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Aristóteles


(Edição - em que procuramos manter o estilo oral - de conferência de
Julián Marías, que, como se sabe, não se vale de texto escrito.
Conferência do curso “Los estilos de la Filosofía”, Madrid, 1999/2000.
Edição: Renato José de Moraes.  Tradução: Elie Chadarevian/http://www.hottopos.com)

 

Julián Marías

 

Para esta conferência trago esta separata que podem consultar – preço: uma peseta! <risos> - “Aristóteles: o saber por excelência – versão e notas de Julián Marías”. É uma publicação que foi feita em Madrid pelos estudantes da Faculdade de Filosofia e Letras em 1935 – depois de Cristo, claro! <risos>. Era uma revista que nós estudantes fazíamos - a revista não durou mais que um ano letivo, porque depois veio a guerra civil e tudo se acabou. Havia uma seção que consistia em apresentar alguns textos particularmente interessantes, e eu traduzi os dois primeiros capítulos do livro I da Metafísica de Aristóteles, com uma pequena introdução. Nesta semana encontrei este texto e o trouxe porque é sumamente curioso – além do que, vendia-se à parte da revista, como separata, e custava uma peseta... Claro que o almoço no restaurante da Faculdade custava 2 pesetas ; com vinho 2,30, lembro-me muito bem.

É curioso porque no primeiro parágrafo desta tradução, isto é, nas primeiras linhas da Metafísica, já nos deparamos com o estilo de Aristóteles: “Todos os homens tendem por natureza ao saber. Sinal disto é seu gosto pelas sensações, pois estas, além do proveito que possam ter, agradam por si mesmas, e as da visão mais que as outras. Pois, não só em nossos afazeres, mas também quando não fazemos nada, preferimos o ver, por assim dizer, a todos os demais sentidos. E isso porque pela visão as coisas nos são mais notórias e manifestam-se muitas diferenças”. Este é o primeiro parágrafo da Metafísica, e os senhores verão como, afinal, nele já aparece o estilo de Aristóteles.

Aristóteles, era, como sabem, procedente da Macedônia, de Estagira. Lembro--me, uma vez, em uma carta, Ortega dizia-me: “Nosso mestre, claro, é de Estagira”. Nasceu em Estagira em 384, e morreu em Calcis em 322. Ou seja, ele viveu 64 anos: uma vida normal para a época, nem breve, mas tampouco longeva como os 80 anos de Platão. Mudou-se para Atenas quando era muito jovem, aos 18 anos, e esteve na Academia platônica.

Parece-me que por uns 19 anos permaneceu na Academia como discípulo de Platão e seu colaborador, e estou certo de que a influência mútua – insisto, mútua – foi muito grande. Imaginem o que devem ter conversado Platão e Aristóteles durante tantos anos... Com a morte de Platão, encarregou-se da direção da Academia uma figura de segunda ou terceira linha, Espeusipo, sem grande relevo, e Aristóteles abandonou a Academia de Atenas.

Ele foi, como sabem, e é uma coisa muito importante, mestre de Alexandre Magno. Mas, depois voltou a Atenas, passados muitos anos voltou a Atenas e fundou sua própria escola: o Liceu. Os senhores sabem que a tradição diz que ali se ensinava passeando, mestre e discípulos, por isso chamavam-nos peripatéticos, e chama-se Peripato à escola de Aristóteles.

Há um fato muito importante que é preciso desenvolver desde o começo: o destino do aristotelismo foi bastante estranho. Depois da morte de Aristóteles, ocorre um certo abandono do pensamento filosófico no sentido que Platão e ele haviam ensinado, e há até uma substituição deste pensamento rigorosamente metafísico, enormemente criador, por uma série de escolas que ocuparão o espaço da filosofia platônica e aristotélica, os chamados socráticos menores, as escolas que floresceram depois da morte de Aristóteles e que, afinal, representaram um nível de criação, de tensão filosófica muito diferente. A própria academia acaba por converter-se num centro de ceticismo, e a própria palavra “acadêmicos” passa a significar céticos; “Contra Academicos” é uma obra contra os céticos. E no seu prosseguimento, o Liceu passa por mãos muito pouco criativas, insistindo num pensamento informativo, bastante científico, e é curioso o enorme abandono de Aristóteles, que vai ter uma influência imensa muitos séculos depois. 

