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Jesus Lúdico – Notas sobre a
Pergunta Fundamental
de Shakespeare:
Who’s There?

 

Jean Lauand
Prof. Titular FEUSP
Univ. do Porto – Instituto Jurídico Interdisciplinar
jeanlaua@usp.br

“Shakespeare era nada em si mesmo; mas era
tudo que os outros eram, ou o que podiam se tornar.”
William Hazlitt [1]

Nota Prévia: Este artigo complementa o que escrevi como prova
de erudição para o concurso de Professor Titular (FEUSP, 2000):
“Deus Ludens - o Lúdico no Pensamento de Tomás de Aquino...”  http://www.hottopos.com/notand7/jeanludus.htm

 

A pergunta fundamental de Shakespeare

O Dr. Waldir Cauvilla, colega que freqüentemente nos brinda com sugestivas indicações, apontou-me o fato de que alguns estudiosos consideram a pergunta fundamental do Hamlet não o famoso “to be or not to be...”, mas uma sentença aparentemente sem a menor importância, que é, no fundo, a mais essencial. Trata-se da primeiríssima fala da peça: é de noite e, ao aproximar-se para a troca de turno de sentinelas, um dos guardas faz a decisiva pergunta: - Who’s there?

De fato, para Edward Yastion, um notável diretor de Hamlet, “Quem está aí?” é que é a questão e a peça inteira busca responder a ela [2] . O próprio “to be or not to be” remete, afinal, a: “Quem sou eu?”. Quem está aí? Quem sou eu? Quem é você? Quem é Fernando Pessoa; quem, Álvaro de Campos, Alberto Caeiro, Ricardo Reis, Bernardo Soares? Quem está aí? Quem é o rei Claudius?

“Quem sou eu? Quem está aí?”. Aí reside o caráter dramático - também no sentido teatral, que pode se estender ao lúdico... - da condição humana, do ser pessoa do homem, tão agudamente apontada por Julián Marías:

Já há bastante tempo eu disse na Antropologia Metafísica que, do meu ponto de vista, não é certo que se possa reduzir tudo a uma pergunta: O que é o homem? E isso dizia precisamente num livro de antropologia. Eu dizia: - Não, para começar, não está correta a pergunta: "O que é o homem?". Essa pergunta tem sido feita pela filosofia já há muito tempo, mas é uma pergunta errada, é uma pergunta que propõe um problema de resposta falsa, porque o homem não é um "quê". Se alguém bate à porta, não se pergunta "que", mas sim "quem" é. Devemos distinguir radicalmente entre "que" e "quem". A pergunta não é portanto "O que é o homem?", nem tampouco "Quem é o homem?" - isto não tem sentido - a pergunta radical é "Quem sou eu?".

(...) Porque "eu" é um pronome, é um pronome pessoal, que indica precisamente a posição existente e única. Quando alguém bate e se pergunta "Quem é", freqüentemente se responde: "eu", se a voz for conhecida. "Eu", não "o eu", que é uma abstração; "eu", rigorosamente pronominal. Portanto, a pergunta não seria "O que é o homem?", a pergunta seria "Quem sou eu?". Mas esta pergunta vai acompanhada de outra, inseparável: "O que vai ser de mim?". São duas perguntas inseparáveis e que de certo modo se contrapõem: quero dizer que na medida em que posso responder plenamente a uma, a outra fica na sombra. Se eu sei quem sou, se eu me vejo a mim mesmo como pessoa, como “quem”, não acabo de saber o que vai ser de mim... Se, por outro lado, quero ter a certeza sobre o que vai ser de mim, evidentemente necessito apoiar-me em algo estável e executo a operação de - de certo modo - coisificação. Essas duas perguntas são inevitáveis, inseparáveis e - de algum modo - conflitantes. Por isso, é que eu acho que a vida humana é dramática. [3]

O lúdico e a possibilidade de abertura para o real. Jesus lúdico.

