Educação, Direito e Justiça e
Ação Para a Cidadania -

 

Editorial

 

Antonio Carlos Rodrigues do Amaral
Professor da Universidade Mackenzie (São Paulo)
ITP/LL.M’94 (HLS)

 

A sociedade contemporânea atravessa um período de notáveis transformações econômicas, políticas e sociais. Todas elas atreladas, em maior ou menor grau, à ampliação da interdependência entre as nações. A internacionalização dos negócios, sobremaneira acentuada na última década, não representa apenas a alteração periférica de certos aspectos do comércio exterior, mas sim a mudança da própria mentalidade - de visão de mundo, de paradigmas - da sociedade. Parodiando Tocqueville em suas análises sobre a Revolução Francesa, podemos dizer que a globalização das economias, por via da integração dos mercados, representa não apenas a abolição de uma forma antiga de regime econômico, mas a abolição de uma forma antiga de sociedade.

 

Se, de fato, o século XX representa uma época de indiscutível avanço tecnológico e econômico, o mesmo não se pode concluir acerca da educação, aqui entendida em seu sentido mais amplo. Segundo a UNICEF, a educação - representando processo dinâmico de aprimoramento do ser humano, na perspectiva técnica e moral - não avançou muito, em termos mundiais, comparativamente a dois ou três séculos atrás.

 

Notadamente, o relativismo moral, que de maneira mais flagrante se potencializa nos primórdios deste século, nasceu aliado a um racionalismo pragmático que deu ampla sustentação aos fenômenos totalitários e autoritários de todas as tendências.

 

Assim, a educação voltada à dimensão ética - necessária à realização integral do homem - foi deslocada em prol do tecnicismo dominante.

A perda do sentido moral do indivíduo, relativizando o certo e o errado, o justo e o injusto, o necessário e o conveniente, produziu incoerências gritantes na sociedade moderna. Seus frutos, na órbita governamental, apresentam ao redor do mundo o crescimento dos índices de corrupção e a ausência de programas estáveis de governo voltados às populações mais carentes. A injustiça social está presente em toda parte.

 

Nesse particular, discutir-se uma ação para a cidadania sob os laços do Direito e da Educação naturalmente une os ideais acadêmicos de graduados e professores de duas instituições de renome internacional, Harvard, nossa alma mater, e a Universidade de São Paulo - USP, a mais destacada universidade da América Latina. Ademais, a publicação da presente série acadêmica International Studies on Law and Education, se insere naturalmente nos propósitos mais nucleares da associação dos graduados pela Harvard Law School do Brasil, consoante já espelha o artigo segundo de nossos estatutos:

 

ARTICLE II-PURPOSES

The purposes of this Association shall be to advance the cause of legal education, to promote the interests and increase the usefulness of the Harvard Law School, and to promote mutual acquaintance and good fellowship among all members of the Association and other members and alumni associations of Harvard University.

 

A presente série acadêmica procurará apresentar estudos não apenas de caráter eminentemente técnico no campo das ciências do Direito e da Educação, mas igualmente dar margem à apresentação de trabalhos que visem ao aprofundamento dos princípios éticos que devem conduzir a prática da cidadania e do exercício do poder. São temas da mais extrema importância para a sociedade moderna, em especial para o Brasil, cuja democracia é relativamente recente e cuja questão da ética na política, e na prática geral dos negócios e das relações sociais, se apresenta de nítida atualidade e fundamental ao desenvolvimento político, econômico e social do país.

 

É destacadamente à luz da Educação e do Direito que exsurgem os princípios maiores a reger a construção de uma sociedade voltada ao desenvolvimento de uma grande nação como a brasileira.

 

Como ensinam os clássicos, o homem não adequadamente educado - cultivado, diriam os antigos, no sentido de bem lhe serem desenvolvidas as faculdades em potência inscritas na natureza humana - fica de certo modo apenas limitado a ações e reações perante a realidade que o cerca: como escravo e não como senhor das circunstâncias. As conseqüências da falta de uma adequada formação técnica juntamente à construção de valores morais são, sem dúvida, incomensuravelmente mais graves em países com grande distorção social, como no Brasil, e muito sensíveis no homem público e naqueles chamados a serem formadores de opinião. Desnecessário sublinhar o quanto isto afeta aqueles que se dedicam à atividade docente, bem como ao jurista e ao legislador, encarregados de emoldurar a vida em sociedade segundo princípios mínimos a fomentar a realização individual e social dos cidadãos.

 

A nova forma de sociedade à luz da democracia contemporânea impõe novos horizontes. O despertar para a cidadania impõe igualmente reavaliar antigos preconceitos, como os voltados a uma visão extremamente negativa das práticas da advocacy e do lobby (aqui entendidos em seu sentido original e correto, que se traduz na defesa de interesses legítimos, por meios também legítimos, junto aos Poderes Públicos). Impedir a participação das mais diversas e variadas correntes sociais na formulação das políticas públicas é sempre interessante aos bucaneiros de plantão (que assim não permitem estabelecer o contraditório!). A pressão dos grupos representando interesses contraditórios - naturalmente existentes nas democracias - junto aos órgãos governamentais, por decorrência trará maior transparência nos debates políticos e eficiência e justiça nas decisões adotadas. A justiça das políticas públicas se manifesta a partir do conhecimento adequado dos vários prismas dos temas debatidos.

 

A par do aprofundamento da participação social na formulação das políticas públicas, o avanço da educação é também importante veículo para o controle social dos atos emanados dos órgãos do Poder. Sem dúvida, a orientação técnica e também ética da conduta do homem público e dos cidadãos devem se projetar em uma órbita de elevado debate das razões subjacentes aos vários interesses defendidos pelos mais variados grupos sociais.

