento pós-kantiano.

Isto leva a uma idéia que é o que se vai chamar o ser transcendental. É uma idéia capital e por isso o idealismo de Kant é chamado de idealismo transcendental. A escolástica já usava os conceitos de imanente e transcendente. Imanente é o que permanece no sujeito; transcendente é o que está além. Kant dirá: não se trata de imanente nem de transcendente, trata-se do transcendental. O transcendental é o resultado da inserção, digamos, do real em si - que não é acessível, que não se pode conhecer diretamente como tal - em minha sensibilidade: o espaço, o tempo e as categorias são as que ordenam o que, de modo bruto, é simplesmente um caos de sensações. O que eu vejo, o que eu percebo está ordenado segundo o espaço, o tempo e as categorias e isso não são as coisas, mas os fenômenos, que é o que eu conheço.

Este é o ponto de vista da visão kantiana do real, que traz naturalmente consigo uma visão do conhecimento. Uma visão que é - e isto terá conseqüências - uma transformação do real: ao conhecer eu transformo; o noumenon, a coisa em si não é acessível, não é cognoscível, porque conhecer quer dizer transformar o noumenon em fenômeno, que é o que eu conheço. Portanto o conhecimento é, de certo modo, uma transformação do real. É interessante como, por exemplo, muito recentemente se chegou a uma visão, inclusive física, que tem conexão com isto: para estudar um fenômeno físico, eu devo iluminá-lo, mas a luz transforma o objeto, o modifica: se eu ilumino um sistema físico, modifico-o, mas para conhecê-lo tenho que iluminá-lo...

Kant tem, então, a matemática e a física - e a física de Newton é o modelo de ciência que é válido para ele (isto, naturalmente, pode-se corrigir, foram feitas críticas posteriores, houve modificações muito profundas com Eisntein, com Planck, com Heisenberg, etc., mas para Kant a física de Newton tem plena validade). E Kant se depara com o problema da metafísica; os grandes problemas: Deus, a liberdade, a imortalidade. Estes problemas escapam à experiência...

Então ele dirá: não é possível chegar a um conhecimento pleno na crítica da razão pura dessas realidades que vão se portar como o que ele chamará de idéias regulativas, mas não são objeto do conhecimento especulativo, da razão pura teórica.

Kant então se encontra com este fato e há uma limitação, que afeta precisamente estes grandes temas da metafísica. Mas não é que desapareçam, o que ocorre é que reaparecem no âmbito da razão prática e precisamente no âmbito da moralidade. E há um fato da moralidade: o homem é moral. O homem se sente responsável e portanto livre. E portanto moral. O único bem sem restrições é a boa vontade, que será o núcleo da atitude moral de Kant: a boa vontade. Ele vai precisamente considerar que a boa vontade consiste no respeito ao dever. Kant desvaloriza os desejos, os sentimentos, as emoções... tudo isto está muito bem, mas não tem que ver com a moralidade. Se eu faço algo porque me comovo, porque me parece desejável, por compaixão... isto está muito bem pessoalmente mas não tem nada que ver com a moral. A moral consiste em que eu faça algo por puro respeito ao dever. Este é o ponto de vista kantiano.

Por um lado, Kant necessita estabelecer uma moral que seja absolutamente válida. Ele  distingue entre imperativos condicionados e imperativos categóricos. Se dizem a uma pessoa: - Não coma demasiado porque vai engordar - Pois bem, vou engordar. Não faça tal coisa porque vai se machucar - Pois bem, vou me machucar... Ou seja, o imperativo perde validade, porque são imperativos condicionados, dependem de uma condição: se essa condição falta ou não se cumpre, então o imperativo cai. E ele quer um imperativo categórico, que obrigue sem restrições, sem mais. Então tem que ser um imperativo não material, não de conteúdo, que não dependa de tal ou qual coisa, mas: Faça as coisas de tal maneira!

A fórmula - há várias fórmulas para o imperativo categórico, mas seria mais ou menos isto: "Age de modo que o motivo de tua ação possa ser uma lei universal da natureza". Se eu posso querer que o motivo pelo qual faço algo se converta em lei universal da natureza, então isto moralmente obriga de modo absoluto. Ele dá exemplos, alguns muito triviais: se uma pessoa, faz um depósito em empréstimo para outra pessoa, há obrigação de devolver. Ou será que posso desejar que seja lei universal que quando se faz um empréstimo não se devolva? Ou que possa querer que seja lei universal que se minta quando se fala? Não, porque então ninguém acreditaria no que se diz e não se poderia viver.

