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Naftalina
 
Publicações antigas de JL

("Jornal da Tarde", 1-5-82; re-publicado in Filosofia, Educação e Arte, 1988 )

 

Jean Lauand

Está na moda reservar o termo "realista" para aqueles que em arte, ciência ou filosofia encaram os temas de modo cru e materialista; e, complementarmente, fugiriam à realidade ("subjetivistas") os que transcendendo a materialidade do fato bruto pretendessem, se atrevessem, a reconhecer como real o sentido humano aí presente. Assim, realistas seriam o filme com close-ups e detalhes de uma matança; um filme sobre o sentido da vida é alienante e meio de fuga à realidade.
Há realismos e realismos e a importância do tema da realidade exige, a nosso ver, algo de bem mais profundo que a adesão inconsciente aos atuais padrões de linguagem. Por isso, em torno ao tema da realidade e do realismo, trazemos reflexões e depoimentos de filósofos como Platão, Pieper e Lewis; de escritores como Guimarães Rosa, Machado de Assis e outros.
Presidindo o encontro desses ilustres sábios, Platão. Algo assim como um "symposion" em casa de Agatão(1); apinhados ao redor de Platão.
Por que Platão? Duas breves palavras para justificar.
Com toda sua britânica tranqüilidade, Whitehead, olhando para o passado e para o presente, surpreende-nos dizendo que teremos a melhor caracterização da tradição filosófica e cultural ocidental ao afirmar que ela não passa de notas de pé-de-página a Platão. (2)
Para quem nunca leu (ou compreendeu) Platão, tal afirmação pode parecer uma enormidade de exagero: o que um grego de há dois e meio milênios pode ter a dizer hoje?
Certamente há temas e afirmações em Platão destituídos de sentido para os nossos contemporâneos contextos. Mas a essência de sua obra, e especialmente seus posicionamentos de fundo (3), continuam vivos, e muito próximos de nós. E, nesses pontos pelo menos, parece-nos que, de fato, a filosofia ocidental continua, hoje e sempre, aos pés das páginas do velho mestre. Para dizer-lhe Sim ou Não, para acolhê-lo ou rejeitá-lo, amá-lo; mas... aos pés de Platão.
Desse modo - como tentaremos mostrar neste artigo no que diz respeito à realidade e ao realismo -, Platão não é um estranho no ninho dos contemporâneos que listamos acima; o que nos parece, isso sim, é que cada um deles escreve sua nota de pé-de-página a Platão.
Para compreendermos os temas platônicos fundamentais e o porquê de sua perene atualidade, precisamos - segundo aliás o próprio Platão - remetê-los à pauta super-fundamental da caracterização e confronto de dois tipos: o acadêmico e o sofista, isto é, Platão em oposição a, por exemplo, Protágoras.
De fato, esse confronto é na História da Filosofia qualquer coisa de muito mais sério que uma episódica divergência entre os freqüentadores da Academia e, do outro lado, os sofistas: os Protágoras, Górgias, Hípias e Pródicos.
Nesse sentido, Pieper faz ver no artigo intitulado "Abuso de Poder, Abuso de Linguagem" - que "Platão" e o "Sofista" são tipos atemporais, de interesse não meramente histórico (e muito menos arqueológico!), mas vivos e atuais. Também este é o parecer do Nietzsche: "Nossa época, a época dos sofistas"(4). Ou o de Hegel: "A sofística não está tão longe de nós como se pensa"(5).
Parece que o próprio Platão tinha consciência de que ao denunciar os perigos da sofística estava tratando de assunto atemporal, permanente na vida do espírito(6).
Platão passou a vida toda procurando formular o que havia de profundamente errado com os sofistas. Ao longo de toda a sua obra, e mesmo na multiforme caracterização do sofista que é o diálogo do mesmo nome, chega a uma última palavra sobre o assunto: o sofista é o "fabricante de uma realidade fictícia"(7).
Nessa fabricação de realidade fictícia há um importante aspecto - ao qual, neste artigo, só aludirei: trata-se do discurso que matreiramente distorce o significado de termos fundamentais (por exemplo "amor", liberdade", etc.).
É a corrupção da palavra, que ao desvincular-se da realidade (da verdadeira realidade) pelo mero culto à forma ou como veículo de poder, faz como que "em lugar da realidade, que sumiu de vista, faça entrar uma realidade aparente; que diante de meu olhar se interponha uma pseudo-realidade que, enganosamente, parece ser o real até o ponto em que se acaba por não se saber discernir o real. (...) Eis o que há de propriamente mau na sofística: o âmbito existencial do homem ocupado por uma pseudo-realidade cujo caráter fictício ameaça tornar-se invisível" (8)
Corrupção da palavra, falseamento da realidade, fabricação de realidade fictícia: e, ao encontrar essas fórmulas, Platão triunfalmente resolve o problema da caracterização do sofista, problema que o acompanhou ao longo de toda a sua vida.
Muito bem, o sofista é criador de realidade fictícia; mas acaso não é essa a mesma eterna crítica que o sofista lança contra Sócrates e Platão?
Aliás, o sofista, em todas as suas variedades, tem muito mais porte de realista do que o sonhador Sócrates. Não é à toa que aqueles personagens de Aristófanes aplicam a Sócrates - com adaptações superficiais e dando sentido pejorativo - a célebre passagem em que o filósofo Tales (9), alheio à "realidade", absorto na contemplação do céu, cai no poço. Eis a versão aplicada a Sócrates:

"- Então como Sócrates estava de boca aberta, de noite, olhando para cima, uma lagartixa defecou lá do alto do teto...
- Gozado que uma lagartixa tivesse defecado em Sócrates!..."(10).
Todo o problema está em saber qual é a verdadeira realidade e, assim, poder saber também quem cria realidades fictícias.
Platão, com a consciência de estar falando para todos os séculos, vai direto ao ponto central:
"O Hóspede - Dão-nos a impressão de que todos estão travados numa luta de gigantes, tal é a sua discordância a respeito do ser.
Teeteto - Como assim?
O Hóspede - Uns puxam para a terra tudo o que é do céu e do domínio do invisível, tomando nas mãos, literalmente, rochas e carvalhos, pois é em tais coisas que se aferram com afirmarem obstinadamente que só existe o que oferece resistência e que, de algum modo, se pode pegar. Definem o corpo e o ser como idênticos..." (11).

É a negação do espiritual, do sentido humano, que, sendo descartado por aqueles que só vêem "rochas e carvalhos", cria um mundo irreal. Irreal por estar destituído do sentido que realmente existe. A expressão "rochas e carvalhos" é empregada aqui por Platão no significado de "estrita matéria", em oposição ao sentido humano transcendente (como quando Sócrates diz na Apologia: "Eu não provenho de rochas e carvalhos mas de homens" (12); ou na República: "... ou acreditais que as constituições nascem dos carvalhos e das pedras e não dos costumes dos cidadãos?" (13)).
Platão, agudo admirador, atina até com a dificuldade de dialogar com os filósofos das rochas e carvalhos:

“O Hóspede – Definem o corpo e o ser como idênticos e, se alguém do outro bando assevera que há seres sem corpo, não lhe concedem a mínima atenção e interrompem nesse ponto o diálogo.
Teeteto – É uma gente inconversável, realmente; já vi muitos tipos assim.
O Hóspede – Entre esses dois campos, Teeteto, a luta é encarniçada e ininterrupta” (14).

Mais uma vez Platão acertou: a luta até hoje não se interrompeu e o diálogo continua difícil. Qual é a verdadeira realidade: a das "rochas e carvalhos"? Ou pode-se falar da realidade de um sentido humano, real, realíssimo, ainda que não ofereça resistência nem se deixe tomar nas mãos"?
Desde Platão passaram-se vinte e cinco séculos e, hoje, Ionesco nos diz:

"Sobre a questão da realidade subsiste uma enorme confusão, visto que se tende a crer que a literatura e a arte são realistas na medida em que são reais - mas a verdade, porém, é que a realidade em si mesma não é realista" (15).