Buscar a resposta à pergunta “Who’s there?” é tarefa muito árdua; a tendência a não ver a realidade é prodigiosa, como mostram, nos tempos atuais, diversos estudos de Clément Rosset. No estudo “A inobservância do real” o filósofo francês nos diz:

Se há uma faculdade humana que merece atenção e assemelha-se ao prodígio é realmente essa aptidão, particular ao homem, de resistir a toda informação exterior quando esta não concorda com a ordem da expectativa e do desejo, de ignorá-la se for preciso e a seu bel-prazer; admitindo a possibilidade de opor a ela, se a realidade insiste, uma recusa de percepção que interrompe toda controvérsia e encerra o debate, naturalmente às custas do real. Esta faculdade de resistência à informação tem algo de fascinante e de mágico, nos limites do inacreditável e do sobrenatural: é impossível conceber como se utiliza o aparelho perceptivo para não perceber, o olho para não ver, o ouvido para não ouvir. No entanto, essa faculdade, ou melhor, essa antifaculdade, existe; ela é mesmo das mais banais e qualquer um pode fazer sua observação quotidiana. [4]

Em um primeiro nível dessa procura da manifestação da verdade (outro problema é se a verdade vai ser aceita ou não...), Shakespeare propõe um sugestivo recurso de meta-linguagem: o personagem Hamlet vale-se do teatro e para certificar-se do assassinato do pai faz a companhia de atores encenar ante o rei a seqüência do crime do qual ele é o suspeito. E é que o lúdico permite aludir a um fato: aliás, não por acaso, aludir do ponto de vista etimológico significa precisamente ad-ludere (no duplo sentido de brincar e representar um papel).

O próprio Cristo, diversas vezes, vale-se do recurso do teatro e como que brinca de desempenhar um papel, e, por assim dizer, disfarça-se, camufla-se, para possibilitar a seus interlocutores a captação de uma verdade que, de outro modo, seria inacessível para eles.

É uma constante nas aparições de Cristo ressuscitado. Os discípulos de Emaús (Lc 24) eram incapazes de ver que era Cristo quem estava a seu lado (oculi illorum tenebantur) e ouvem “o forasteiro” expor tudo “desde Moisés passando por todos os profetas” e só horas depois O reconhecem na fração do pão. Uma possibilidade de conversão e de sair do erro que lhes teria sido negada se Cristo se auto-apresentasse desde o início: a sutileza e o disfarce operam aqui como recursos pedagógicos, de refinada caridade. A auto-ocultação da identidade de Cristo, que se faz passar por um desconhecido e assume feições irreconhecíveis (ou semi-irreconhecíveis...), é a chance de que eles se abram aos fatos e reflitam sobre as razões da Escritura, apresentadas por Cristo que não se manifesta como tal precisamente para deixar que a realidade fale por si, sem a intromissão avassaladora de Sua autoridade.

No cap. 20 de João, a mesma camuflagem: Maria Madalena não reconhece os anjos e muito menos Jesus lúdico. Ela pensa que está conversando com o encarregado do horto... No capítulo seguinte, as vítimas do “engodo” são os apóstolos que não sabem Quem está lá na praia e lhes diz : “Ei, vocês têm alguma coisa para comer? Joguem a rede à direita...”.

E assim diversas vezes na Bíblia surge o problema da dificuldade do reconhecimento (mesmo em nível superficial do “Who’s there?”): problemas de reconhecimento de anjos; do cego de nascença curado por Jesus (Jo 9); de Esaú por Isaque: “És realmente meu filho Esaú?” (Gn 27, 24); de José do Egito etc. 

O caso de José do Egito, do reconhecimento de José por seus irmãos, apresenta requintes de dissimulação lúdico-teatrais a serviço da verdade e da conversão do erro. Até o nome é mudado, ele não aparece como José, mas como Saphanet Phanec (Gn 41, 45). Quando Jacó, aflito pela fome em Israel, envia seus outros filhos ao Egito, “José reconheceu seus irmãos, mas eles não o reconheceram” (Gn 42, 8). E aí começa o jogo teatral orquestrado por José (que além de estar sob o “pseudônimo” Saphanet Phanec ainda por cima, “cinicamente”, vale-se de um intérprete - Gn 42-43 - como se não entendesse a língua de seus irmãos!). Seus irmãos, iludidos, relatam a seu pai:

Chegando em casa, contaram ao pai tudo o que tinha acontecido. “O governador do Egito foi duro conosco,” disseram eles a Jacó. “Ele ficou dizendo que estávamos lá como espiões! “Nós dissemos: ‘Somos gente honesta. Não somos espiões. Somos doze irmãos por parte de pai. Um não existe mais, e o menor está em casa, na terra de Canaã.’ “Mas aquele homem, que é a maior autoridade do Egito, respondeu: ‘Só vejo um modo de vocês provarem que são honestos. Um de vocês fica detido aqui. Os outros podem ir para casa, levando mantimento para socorrer as famílias de cada um. Depois vocês vão ter de voltar para cá, trazendo o irmão mais novo. Se fizerem isso, ficará provado que estão sendo sinceros. Aí soltarei o seu irmão, e vocês poderão negociar à vontade no Egito.’” (Gn 42, 29-34).