Não esqueçam que Aristóteles vai ter uma influência extraordinária na Idade Média. Ou seja, na Idade Média, quando parte dos textos aristotélicos passam através dos persas e árabes ao continente europeu - quando, por exemplo, Averróes faz os comentários, Averróes, “che’l gran comento feo” diz Dante, “fez o grande comentário”. Ou seja, há uma influência que depois passará normalmente aos cristãos, oportuna-mente falaremos da incorporação do aristotelismo ao pensamento cristão medieval, especialmente e sobre tudo em Santo Tomás, que não sabia grego, que não conheceu os textos gregos... Isto é muito importante, no ocidente cristão Aristóteles não é lido em grego, ele é lido na tradução de Guilherme de Moerbecke, de um modo indireto. Essa é uma coisa sumamente curiosa; falaremos disso oportunamente.

O impulso aristotélico foi imenso, desde a Idade Média, e depois ocorre - já adianto um pouco o que vai acontecer - que desde o Humanismo, e depois na filosofia moderna – de Descartes, dos séculos XVI e XVII – há uma reação anti-escolástica que envolve Aristóteles. O fato, afinal, é que Aristóteles passa por versões indiretas – não é lido normalmente, muito pouco, e quase sempre através de traduções ao latim principalmente. E é curioso como o Aristóteles escolástico não chega a ser plenamente Aristóteles e a reação anti-aristotélica dos modernos, dos humanistas em diante, vai ser um elemento de esterilização também.

É curioso ver a utilização escolástica, no sentido literal da palavra, no sentido que Ortega dava a todo o escolaticismo, ou seja, uma doutrina que atua, e que é recebida de outra época, de outra situação, e que tem sua influência em circunstâncias completamente distintas. A isso, como forma mental, como forma de transmissão de pensamento, Ortega chamava de escolaticismo, qualquer tipo de escolástica. E isto ocorreu essencialmente com Aristóteles. Aristóteles não foi lido em si mesmo diretamente em seu texto original, até o século XIX.

Aristóteles insiste em que todos os homens tendem por natureza ao saber, diz, “por natureza”. Crê que há uma disposição natural, fundamental, constante, em todos os homens. Há, portanto, diríamos, uma vocação natural e profunda do homem ao saber, ao conhecimento. Mas, imediatamente acrescenta que se trata das sensações, ou das percepções, talvez seja melhor dizer as percepções - com uma distinção que a filosofia introduziu depois (ele usa a palavra aísthesis) - e neste gosto pelas percepções, pelas sensações, diz que, preferencialmente, as da vista. E há algo muito interessante: que não somente por sua utilidade, por seu proveito, mas também quando não vamos fazer nada. Ou seja, quando se trata da skholé, a skholé é o ócio. O homem tem ócio e negócio; negotium é a palavra latina contraposta ao ócio. Ou seja, quando se faz algo ou quando não se faz nada; também para o ócio, skholé, daí, aliás, a pala-vra "escola", e a escola é o ócio, etimologicamente é isto. Há, assim, uma predileção pela vista, e ele diz que é porque ela mostra muitas coisas e mostra muitas diferenças.

