Temas Étnicos: Masculino e Feminino?

 

 

Roseli Fischmann
(Faculdade de Educação da USP / Univ. Mackenzie)

A quem partilha comigo o Mistério

 

Diz a lenda que no tempo e nas sociedades em que se acreditavam em deusas, os seres humanos aceitavam mais facilmente o imponderável e o imprevisível.

 

A criação feminina representada pela gestação e parto de filhos, saída de suas entranhas, sugeria a possibilidade da criação do mundo e da espécie nos mesmos termos.

 

A fecundidade, apresentada na dependência da interação com o Outro, força oposta e complementar, sugeria a necessidade de recriação cotidiana da natureza e da própria humanidade. A geração, uma vez efetivada, provida de potencial próprio, incontrolável, porém dependente, ao longo da gestação, do corpo que a contém, indicava caminhos de uma cosmogonia livre de sentidos prévios, embora inevitavelmente atrelada à concepção primordial divina.

 

A possibilidade do espanto e do susto, pelo imprevisível, convivendo, portanto, com a festa do infinito das possibilidades.

 

Em outra perspectiva, culturas que priorizaram ou monopolizaram na figura masculina a divindade, viram-se na iminência de terem que atribuir à palavra a criação. Ao corpo masculino foi atribuída onipotência, poder de vida e de morte, de geração de mundos e povos. Na impossibilidade de comprovação corpórea da veracidade do que se erigiu como matéria de fé, identificou-se à capacidade da fala, a capacidade da criação: ao pronunciar o que deve ser, o criador faz com que a criatura SEJA. Dado o fato de que à palavra precede o pensamento, atribuiu-se ao criador a capacidade de intenção prévia, delineamento consciente e total controle de sua obra. Uma figura masculina, portanto, que independe de uma parceira para criar e, mais ainda, que domina plena, completa e totalmente o gérmen e os destinos de sua criatura, do próprio cosmos. A responsabilidade da decisão e da definição do futuro, pela possibilidade de controle, convivendo, portanto, com a angústia da onipotência, ilusória.

 

Não seria nossa ordem político-econômica um produto dessa ilusão opressiva? Não seriam as guerras de conquista, e seus domínios de territórios geopolíticos e culturais, uma extensão dessa expectativa de onipotência masculina?

 

A homogeneização cultural pela qual passamos, como subproduto da globalização econômica, tem sido apontada como um fenômeno recente. Contudo, a busca imperialista da conquista, tal como vivenciada, por exemplo desde a Pax Romana, sempre trouxe, em si, essa sede de imposição de um padrão único de mentalidade e atitudes.

 

Supremo símbolo da conquista definida e definitiva, submeter o Outro a seus padrões sempre valeu tanto quanto conquistar seus territórios. Tratou-se, sempre, na verdade, de conquistar a identidade do Outro - aquele que questiona, impõe limites, estabelece diferenças, para o qual o território geográfico é apenas a expressão dos territórios mais vastos, complexos, algumas vezes inapreensíveis, de sua identidade.

 

Talvez possamos afirmar que conquistas de territórios do Outro venham se configurando ao longo da História como atividade masculina. Assim, o estupro como forma de limpeza étnica não é invenção dos tempos modernos, sendo, ao contrário, a forma mais cruel e desumana da expressão de barbárie que ainda habita o ser humano.

 

A afirmação masculina, talvez dormente no inconsciente coletivo, da plena possibilidade de determinação de rumos das criaturas, do mundo, do universo, pela razão, agente de planejamento, talvez seja o móvel a conduzir essa busca-sem-fim-porque-nunca-se-realiza.

 

Entregues à incapacidade de comprovação de sua onipotência, os homens fazem guerras em um ritmo de neurose coletiva, uma vez que nem sempre a guerra há de ser física, e a conquista, cruenta.

 

Autores como Konrad Lorenz, no campo da Ética proposta a partir de questões levantadas pela "evolução" da espécie humana, Emanuel Levinas, na Ética derivada da reflexão teológica, Grahame Clark, nos ensinamentos da Arqueologia, Allen Wheelis, na reflexão psicanalítica da sociedade, têm alertado para o perigo que o abandono das diferenças representa para a sobrevivência da humanidade. Essa diferenciação pode ser pensada tanto no campo das etnias e seu significado profundo como gradiente da espécie, quanto na parceria básica presente nas relações homem-mulher.

 

Conhecer a mensagem da criação presente em cada tradição étnica poderá nos ajudar a compreender a definição de papéis tal como tem se estabelecido até nossos tempos. Mais ainda, a reflexão mais aprofundada poderá nos ajudar a descobrir que é no campo da recriação humana da divindade que o próprio ser humano quer brincar de deus e de onipotente - talvez sinal de sua infância ainda tão tenra, até que a maturidade da espécie lhe dê tranquilidade para afirmar suas próprias limitações e dependências.

 

Talvez nesse caminho o homem possa se reencontrar como parceiro da mulher, despir-se da onipotência que lhe foi atribuída, viver o direito de recriar-se, partilhando esse mesmo direito com a mulher.

 

Nesse sentido, a vivência do corpo - o de Si Mesmo e o do Outro - em uma perspectiva da integridade humana, é a condição básica para a consciência de nosso ser, em seus limites e possibilidades. Nem deuses, nem deusas, e sim seres imprevisíveis, potentes apenas na interdependência inevitável da criação humana, com tanto a conquistar ainda dentro de si, que o Outro, a Outra, é mais a oportunidade que a ameaça. Um Outro, talvez com um sabor feminino, gerador, cujo útero abriga gêmeos, múltiplos, como as muitas faces étnicas da humanidade, o desafio de perpetuar-se, sem fossilizar-se, de abrir-se ao Outro, sem desintegrar-se.

 

Dessa forma, nas dinâmicas simbólicas, tão presentes quanto desconhecidas na configuração do social, trazer à luz a sabedoria de diferentes tradições étnicas, de como vêm e lidam com o corpo - devidamente adjetivado, masculino e feminino - será uma contribuição para a compreensão dos papéis socialmente definidos e desempenhados por homens e mulheres.

 

Papéis onde, sem dúvida, é determinante o elemento "criação", da qual a "reprodução" é a face mais visível, mais praticada e aquela onde - talvez de maneira mais decisiva - se definem os padrões de dominação e submissão, de forma nem sempre sutil, embora sempre determinante.

 

É por isso, também, que a adjetivação saúde "reprodutiva", de uso freqüente em meios onde se discute a temática dos direitos da mulher, talvez seja insuficiente, uma vez que se trata de algo mais amplo e profundo. A relação com a reprodução física é campo próprio da cultura, do poder, da espiritualidade, da "alma ancestral humana", nas palavras de Jung. E, sem dúvida, é a integridade do ser humano que está aí em jogo. Se a nós mulheres coube empunhar a bandeira, bem-vindos sejam os homens de boa vontade, porque - quem sabe? - acaberemos encontrando o caminho de haver Paz na terra, como no céu.

 

"Quem sabe?
Talvez o super-homem venha nos salvar
Mudando como um deus o rumo da história
Por causa da mulher..."

(Gilberto Gil)