É uma afirmação que só se entende à luz da problemática do diálogo Sofista de Platão, onde se desenham as bases de dois posicionamentos filosóficos (e estéticos) antagônicos que nos séculos posteriores assumem formas e matizes diferentes, mas sempre dentro da perspectiva fundamental de Platão. Se, hoje, o realismo sofista se traduz por exemplo em pornografia, no século passado se traduzia no "realismo" de Eça de Queiroz.
Na perspectiva do realismo de posicionamento platônico está a crítica que Machado de Assis fez a Eça de Queiroz (cada um pretendendo ser realista e fugir da realidade fictícia) (16).
Escrevia Machado, criticando O Primo Basílio:

"Passemos agora ao mais grave, ao gravíssimo (refere-se ao "realismo" do sr. Eça de Queiroz: ‘o realismo da sensação physica’). De uma carvoeira à porta da loja diz elle (Eça) que apresentava a sua gravidez bestial. Bestial por que? Porque (o senhor Eça de Queiroz) não vê alli o signal da maternidade humana; vê um phenomeno animal, nada mais" (17).

Não se pense que Machado era nessa época um desvairado romântico. Não! É neste mesmo texto que Machado diz: "Voltemos os olhos à realidade, mas excluamos o realismo (do sr. Eça de Queiroz)" (18). E diz mais : “Não peço, de certo, os estafados retratos do romantismo decadente; pelo contrário, alguma cousa há no realismo (do sr. Eça de Queiroz) que pode ser colhido em proveito da imaginação e da arte. Mas sair de um excesso para cair em outro não e regenerar nada, é trocar o agente da corrupção” .
(19) Há pois, como estamos apontando desde o começo, dois candidatos a realista: um, de "rochas e carvalhos" para quem por exemplo, a gravidez é mero fato ‘physiológico’, outro, que vê na gravidez todo o sentido da maternidade humana.
Que este segundo realismo nada tenha de alienações românticas, podemos, comprovar lembrando os versos de Caetano (20) na canção “ Força Estranha”.

“ Eu vi a mulher preparando outra pessoa
o tempo parou para eu olhar para aquela barriga...”

Não há aí nada de exageros românticos: a barriga é barriga mesmo, com todas as letras; mas isso não impede o poeta de se maravilhar com o profundo sentido humano da maternidade e com o surgimento de uma nova vida.
Não percamos de vista, por alguns parágrafos, o exemplo da maternidade; pode ser muito útil para esclarecer e aprofundar no nosso tema.
Desta vez é o professor de literatura e filosofia de Oxford, C. S. Lewis, quem ilumina nossa questão do equívoco do realismo no seu delicioso Screwtape Letters (21). Screwtape é um velho diabo que se corresponde com o jovem e inexperiente sobrinho, um diabo-aprendiz que lhe pede conselhos para afastar do Inimigo (Deus) o paciente humano de que está encarregado. Para isso vai aprendendo, com o tio, a filosofia do Inferno e seus princípios de ação.
Lewis alia a sua profunda cultura clássica ao melhor humor inglês (apesar de as cartas terem sido publicadas em plena 2ª Guerra e em momentos duríssimos para a Inglaterra). E esclarece para o leitor descrente do diabo que sua intenção "não é de especular sobre a vida diabólica, mas de iluminar, de um ângulo novo, a vida dos homens” (22).
Lewis, que tem clara consciência do que dizíamos no começo deste artigo, recolhe numa das cartas de Screwtape o seguinte: "Pois é, sobrinho, nós fizemos os sofistas; o Inimigo (Deus) criou um Sócrates para responder aos nossos sofistas" (23).
Venço a tentação de nem sequer aludir às diversas passagens em que o diabo velho, Screwtape, trata do tema da "realidade" à luz da filosofia do Inferno; mas não será demais transcrever a melhor passagem a respeito, um trecho da 30ª carta:

"Caro sobrinho... Provavelmente as cenas que teu paciente humano está presenciando (Lewis refere-se aos bombardeios de 1941) não te fornecerão material para um ataque intelectual contra a fé dele, aliás teus fracassos anteriores já fazem descartar esse tipo de tentação. Mas há um ataque às emoções que pode ainda ser feito. É o seguinte: faze-o sentir, quando pela primeira vez ele vir restos humanos prensados numa parede, que é assim ‘como é realmente o mundo’, e que toda a sua religião não é mais que fantasia.
Já reparaste como conseguimos tê-los completamente obnubilados quanto ao significado da palavra ‘real’? Acerca de uma grande experiência espiritual eles dizem entre si: ‘Não, tudo o que realmente aconteceu é que você ouviu um pouco de música envolvido por um ambiente iluminado’, neste caso, ‘real’ significa fatos brutos, separados dos outros elementos da experiência que efetivamente tiveram. Por outro lado, também dirão: ‘É, é muito fácil falar de pular de um alto trampolim quando você está aí nessa poltrona; quero ver quando você estiver lá em cima e vir o que isso é realmente’; aqui ‘real’ utiliza-se no sentido oposto, para referir-se não aos fatos físicos (que todos conhecem) mas ao efeito emocional que esses fatos têm para uma consciência humana. Qualquer das duas acepções da palavra ‘real’ poderia ser defendida; mas nossa diabólica missão consiste em manter as duas funcionando ao mesmo tempo, de tal modo que o valor emocional da palavra ‘real’ possa colocar-se ora de um lado, ora de outro, conforme convenha aos nossos interesses.
A regra geral que nossa filosofia já estabeleceu bastante bem entre os humanos é a seguinte: em todas as experiências que possam fazê-los melhores ou mais felizes só os fatos físicos é que são ‘reais’, enquanto os elementos espirituais são ‘subjetividades’; já naquelas experiências que possam deprimi-los ou corrompê-los, aí os elementos espirituais são a realidade fundamental, e ignorá-los é pretender fugir à realidade. Assim por exemplo, a odiosidade de uma pessoa odiada é ‘real’: é no ódio que se vê como realmente as pessoas são; já o encanto de uma pessoa amada é mera neblina subjetiva ocultando um fundo ‘real’ de apetite sexual ou interesses econômicos. No parto, o sangue e a dor é que são reais, e a alegria um mero ponto de vista subjetivo.
Teu carinhoso tio, Screwtape” (24).

Seja-me permitido insistir que reconhecer a realidade do espiritual não tem nada a ver com os "estafados retratos do romantismo": quem leu Morte e Vida Severina e Grande Sertão: Veredas sabe que não há ninguém mais distante de baboseiras adocicadas do que João Cabral e Guimarães Rosa (lembre-se por exemplo a cena de canibalismo do Grande Sertão). Pois esses autores fortes, precisamente por serem realistas, não deixam de registrar o real e vigoroso encanto - para explorar ainda uma vez o tema do parto - diante da nova vida que nasce. João Cabral:

"- Severino, retirante, deixe agora que lhe diga: eu não sei bem a resposta da pergunta que fazia, se não vale mais saltar fora da ponte e da vida; nem conheço essa resposta, se quer mesmo que lhe diga. É difícil defender, só com palavras, a vida, ainda mais quando ela é esta que vê, severina; mas se responder não pude à pergunta que fazia, ela, a vida, a respondeu com sua presença viva; e não há melhor resposta que o espetáculo da vida: vê-la desfiar seu fio, que também se chama vida, ver a fábrica que ela mesma, teimosamente, se fabrica, vê-la brotar como há pouco em nova vida explodida; mesmo quando é assim pequena a explosão, como a ocorrida; mesmo quando é uma explosão como a de há pouco, franzina; mesmo quando é a explosão de uma vida severina”. (25)


E nesta de Guimarães Rosa, resume-se o que é a nosso ver o verdadeiro realismo, ou, para usar uma expressão de Viktor Frankl, “realismo das alturas”, aberto aos fatos físicos (como a cena descrita da mulher que instintivamente se recusa a dar à luz, para a miséria, um filho), mas também ao espiritual (“Minha Senhora Dona: um menino nasceu - o mundo tornou a começar...!”):