Nestas poucas linhas, nestas pouquíssimas linhas que acabo de ler, está um pensamento visual. Aristóteles é um grande observador: a vista é justamente, entre todas as vias perceptivas, a mais importante. Porque revela, manifesta muitas coisas, diríamos que nos põe em aletheia, na verdade, e mostra muitas diferenças, permite conhecer a realidade com detalhe. Isto é fundamental, e Aristóteles tem essa função visual, ele foi um grande observador, é um homem de ciência, é um homem que se ocupa das plantas, dos animais, dos fenômenos naturais, que faz Física - uma Física filosófica, naturalmente -, parte dela está no tratado De anima, que forma parte também da natureza. Ou seja, de certo modo é um naturalista. É um homem atento às coisas concretas.

Lembrem que Platão diz que as coisas não são realmente reais, não são verdadeiramente reais. Platão diz que as coisas são sombras das idéias, das idéias que estão num topos ouranios num lugar supraceleste, e as coisas são por participação das idéias, não são portanto verdadeira realidade. Remontamo-nos das coisas sensíveis, perceptíveis, até as almas, as idéias, até chegarmos ao Bem, à Razão. Já do ponto de vista de Aristóteles, trata-se antes de interessar-se imediatamente, diretamente pelas coisas. E naturalmente vai dizer que as idéias estão nas coisas, justamente, e é o que chamará eidos. A palavra eidos é uma das palavras mais fundamentais, eidos é idéia. Pois bem, essa palavra que num texto platônico costuma-se traduzir por idéia, num texto aristotélico, eidos é melhor traduzido por espécie, pois a espécie está realizada na coisa, nas coisas.

É interessante observar como de Platão e de Aristóteles - ou partindo até do velho Parmênides, mas especialmente de Platão e de Aristóteles, e mais ainda de Aristóteles - procedem todas as espécies de conceitos que usamos (recordem como há o ón, o einái...). Mas Aristóteles lança a fundo a questão que vai ser o drama intelectual da filosofia grega; recordem o problema: do que é o ente, ou, que o ente é um, é imóvel, invariável... Por outro lado, há a realidade das coisas, há a mudança, o movimento, a physis, a natureza: isto é capital. Aristóteles dá um passo ontologicamente decisivo: dirá tò òn légetai pollakhôs: o ente se diz de muitas maneiras... E depois especificará as maneiras fundamentais.

Ou seja, há um ser, há um ente, òn, particípio presente do verbo einai, o verbo ser, mas leva em si mesmo a multiplicidade. O passo decisivo da ontologia aristotélica é precisamente este: admitir a unidade - o ente tem sempre um sentido capital, um sentido primordial - e se diz de muitas maneiras - como ele precisará, depois, em quatro maneiras. Ou seja, ele assume o núcleo argumental do pensamento grego - a unidade, a imobilidade, a permanência do ente - e a pluralidade da mudança. Em Aristóteles é essencial a análise da realidade. Ele fará essa análise com todos os conceitos fundamentais.

Pensem, por exemplo, no grande conceito, que ele torna fundamental, que é o conceito de substância. E com substância já começaram a alterar-se as coisas, porque Aristóteles originalmente diz ousía. A palavra ousía quer dizer primariamente os bens, a fortuna, as propriedades de algo. A ousía é o que uma pessoa tem; ela tem por exemplo uma casa e umas terras, umas vacas, isto é sua ousía, fundamentalmente. E precisamente um conceito muito importante, o conceito de liberdade, eleutheria, está ligado a isto, o homem livre é o homem independente, que tem uma ousía, que tem uns certos bens do quais vive, dos quais pode dispor. Esse repertório de possibilidades de quem tem algo, isso é a ousía. Nós usamos esta palavra, em sua versão latina, sub-stantia, que quer dizer o que está debaixo, o que está de pé, debaixo, aquilo que subjaz... Há aí duas palavras gregas, hypostasis e hipokeimenon. Na realidade, a palavra substância é tradução de hipostasis, o que está de pé, embaixo. Aristóteles emprega também a palavra hipokeimenon, o que sub-jaz. Há a substância e o que é subjacente. Subjacente a que? Ao que ocorre, ao que acontece, ao que sobrevem, ao que Aristóteles chama simbebekos, do verbo symbainein, isto é, os acidentes. A substância, dirá Aristóteles, subjaz a seus acidentes. Esta mesa que vemos é retangular, esta mesa é dura, é de tal cor... Predico diferentes atributos da substância, que está subjacente, substante. Essa é fundamentalmente a substância, está naturalmente com acidentes que ela sustenta ou suporta.