Como vêem, essa idéia muito profunda em Kant - a idéia de uma moral autônoma, categórica - não pode ser uma moral de conteúdo - o que depois se chamará "moral material" - é uma moral formal, que se atém à forma da ação, ao motivo pelo qual se executa uma determinada ação.

Ora, o fato da moralidade - o fato de que o homem é responsável, se sente responsável e portanto livre e portanto moral - faz com que ingressem no campo da razão prática - que é superior à teórica - esses grandes temas, que não se podem equacionar suficientemente na esfera da razão pura teórica; essas grandes idéias regulativas, reaparecem no mundo moral, culminam no conceito de pessoa moral, que é central no kantismo.

Como vêem, é realmente uma revolução copernicana, é uma mudança profundíssima, é uma maneira nova de ver as coisas, é uma renúncia à crença ingênua de que se conhecem as coisas em si mesmas - há uma subjetividade que as transforma, que as converte em algo diferente; conhecer é transformar -, mas se salvam os grandes conteúdos da metafísica na esfera da razão prática.

É que a metafísica é eine Naturanlage "uma tendência natural": o homem não pode renunciar a fazer metafísica; o que acontece é que a tem que deslocar da razão especulativa para a razão prática. "Em primeiro lugar tive que eliminar o saber para dar lugar à crença", uma crença racionalmente justificada, na esfera da razão prática, que é a decisiva.

Isto foi, naturalmente, como uma espécie de terremoto intelectual. Naturalmente se trata de um sistema complexo e difícil: se quiserem ler Kant, eu lhes recomendo - as grandes Críticas são muito difíceis e muito extensas - A fundamenta-ção da metafísica dos costumes, é um livro breve, muito acessível e claro. E a Introdução à Lógica de Kant, publicado por Jaesche, e que é uma introdução a seu método filosófico.

Kant foi um filósofo que viveu 80 anos. E só muito tardiamente exerceu influência: por exemplo, seu principal discípulo, Fichte, só o conheceu em 1791, bastante tarde, e os outros são posteriores. Ou seja, os kantianos são netos de Kant: há uma geração intermediária que não é kantiana. E há ainda um problema muito delicado: quando há um grande filósofo, nem toda sua obra está em linguagem clara: há certos silêncios, certos esquecimentos, certas omissões... E entre os pós-kantianos, a razão prática têm muito maior relevo: sim, partem da crítica da razão teórica, contam com ela, mas não é o que seguem, não é o que primariamente desenvolvem. E o que fazem é uma especulação: são grandes construtores de catedrais, os grandes sistemáticos da filosofia, que elaboram grandes e impressionantes construções intelectuais, às vezes com certas violências à realidade. Ortega disse certa vez que tinha pensando em escrever um ensaio entitulado "Genialidade e inverecúndia no idealismo transcendental". E há esse afã, de esquematismo, do desenvolvimento das grandes construções intelectuais... e isto é a conseqüência imediata de Kant.

Depois há o positivismo. O positivismo recebe influência do kantismo, mas o recebe num momento em que se renuncia aos grandes problemas, em que se fala dos fenômenos e de suas leis; não se fala de essências, do que as coisas são. E isto faz com que o pensamento kantiano se converta numa espécie de metodologia do conhecimento empírico. E já na segunda metade do século XIX aparece o que se chama de neo-kantismo (sempre que eu vejo o prefixo "neo" me preocupo - há um livro famoso "Kant e os epígonos", cujos capítulos sempre terminavam com: "portanto é preciso retornar a Kant") - cuja escola mais importante é a escola de Marburgo, que além do mais nos interessa muito particularmente porque foi nela que Ortega se formou. O que querem é, em última análise, converter o kantismo em teoria do conhecimento, em epistemologia.