“Da mulher - que me chamaram: ela não estava conseguindo botar seu filho no mundo. E era noite de luar, essa mulher assistindo num pobre rancho. Nem rancho, só um papirí à-tôa. Eu fui. Abri, destapei a porta - que era simples encostada, pois que tinha porta; só não alembro se era um couro de boi ou um tranço de buriti. Entrei no ôlho da casa, lua me esperou lá fora. Mulher tão precisada: pobre que não teria o com que para uma caixa-de-fósforo. E ali era um povoado só de papudos e pernósticos. A mulher me viu, da esteira em que estava se jazendo, no pouco chão, olhos dela alumiaram de pavôres. Eu tirei da algibeira uma cédula de dinheiro, e falei: - Toma, filha de Cristo, senhora dona: compra um agasalho para esse que vai nascer defendido e são, e que deve de se chamar Riobaldo... Digo ao senhor: e foi menino nascendo. Com as lágrimas nos olhos, aquela mulher rebeijou minha mão... Alto eu disse, no me despedir: - ‘Minha Senhora Dona: um menino nasceu - o mundo tornou a começar!...’ - e saí para as luas.” (26).
Para concluir a primeira parte deste artigo ressaltemos a questão: Não será manifestação de verdadeira realidade a invasão de alegria (diante do poder criador de Deus) perante uma nova vida? Tão real quanto “as rochas e carvalhos” do sangue e da dor da mulher cuja hora chegou, ou mesmo até mais real, a ponto de fazê-la esquecer a dor pela alegria de haver dado ao mundo um homem? (Jo 16,21)
Passemos agora a uma segunda parte deste artigo: duas ou três considerações complementares sobre a realidade e o realismo.
A primeira delas é a objeção, a eterna objeção, que o realismo materialista faz àquilo que estamos chamando “realismo das alturas”. Objeção que pode ser assim formulada: “Deixemo-nos de sonhos, não há nada de mal - muito até pelo contrário - em apresentar as coisas e o homem tal como verdadeiramente são, na sua realidade de violência, de sexo bruto, de homossexualismo, etc. Se as realidades são essas, por que escondê-las? Só um alienado ingênuo poderia recusar este argumento tão realista e tão próprio de homens amadurecidos”.
De fato, a objeção deve ser levada à serio. Dizíamos antes que o sofista tem mais porte de realista (e até de intelectual) que Platão. O próprio Platão não o ignora e ilustram isso os dois primeiros livros da República quando o aprendiz de sofista, Trasímaco, faz - bem ao estilo dos realistas materialistas de hoje - seu discurso sobre a justiça dando mil “realistas” razões para concluir que “o justo não é nem mais nem menos que a vantagem do mais forte” (27).
Pois diante disso, Glauco, discípulo de Sócrates, declara não concordar que a vida do injusto seja melhor que a do justo; porém confessa: “Mas o certo é que fico desorientado, quando nos zunem nos ouvidos os discursos de Trasímaco e de tantos outros” (28) e mesmo Sócrates chega a reconhecer que “Forçoso é que vos tenha tocado algum influxo divino, para não ficardes, ó Glauco, convencido da superioridade da injustiça sobre a justiça (depois destes convincentes discursos)” (29).
A mesmíssima sensação, de notar que há algo de errado por trás da aparentemente irrefutável objeção apresentada há pouco, nos invade hoje diante dos nossos “realistas”.
Mas afinal o que há de errado com a objeção: “Se o sexo e a violência são realidades por que escondê-las?”.
Uma primeira resposta nos vem de Machado de Assis: Não, ninguém está falando de esconder; todo o problema é de ênfase e de forma. E Machado, na mesma famosa crítica a O Primo Basílio, depois de registrar a exploração “de um erotismo omnisexual e omnímodo” (30) que reduz “as mulheres à concupiscência" (31), que “não infunde no coração da personagem ao esposo, as esperanças de um sentimento superior, mas somente cálculos de sensualidade e os ímpetos de concubina...” (32), depois de registrar o gosto realista do sr. Eça de Queiroz pelos "catarrhos na bexiga e jactos escuros de saliva" (33) desfecha o diagnóstico certeiro: o problema do realismo do sr. Eça de Queiroz "é a preocupação constante pelo acessório" e o erro de supor "que o traço grosso é o traço exacto" (34). E, responde à objeção dos "realistas": "Se são naturais, para que escondê-las? Ocorre-me que a Voltaire, cuja eterna mofa é a consolação do bom-senso (quando não transcende o humano limite), a Voltaire se atribui uma resposta, da qual citarei apenas metade: "très naturel aussi, mais je porte des culottes" (35).