O que ocorre é que em Aristóteles o sentido primário não é esse, não é o de ser substrato, ou subjacente, ou substante; não, não: é a riqueza, é a possibilidade, digamos a concreta realidade da substância. A tradução latina, ao que parece, de Cícero, e que passou naturalmente às línguas modernas, debilita afinal o sentido primário da palavra ousía. Isso é capital, e possibilita uma reabilitação enormemente importante na história da filosofia, porque prevaleceu uma tendência de ver a substância como o substante, o que está debaixo de, o que é suporte de acidentes ou propriedades, e assim se elimina o sentido principal, o sentido radical.

Aristóteles igualmente tratou de fazer uma análise de como funciona essa realidade, de como é a realidade. Por exemplo, as distinções que empregamos o tempo todo, não já em filosofia, mas na nossa vida cotidiana: somos aristotélicos numa proporção incrível. A idéia de matéria e forma, hýle e morphe, que parece que se aplica a tudo, são conceitos aristotélicos, que são introduzidos justamente para analisar em que consiste uma substância, o que é uma substância.

Por exemplo, as duas palavras dýnamis e enérgeia. Dýnamis é: possibilidade, potência. Enérgeia é energia: e é curioso que depois foi equiparada ao dinâmico, à dýnamis. Mas em Aristóteles são opostos. Os latinos chamaram de actus a enérgeia; actus, ou seja, atualidade, plena realidade, não potência, não mera potência, não mera possibilidade. Aristóteles interpretará o movimento como a atualidade do possível, ou seja, a atualização da dýnamis, que a dýnamis passe a ser enérgeia. Os conceitos de prática e teoria, que empregamos a todo tempo. Em Aristóteles se distingue a poíesis, que é a fabricação, a produção, tanto faz produzir uma mesa ou um soneto, produz-se algo e neste sentido se é poeta. Mas por outra parte, há o conceito de praxis, que é a ação, o que se age.

Mas, claro, a forma suprema de praxis para Aristóteles, o mais praxis de tudo é a theoria. Há por vezes a pretensão de opor teoria à prática, mas a teoria é o que há de mais prático...: para Aristóteles, é a forma suprema de praxis, é a contemplação, é a visão. E aí aparecem as formas de vida, que terão uma importância enorme no pensamento aristotélico. Há o bios politikós; a vida produtiva, há o bios praktikós; e há a forma suprema, o bios theoretikós, a vida teorética, a vida teórica, que é a mais prática de todas, que consiste precisamente na visão, na contemplação, aqui aparece plenamente aquela idéia visual, da visualidade no pensamento de Aristóteles.

Para Aristóteles isto vai explicar um fenômeno estranho, mas evidente, recordem como os Gregos distinguiam entre a evidência da realidade e a evidência intelectual. A evidência intelectual é a coisa que está diante de nós e que nos obriga a pensar, que nos obriga a pesquisar. Isto é, essa mesa é evidente, aí está, mas podemos entender o que ela é, de que foi feita, do que se compõe, isso não é evidente, deve ser indagado. Mas há a evidência da mesa e isso me obriga precisamente a perguntar-me sobre ela. Porque há esse fenômeno da natureza, a physis, que é justamente a origem do movimento, que as coisas mudem, que as coisas chegam a ser e deixam de ser, mudam de qualidade, mudam de temperatura, todas as mudanças imagináveis. Ou chegam a ser e deixam de ser, que é a forma mais fundamental, mais radical de natureza.