 

Como bem alerta o Professor Luiz Jean Lauand, da USP, ao analisar a defesa que Tomás de Aquino faz da participação do homem de bem nas estruturas governamentais: "não se trata, no homem virtuoso, de aproximar-se da esfera do poder em proveito próprio, mas ad fructificandum e não ad delectandum (para dar bons frutos e não pelo prazer do poder...)".

 

A educação não apenas técnica, mas igualmente moral, seja do governante ou do governado, diz respeito à própria realização em plenitude do indivíduo e da sociedade como um todo. Ao político, em especial, deve se exigir um plus de ética. O político deve ser um arquétipo moral da sociedade, como bem sustenta o parlamentar espanhol e notável filósofo contemporâneo Andrés Olleros.

 

Mas como falar em desenvolvimento político e social pelo aprimoramento educacional do país, à luz da técnica e da moral, principalmente se neste último campo popularmente dá-se um conceito tão pobre e equivocado de sua real dimensão?

 

A moral e a ética, já lembram os clássicos da filosofia universal, não se manifesta em regras ou proibições impostas por pais, mestres ou religiosos, como também recorda Lauand. A moral, sublinha o Aquinate, diz respeito ao próprio ser do homem, a aquilo que ele é e está chamado a ser. O ato imoral, sobre consumar um dramático dano às estruturas políticas e sociais, ganha um nítido caráter de automutilação existencial.

 

A falta de formação moral é, por conseqüência, segundo todo o ensinamento clássico construído ao longo dos últimos milênios, uma deficiência estrutural no ser humano, representando um obstáculo insuperável na correta avaliação das circunstâncias que a realidade lhe impõe. O homem é um ser tal que, necessariamente, deve abrir-se para o todo da realidade que o cerca. Na perspectiva de sua realização e felicidade, é uma porta que se abre para fora: quem a força para dentro - no dizer de Kierkgaard - emperra-a. No mesmo sentido, como alerta Alexis Carrel, "os homens mais felizes e mais úteis são formados por um conjunto harmonioso de atividades intelectuais e morais".

 

Entre as várias virtudes a serem desenvolvidas no ser humano através da educação, na perspectiva das relações com o próximo se denota a justiça como de importância capital. A virtude da justiça - que se projeta no reconhecimento do direito alheio - é a virtude social por excelência, sendo o eixo fundamental sobre o qual se estrutura toda a sociedade.

 

Como sublinha Pieper, "a justiça é a mais decisiva entre as atitudes éticas fundamentais, e a injustiça a corrupção maior do homem natural e moral". Se o homem público for justo, pode-se esperar justiça de seus atos. A pergunta pieperiana que fica é crucial: "Quem, ou o que, poderá deter o poderoso de fato de ser injusto, a não ser o seu próprio senso de justiça?"

 

Os inúmeros, e muitas vezes eticamente questionáveis, choques heterodoxos para controle da inflação que se vislumbraram num passado não muito distante do país, esmagaram direitos e garantias fundamentais - construídas ao longo de mais de duzentos anos de constitucionalismo - sem que houvesse, para a parcela maior dos atingidos, mecanismos hábeis e eficazes para a correção das gritantes injustiças cometidas.

 

A experiência mundial também demonstra - ainda que apenas se recordando as barbáries das duas grandes guerras - que todo o arcabouço jurídico-normativo-institucional, como o estabelecimento de direitos humanos e do cidadão, não são capazes de ofertar efetiva e eficiente proteção ao corpo social ante um ato injusto por parte do governante.

 

Assim, tanto mais importante e necessária se fazem publicações como a presente, a fim de contribuir para bem preparar o governante e o cidadão, desenvolvendo-lhe a mais ampla capacidade de percepção e interpretação das complexas realidades que nos cercam. E tanto mais será bem sucedido o desenvolvimento nacional, quanto também preocuparem-se os educadores, juristas e legisladores com o desenvolvimento mais profundo do senso ético do homem público e do particular, especialmente voltado para a virtude da justiça.

 

Afinal, como também sublinha Pieper: "Se é utópico esperar que haja no mundo uma autoridade justa, e se é utópico o propósito de orientar o esforço educativo de um povo no sentido de fazer dos jovens, e sobretudo do escol dirigente, homens justos, então já não há a mínima esperança".

 

Assim, Educação, Direito e Justiça caminham de braços dados para a formação humana em seu sentido mais amplo, iluminando os caminhos da democracia contemporânea. A ação para a cidadania que se vislumbra como essencial para a realização plena da sociedade e do ser humano, é um dos objetivos nucleares de publicações como este série de estudos ora trazida a público.

 

Resta o agradecimento a todos os que colaboraram com a presente edição, notadamente aos autores que nos brindaram com o envio de tão relevantes estudos, e especialmente ao Prof. Dr. Luiz Jean Lauand, da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, mestre de renome internacional, por ter a nós da HLSAB externado tão honroso convite no sentido de ser elaborada a presente publicação, comemorativa dos 30 anos da FEUSP. Através de atividades acadêmicas como a presente, também repousa a esperança social de que sejam formados não apenas indivíduos tecnicamente preparados, mas também cidadãos moralmente bem formados, sendo, acima de tudo, governantes e cidadãos justos: que sejam verdadeiros líderes e exemplos em uma sociedade tão carente de ética na política e na órbita social como um todo!

 

Antonio Carlos Rodrigues do Amaral

 

President, Harvard Law School Association of Brazil. Professor de Direito Constitucional da Universidade Mackenzie. Master of Laws pela Harvard Law School. Mestre em Filosofia e História da Educação, com distinção, pela FEUSP. Pós-graduado em tributação internacional e comparada, com a distinção de excelência, pelo Harvard University International Tax Program.