A “farsa” de José prossegue com detalhes como o de “plantar prova de crime” mandando seu mordomo esconder uma taça de prata na bagagem de Benjamim para acusá-los (Gn 44, 2). Etc. Se José tivesse dito, desde o primeiro momento, “Sou vosso irmão a quem queríeis eliminar”, seus irmãos não teriam percorrido o caminho da conversão.

O capítulo 9 de João, o caso do cego de nascença curado por Jesus, é ainda o melhor tratado sobre a dificuldade - ou, para alguns, até mesmo a impossibilidade - do reconhecimento: das pessoas (“Who’s there?”) e da verdade.

A cena começa com Jesus curando o cego. Seguem-se as dificuldades de reconhecimento (“será que este homem que hoje vê é mesmo o ceguinho que conhecíamos?”; o interrogatório dos pais e do ex-cego etc.) e, sobretudo, as dificuldades provenientes da “cegueira” de espírito, que chega até o extremo da negação do fato (“esse homem é um pecador, logo não pode ter operado cura”) e a expulsão do ex-cego. No final, ele re-encontra Jesus e o reconhece como Deus, enquanto os fariseus aferram-se à sua “cegueira”. E o capítulo termina com a terrível sentença de Jesus sobre cegos que vêem e videntes que são cegos. E ainda pior: “Se fôsseis cegos não teríeis pecado, mas como dizeis ‘Nós vemos’, então vosso pecado permanece”.

Josef Pieper escreveu um genial estudo sobre o caso do cego do Evangelho - “A experiência com a cegueira” -, focando precisamente essa incapacidade de reconhecimento. Recolho aqui apenas os inquietantes parágrafos inicial e final:

Meditando sobre os descaminhos do mundo, surge o desejo de que a verdade pudesse, alguma vez, mostrar-se de forma totalmente irrefutável, como algo simplesmente irresistível, pela sua própria força arrebatadora. Mas, quão incertos são tais desejos e quão sinistras podem ser as formas em que, na realidade, dá-se a liberdade e também a fraqueza dos homens e como a verdade de modo algum "se impõe", tudo isto torna-se manifesto na história que narraremos a seguir. [o cap. 9 de João] (...) Ao final, ficará evidente que também um olho que vê pode ser cego. Aliás, esse tipo especial de cegueira é bem o tema de nossa história.

(...)

E quando um dos que por lá estavam, um do partido dos poderosos, disse, irônico e ameaçador, que então, segundo isso [“cegos que vêem e videntes que são cegos”], eles, os poderosos, seriam também cegos, obteve de Jesus a resposta de que precisamente isto é que era o mal: que eles não eram cegos. Aí já não houve mais ninguém que perguntasse o que isso [“cegos que vêem e videntes que são cegos”] significava; perguntavam-se, sim, se tinha afinal algum significado, se havia, afinal, algo a ser compreendido. E assim termina a experiência com a cegueira. Disse eu que termina a experiência com a cegueira? Não, esta seria uma formulação um tanto imprecisa, e até mesmo injusta. O que terminou foi o relato; a experiência..., a experiência continua...

Shakespeare – A coruja era filha do padeiro

Voltemos à pergunta de Shakespeare e à tese de Julián Marías: a única coisa que importa é saber “who’s there?” e, mais precisamente, “quem sou eu?”. E este ser que eu sou não é coisificado, não é estático: o “to be or not to be” refere-se a um ser dinâmico, ao ultimum potentiae do homem, ao máximo do que se pode ser, como tantas vezes diz Tomás de Aquino. Daí que a pergunta “Quem sou eu?” vá acompanhada de outra, inseparável: "O que vai ser de mim?". Ou como se diz na Tabacaria de Fernando Pessoa: “Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?” (Pessoa ou Álvaro de Campos? Who’s there?). Um to be dinâmico e que envolve a abertura para o outro, segundo a célebre sentença de Ortega: "Yo soy yo y mi circunstancia, y si no la salvo a ella no me salvo yo"; e a sugestiva paráfrase de Juan Ramón Jiménez: "‘Dime con quién andas, y te diré quién eres’. Ando solo. Dime quién soy"... [5]