Eis aí parte da resposta: é tudo muito natural, mas usamos calças. Quem aprofunda ainda mais nos erros da objeção "realista" é Gilberto Freyre, que em duas palavras, atinge a essência última da questão: o que há de errado com o "realismo" sofista?
Gilberto Freyre está falando de novelas, de certas novelas de televisão. Para resumir: "Lutas em extremo brutais. Adultérios. Traições. Incestos. Filhos esbofeteando mãe, etc..."(36)
E a eterna objeção: "Sei que alguém pode reparar: mas isto é reflexo da atual realidade brasileira" (37). Uma objeção que parece incontestável. Talvez, como Glauco, intuamos que é errada mas não sabemos dizer por quê. Tal como Glauco recorremos a Platão para que nos ajude. E ele o faz cabalmente (máxima nas Leis e na República). Mas prefiro registrar aqui a felicíssima síntese do pernambucano (com o pleno endosso do ateniense).
Objetar-se-á com a tal história do reflexo da "realidade brasileira"? Resposta: De uma falsa realidade, de uma realidade fictícia, fabricada. Antes de mais pelo exagero ("certas das atuais novelas brasileiras de televisão o que estão procurando é: exagerar um pretendido 'realismo'") (38). Mas não é aí que está o ponto-chave.O ponto-chave vem agora:
"Está-se tornando sistemático em certas novelas a apresentação das relações de filhos com mães como quase sempre impossíveis de se manterem normalmente afetivas. Como se, POR NATUREZA, tivessem que ser relações só resolvidas através de rompimentos, violências, deslealdades. Filho quase esbofeteando mãe, etc." (39)
"POR NATUREZA", aí se resume com incrível felicidade o erro do realismo sofista. Violência e canalhice sempre existiram; agora outra coisa é afirmar que o normal, o por natureza, deva ser assim; que assim é a realidade ética. Reduzir a realidade ética à do fato bruto é o traço típico da opção sofista em Filosofia Moral.
São muito diferentes os erros e quedas da fraqueza humana do que, por exemplo, a violência assumida como se as coisas tivessem de ser assim POR NATUREZA. Pense-se, por exemplo, no futebol: uma coisa é violência, digamos, espontânea numa partida: tomou lá, deu cá. Agora, outra coisa muito diferente é a violência calculada, estudada, premeditada e ensaiada que, as vezes, se observa.
Bem diverso é o posicionamento do realismo das alturas: o bem decorre do ser - agir bem é agir de acordo com o ser,  a natureza das coisas (40).
Claro que há uma multidão de questões filosóficas e éticas suscitadas pela afirmação acima, questões que dependem de um posicionamento de fundo na linha de Platão ou na de Protágoras.
Só quero registrar uma última acusação mútua entre Platão e os sofistas: se um acusa o outro de criar realidade fictícia, há também a decorrente mútua acusação de infelicidade: "És infeliz porque vives num mundo de realidade fictícia". Tal é o sentido da fala do personagem Apolodoro (que representa o próprio Platão):
"Mas sem dúvida vós também me considerais infeliz e imaginais que nesse ponto estais certos. A diferença é que, do meu lado, eu não imagino apenas: tenho certeza de que sois infelizes" (41).
Há, atualmente, duas formas materialistas principais dessa acusação - a marxista e a freudiana:
"A religião e o ópio do povo. O desaparecimento da religião como felicidade ilusória do povo é uma exigência de sua felicidade real", diz Marx (na Crítica da Filosofia do Direito de Hegel) (42).
"Se se pergunta pelo sentido da vida, é porque se está doente", diz Freud (em carta a Maria Bonaparte) (43).
Passaram-se os anos e, hoje, outro judeu, também grande psicólogo, também vienense, V Frankl, que denomina sua psicologia "psicologia das alturas", relata ao mundo que a descoberta da realidade do sentido da vida é uma das forças fundamentais do ser e do psiquismo do homem, e que boa parte das neuroses (44) - e neurose da brava - advém do "vácuo existencial", de fabricar um mundo irreal sem Deus e sem sentido.
Para chegar a essa conclusão, Viktor Frankl não precisaria de tanta pesquisa, tanto caso clínico, nem dos amargos "insights" no campo de concentração, se tivesse ido a Minas aprender um pouco com o jagunço Riobaldo:
"Hem? Hem? O que mais penso, testo e explico: todo-o-mundo é louco. O senhor, eu, nós as pessoas todas. Por isso é que se carece principalmente de religião: para se desendoidecer, desdoidar. Reza é que sara de loucura" (45).