Tudo isto está em Aristóteles e o usamos a todo tempo, não por ser filosofia. Poucos lêem filosofia, mas todos vivemos e todos usamos uma língua que é aristotélica numa altíssima proporção. Gente que não sabe nem quem era Aristóteles, que não conhece seu nome (e certamente não sabe nem uma palavra de grego), emprega justamente o vocabulário e o sistema conceitual de Aristóteles o tempo todo. Nesse sentido, a fecundidade aristotélica é extraordinária. E Aristóteles enfrenta os problemas com uma grande clareza, com um rigor assombroso. Quando se lê Aristóteles, a ele diretamente, a impressão que se tem é de realidade, de estar aproximando-se da realidade, mergulhando nela. Por exemplo, quando Aristóteles fala de substância, diz que substância propriamente são as coisas naturais, são os homens, os animais, as plantas ou suas partes, a terra, a água. E há outras coisas, a mesa, por exemplo, a mesa já não é natureza, é apotekhnes. É algo derivado da técnica: tekhné é arte, a arte de curar, por exemplo, é o nome que se dava à medicina. E então são realidades, são substâncias segundas, não são verdadeiras substâncias.

E Aristóteles, que tem certas incoerências, certas faltas de consistência consigo mesmo, quando vai explicar o mecanismo da substância, ou da mudança, quando vai explicar como uma substância tem hyle e morphé, tem matéria e forma, fala por exemplo da estátua. Na estátua, a matéria é mármore, por exemplo, ou bronze; e a forma é a bela Afrodite, ou o feio Sócrates. Mas, claro, a estátua, segundo Aristóteles, não é uma substância, não é uma verdadeira substância, porque é apotekhnes, é artificial. E quando fala da mudança, da variação, diz por exemplo que se eu enterro uma cama, e a madeira está viva, não se dão camas, dá-se uma árvore, porque justamente é o que está vivo, o que é propriamente substância é a madeira de que está feita a cama, e não a própria cama, que é apotekhnes. O curioso é que precisamente quando vai explicar, quando vai dar exemplos de substâncias e dos mecanismos ontológicos que regulam a realidade da substância, dá exemplos daquilo que não são substâncias, isto é, das substâncias segundas, dos objetos artificiais. Isto é algo muito sério... Eu gostaria de perguntar isto a Aristóteles: por que apresenta estes exemplos? Por que, afinal, quando vai exemplificar e mostrar as operações da substância, recorre ao que segundo ele – precisamente, segundo ele - não são substâncias, não são verdadeiras substâncias?

Aristóteles vai, além disso, fazer a teoria dos graus do saber, e começa pela sensação, que é comum aos animais. Na verdade, alguns animais têm memória, outros não, os que têm memória podem aprender, e há aí um conhecimento superior, que é a experiência, a empeiria. E há também um conhecimento que opera segundo princípios, que é a tékhne, a arte, donde vem a palavra técnica. E há também o conhecimento científico, a episteme, que é o conhecimento da ciência. Mas ele dirá também, que nem tudo se conhece pela episteme, que há a visão noética, recorrendo a um velho conceito que provêm de Anaxágoras, noûs, e dirá que há algo superior à ciência, que é a sophia, a sabedoria, que é episteme kai noûs, ciência e visão, visão noética, com o que se chega ao cume, ao saber supremo, ao saber por excelência.

E isso acompanha os graus do ser. Há um momento, um conceito capital, que vai ter um valor imenso e vai influir depois na teologia cristã de uma maneira extraordinária, que é o conceito de Theos, de Deus. Deus, precisamente é a forma suprema do ente. Quando fala de conhecimento acerca do ente enquanto tal, enquanto ente, a forma suprema do ente é precisamente aquela que é pleno ato, que não é possibilidade, que não é potência, mas realidade plena. E de Deus, Aristóteles dirá precisamente que é noesis noesios, a visão da visão: Deus se vê a Si mesmo, contempla a Si mesmo, consiste precisamente nisso. E assim culmina precisamente essa concepção visual, com a visão que não é, naturalmente, aísthesis, que não é sensação, que não é sensível, mas é justamente a visão que Deus tem de Si mesmo, diríamos, a realidade última, transparência para Si mesmo.