E ainda mais: há um momento no século XX em que se volta a ler Kant de outra maneira, com outros olhos. E lê-se Kant sobretudo como um pensador inacabado, que não chegou a completar sua filosofia: toda sua enorme obra era uma preparação para isto. O primeiro a reparar nesse fato foi Ortega. Ortega escreve um folheto em 1924: Kant: reflexões de um centenário. E precisamente examina Kant a partir do ponto de vista do que representa para a cultura alemã. Por exemplo, a dificuldade de ir mais além de si mesmo, a atitude freqüentemente subjetivista que aparece no pensamento alemão. Pouco depois publicou outro folheto Kant no qual explicita isto: Kant, afinal, é um metafísico: trata de fazer uma obra que não chega a completar, que se indica em alguns de seus livros, especialmente num deles há textos muito interessantes que comentarei brevemente daqui a pouco.

E em 1929 Heidegger publica Kant und das Problem der Metaphysik, Kant e o problema da metafísica, uma visão da metafísica indicada - mas não plenamente realizada - por Kant, que, em última análise, seria justamente um metafísico que não acaba de realizar sua obra.

Além disso Kant diz coisas particularmente muito interessantes quando fala das quatro perguntas fundamentais que devem ser feitas:

O que posso saber? A Metafísica responde a isto.

O que posso esperar? A religião responde a isto.

O que devo fazer? Isto é a moral.

E finalmente: O que é o homem? A isto responde a antropologia.

E Kant diz que estas quatro perguntas resumem-se, afinal, na última: "O que é o homem": E isto é interessante porque Kant faz a distinção entre dois conceitos da filosofia: o Schulbegriff, o conceito escolar da filosofia e o Weltbegriff, o conceito mundano da filosofia, a filosofia para a vida. E ele diz: mais importante é a filosofia para vida, o conceito mundano da filosofia.

Precisamente nesse breve texto da Introdução às Lições de Lógica, editadas por Jaesche, já no final da vida de Kant, é interessante que justamente a filosofia de Kant desemboca na distinção entre o conceito escolar e o conceito mundano da filosofia e nessas quatro perguntas capitais.

Já há bastante tempo eu disse na Antropologia Metafísica que, do meu ponto de vista, não é certo que se possa reduzir tudo a uma pergunta: O que é o homem? E o dizia precisamente num livro de antropologia. Eu dizia: - não, para começar, não está correta a pergunta: "O que é o homem?". Essa pergunta tem sido feita pela filosofia já há muito tempo, mas é uma pergunta errada, é uma pergunta que propõe um problema de resposta falsa, porque o homem não é um "que"... Se alguém bate à porta, não se pergunta "que", mas sim "quem" é. Devemos distinguir radicalmente entre "que" e "quem". A pergunta não é portanto "O que é o homem?", nem tampouco "Quem é o homem?" - isto não tem sentido - a pergunta radical é "Quem sou eu?". 

Outros filósofos alemães - de Kant a Hegel - falam do eu; a filosofia de todos os idealistas alemães está centrada no conceito do eu, que põe o não-eu. O eu transcendental. Sim, sim, mas quando se usa o artigo determinado com a palavra "eu", esta palavra se altera profundamente, fica substantivada, coisificada. Porque "eu" é um pronome, é um pronome pessoal, que indica precisamente a posição existente e única. Quando alguém bate e se pergunta "Quem é", frequentemente se responde: "eu", se a voz for conhecida. "Eu", não "o eu", que é uma abstração; "eu", rigorosamente pronominal.

Portanto, a pergunta não seria "O que é o homem?", a pergunta seria "Quem sou eu?". Mas esta pergunta vai acompanhada de outra, inseparável: "O que vai ser de mim?". São duas perguntas inseparáveis e que de certo modo se contrapõem: quero dizer que na medida em que posso responder plenamente a uma, a outra fica na sombra. Se eu sei quem sou, se eu me vejo a mim mesmo como pessoa, como quem, não acabo de saber o que vai ser de mim... Se, por outro lado, quero ter a certeza sobre o que vai ser de mim, evidentemente necessito apoiar-me em algo estável e executo a operação de - de certo modo - coisificação. Essas duas perguntas são inevitáveis, inseparáveis e - de algum modo - conflitantes. Por isso, é que eu acho que a vida humana é dramática. Continuaremos na próxima quarta-feira.