NOTAS
(1) PLATÃO, Banquete, 112, a-b. Ao longo deste artigo citarei Platão pela edição de suas obras completas feitas pela U. F. Pará, trad. De Carlos Alberto Nunes.
(2) WHITEHEAD, A. N., cit. In G. Enc. Rialp, verbete Platão.
(3) A propósito da atualidade do posicionamento, platônico, cfr. o nosso artigo "O que existe de comum entre estes dois senhores"?. Jornal da Tarde, 15-8-81.
(4) cit. por PIEPER em  La fe ante el reto de la cultura contemporánea, Madrid, 1980. P. 217.
(5) ibidem, p. 217.
(6) É a impressão que se tem dada a insistência com que o tema aparece nos Diálogos, e, com base em algumas entrefalas, como por exemplo, no diálogo Sofista - a última tentativa explícita de Platão de ir ao fundo da caracterização de seus adversários - onde, se diz que essas caracterizações do filósofo e do sofista são válidas, "agora e no futuro" (253e, 254a) ou, pouco antes, "a época, ó Teeteto, não importa" (251c-d).
(7) PLATÃO, Sofista 236 e ss. Vide também PIEPER, op. Cit. (4) p.. 231 e PIEPER "Amor y sexualidad" in Virtudes Fundamentales, Madrid, Rialp, 1976.
(8) PIEPER, J. "Abuso de poder, abuso de lenguaje", in op. cit. (4) p. 231.
(9) PLATÃO, Teeteto 174, a-b.
(10) ARISTÓFANES, As Nuvens, 165 e ss., São Paulo, Ed. Abril Trad. e notas de Gilda Maria Reale Starzynski.
(11) PLATÃO, Sofista, 246.
(12) PLATÃO, Apologia de Sócrates, 34, d
(13) PLATÃO, República, 544,d-e.
(14) PLATÃO, Sofista, 246.
(15) IONESCO, E., in Movimentos Literários de Vanguarda, Rio de Janeiro, Ed. Salvat, 1979, p. 70.
(16) Certamente, Machado de Assis e Eça de Queiroz apresentam fases e transformações nas suas carreiras literárias, que não é o caso aqui de analisarmos: o Machado de Assis a que nos referimos é o de 1878, e o Eça de Queiroz é o Eça do Primo Basílio, Crime do Padre Amaro, etc.
(17) MACHADO DE ASSIS, Crítica a "O Primo Basílio" (originalmente publicada em O Cruzeiro, 30-IV-1878). Cito pela Obras Completas da Ed. Jackson, vol. "Críticas Literária", S.P. 1938 (preservamos a ortografia original), p. 170-171.
(18) ibidem, p. 185.
(19) ibidem, p. 184.
(20) Retomamos o tema no artigo "O Filósofo e o Poeta".
(21) LEWIS, C.S., Screwtape Letters. London, Fontana Books, 1955.
(22) ibidem, prefácio da Ed. de 1961.
(23) ibidem, p. 118.
(24) ibidem, p. 153-155.
(25) MELO NETO, J. C., Morte e vida severina e outros poemas em voz alta, 6.1 ed., Ed. José Olympio, 1974, p. 115-116.
(26) GUIMARÃES ROSA, J. Grande Sertão: Veredas, 5ª. ed., Ed.  José Olympio, 1967, p. 353.
(27) PLATAO, República, 338,c.
(28) ibidem, 358,c.
(29) ibidem, 368,a.
(30) MACHADO DE ASSIS, op. cit. (17), p. 171.
(31) ibidem, p. 172.
(32) ibidem, p. 172.
(33) ibidem, p. 172.
(34) ibidem, p. 172 e p. 173.
(35) ibidem, p. 186.
(36) FREYRE, Gilberto, "Certas Novelas", Folha de São Paulo, 23-4-81.
(37) ibidem.
(38) ibidem.
(39) ibidem, cfr. p. ex. PLATÃO, Leis 682ª, Teet 174b., etc.
(40) De que tratamos nos artigos anteriores.
(41) PLATÃO, Banquete, 173, c-d.
(42) cit. na coletânea de PIETTRE, A., O marxismo, 3ª ed., Rio de Janeiro, Zahar, 1969, p. 245.
(43) apud FRANKL, V., Psicoterapia e sentido da vida, Ed. Quadrante, 1973, p. 27.
(44) ibidem, p. 26 e ss.
(45) GUIMARAES ROSA, op. cit. (26), p. 15.