De modo que tenho insistido precisamente no uso habitual desses conceitos aristotélicos, que nos impregnam, de que está impregnada não somente toda nossa cultura ocidental, mas também nossa língua: usamos constantemente o vocabulário aristotélico para nos entendermos. Trata-se de uma influência indireta principalmente, a influência dá-se através do latim em grande parte. Primeiro no mundo romano, não muito, porque Aristóteles não tem grande circulação no mundo romano. Mas principalmente no mundo medieval, que realiza alterações muito profundas, muito fundamentais, e os graus mais profundos da ontologia aristotélica, de certo modo atenuam-se, tornam-se nebulosos, porque passam a estar a serviço de outros propósitos, de outros interesses que são diferentes. Em última análise, a história do aristotelismo é muito complicada, e eu creio que não se pode compreender bem a não ser com uso muito profundo, que ainda não foi empreendido, da razão histórica, e, se se estuda o que aconteceu com Aristóteles, com sua fama, com seu nome, com sua idéias, com o culto a Aristóteles, evidentemente. Não esqueçam, por exemplo, que Santo Tomás o chama simplesmente Philosophus, o Filósofo, o filósofo por excelência. Dessa atitude passa-se – principalmente no Renascimento e depois no século XVIII – a um desprezo a Aristóteles. Aristóteles torna-se a algo arcaico, desprezível, sem importância. Procurar-se-á intensamente, já bem avançado o século XIX, em voltar ao próprio Aristóteles, a ler suas obras, não aos comentários. Então se descobrirá uma dimensão de profundidade extraordinária, que não me atrevo a dizer que esteja conservada. Se tomarmos o pensamento dos últimos 100 ou 150 anos, veremos que até certo ponto o aristotelismo é vacilante é deficiente. Eu creio que faz falta uma profunda imersão em Aristóteles, não para deter-se nele, mas para tê-lo em nós, em sua realidade.

Não esqueçam que Aristóteles é além do mais o criador das disciplinas filosóficas; Aristóteles é o verdadeiro criador da lógica, o Órganon. Órganon quer dizer instrumento, ou seja, o criador de uma série de tratados lógicos que continuam vigentes, dos quais afinal continuamos nutrindo-nos. É que os passos que se deram em lógica além de Aristóteles têm-no como pressuposto, e além do mais são secundários dentro da massa imensa da teoria lógica de Aristóteles. A Física, naturalmente, é uma física filosófica, muito distinta do que se chama física na Idade Moderna, mas afinal a Física tinha sido a de Aristóteles, até Copérnico e Galileu, tinha sido a de Aristóteles substancialmente, com o grau incrível de vigência, muito mais que milenária, que ela teve. E a ética, as várias éticas que Aristóteles escreve: a mais importante é a chamada “Nicomaquea”, a “Ética a Nicômaco”, o nome de seu filho. E a política. Na política, depois dos escritos políticos de Platão – “Político”, a “República”, “As Leis” -, a grande construção sobre tudo intelectual da política tinha sido a Aristotélica, cuja vigência também se manteve – com essas épocas de abandono e de obscuridade que são características do aristotelismo – até muito avançada a época moderna. E, infelizmente, em grande parte se foi esquecida. É evidente que a atualidade que a Política de Aristóteles tem é algo arrebatador, é algo absolutamente assombroso. E a teoria da felicidade, da eudaimonía, está justamente ligada à sabedoria (diríamos com uma tentação de chamá-la intelectualista), no pensamento de Aristóteles. É de uma grande riqueza e profundidade: os textos aristotélicos não são muito extensos, eram sóbrios. A Metafísica de Aristóteles – eu me lembro que Ortega dizia divertidamente que todas as grandes metafísicas são metafísicas de bolso. Evidentemente sim, quase todas cabem num bolso, a Metafísica de Aristóteles, em seu texto grego, na edição normal, cabe no bolso do paletó, não é um grande livro. A densidade, a dificuldade de estudar Aristóteles é a de reter cada frase, é tomá-la a sério. Isso é o que ocorre. Isso evidentemente, umas vezes fez-se, outras não, ele foi parafraseado, diminuído, ligado a coisas que não tinham muito que ver com ele...