Assim se compreende que o problema da falta de liberdade, da tirania, resida precisamente neste aborto do pro-jeto do ser pessoa. Shakespeare completa genialmente o questionamento do “to be or not...”, quando Ofélia, em sua loucura, dialoga com o ignóbil rei Claudius:

King Claudius: How do you, pretty lady?

Ophelia: Well, God dild you! They say the owl was a baker's daughter. Lord, we know what we are, but know not what we may be. God be at your table  (Hamlet IV. 5).

Trata-se de uma passagem riquíssima e cheia de alusões enigmáticas. Sem liberdade, sabemos o que somos (nas limitações da coisificação, da nossa redução ao “Manual de Instruções” do tirano etc.) mas não sabemos o que podemos ser, não podemos empreender a realização daquele máximo: a coruja era filha do padeiro!(?)

O que significa essa misteriosa coruja, filha do padeiro? Os comentadores remetem a uma antiga lenda segundo a qual Cristo, em suas andanças, pára numa casa, a do padeiro, e lhe pede de comer. Generosamente, preparam-lhe uma massa com fermento, para pôr no forno, mas a mesquinha filha do padeiro, achando que aquilo era um desperdício, subtrai a maior parte e deixa apenas um pedacinho para assar. Ao ver o milagre de que aquele pedacinho comece a crescer enormemente, ela exclama assustada: “Hu, hu, hu!” e, como castigo, é transformada em coruja!

O símbolo da coruja recebe interpretações tradicionais. Segundo S. Tomás, a coruja alegoricamente representa: a astuta “prudência da carne” (e o correspondente embotamento do espírito) e a incapacidade de ver o sol (e o Sol é Cristo) [6]

Já a massa de pão com fermento representaria a tendência à realização do ser em direção àquele máximo (ultimum) do “to be” dinâmico a que Deus chama cada pessoa. Esse processo é impedido pela mesquinharia e pela opressão do tirano, sob a qual só sabemos o que somos, mas não o que podemos ser... Daí que o castigo divino reduz a filha do padeiro a coruja. Gabrielle Dane vê na fala de Ofélia para o rei um escárnio: “God dild you!” (em vez de God yield you) [7] . Talvez no sentido de que, tal como à filha do padeiro, Deus te retribua (o mal que fizeste). Uma aproximação da tradução desse God dild you! de Ofélia poderia ser “Deus lhe prague!”.

Contra a mesquinharia dos tiranos, as “manifestações” de Cristo são no sentido da realização: o vinho de Caná é vinho excelente; a pesca é de 153 peixes grandes; o cego recobra a visão... É nessa grandeza, que aponta para que a realidade realize o plano do Verbo, que se reconhece Cristo: Jesus lúdico que, como Mestre, se esconde para poder de verdade se manifestar. Àqueles que tenham olhos de ver a Cristo que passa...



[1] . Citado por Thomas Armstrong, Sete tipos de inteligência, RJ, Record, 2003, pág. 139.

[2] . “Hamlet, Prince Of Denmark - Who's There” by Thomas Wanning http://www.chronogram.com/backIssues/1998/06june/articles/wanning.html

[3] . Marías, Julián “Kant”, International Studies on Law and Education, No.4, Harvard Law School Association – São Paulo, p.90.

[4] . Rosset, Clément “A inobservância do real” in O Princípio da Crueldade, Rio de Janeiro, Rocco, 2002, pp. 52-3.

[5] . Cit. por Pedro Laín Entralgo El Problema de ser cristiano, Barcelona, Galaxia Gutenberg, 1997, p. 81.

[6] “Nycticorax, quae in nocte acuti est visus, in die autem non videt, significat eos qui in temporalibus sunt astuti, in spiritualibus hebetes (I-II, 102, 6 ad 1). E “Solem etsi non videat oculus nycticoracis etc." (In Metaph. 2, 1, 286).

[7] Reading Ophelia's Madness” - http://www.english.ufl.edu/exemplaria/gdane.htm