Mas - em todo caso - é um estilo visual, é um pensamento visual. Nem toda a filosofia é visual. A maior parte da filosofia não foi feita visualmente, eu digo às vezes, meio de brincadeira, que quando um filósofo diz algo que não está vendo, já deixou de interessar-me: não está vendo. Os senhores lêem, por exemplo, muitos autores que não estão vendo o que dizem, estão raciocinando, estão articulando silogismos..., mas não estão vendo. Esqueceram algo muito importante: e é que evidentemente, as maiores dos silogismos não se pensam, procedem da intuição, de uma visão, que é justamente o que Aristóteles sabe muito bem. Precisamente por isso dirá que a forma suprema do conhecimento, a sabedoria, a sophia, é epistéme kai nous, ciência e visão.

A visão é capital, é justamente o que nos inclina à realidade e nos obriga a trabalhar sobre ela. Mas, se não há esta visão capital, falta o elemento fundamental. Se consideram a história do aristotelismo, verão como isto é paradoxal: fez-se um uso minimamente visual de Aristóteles. A maior parte do que se fez utilizando Aristóteles, em seu nome, desenvolvendo-o, não era visual. Seria importante perguntar por que, por que razões. Em última análise, por conta dos interesses dos que lidavam com ele, além do fato, insisto, de que o conhecimento foi deficiente, indireto e por traduções na maior parte da história. Mas, além disso, o que é que se buscava, o que é que importava: Aristóteles foi utilizado como um instrumento. Há, naturalmente, o uso de sua lógica, que é fantástico. Sim, mas a lógica é simplesmente um instrumento, é um instrumento para buscar a verdade, é um instrumento para o encadeamento das verdades, para inferir umas das outras, isso é importante. É importante, sim, mas não se esqueçam do nous, não se esqueçam dessa visão.

Os senhores dirão: E Platão? Platão sim, mas afinal tem que se afastar do que se vê, tem que se remontar à imaginação das idéias, que não se percebem, que não se vêem. Tem que situar a realidade verdadeira nesse tópos hyper ouránios, nesse lugar supra celeste. Vê-se isso, claramente, já no mito da caverna. As sombras que vemos, e nessa visão, quando aquele que está na caverna se rebela, e sai, fica de imediato cegado pela luz, pelo esplendor da luz.

Como vêem - falamos aqui de estilos de fazer filosofia, e o estilo desse grande platônico, o platônico por excelência, que é Aristóteles, é no entanto diferente do estilo de Platão. E não esqueçamos que vai ser diferente do estilo dos aristotélicos, das várias estirpes de aristotélicos que têm existido.

Ressaltemos o seguinte: se as filosofias são consideradas repertórios de doutrinas, teorias, sistemas de conceitos, teremos uma visão que exclui os estilos, que deixa de fora as atitudes a partir das quais cada filósofo filosofa. O que é problema para eles? O que é verdade para eles? O que é saber, em que se basear? O que quer dizer entender? Com o que se conta? O que é que importa? O que é que se busca? Para além das doutrinas - que como estamos vendo se encadeiam, de certo modo procedem umas das outras, se corrigem, se superam - há algo fundamental que está ligado a cada pessoa, em sua época, em sua língua, em seu país, em suas angústias pessoais, no que realmente necessita saber para viver.