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Imagine ou… Remember?
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Religião não é brinquedo, não!
publicado em 14/06/02, data do capítulo final da novela O Clone


Jean Lauand
Prof. Titular FEUSP
jeanlaua@usp.br

 

Imagine there’s no countries... and no religion too. Na imensa perplexidade que se seguiu ao 11 de setembro, “sobrou” para a religião. Entre tantos outros apelos pacifistas, a canção Imagine de John Lennon foi muito lembrada e, na interpretação de Neil Young, foi o grande destaque no mega-show de 21 de setembro: America: A Tribute to Heroes, realizado pelas quatro principais emissoras de TV dos EUA: ABC, CBS, Fox e NBC e transmitido para 156 países.

José Saramago, a propósito do mesmo 11 de setembro, foi mais além: publicou, uma semana depois do atentado, o artigo “O Factor Deus”, criticando duramente a religião: “as religiões, todas elas, sem excepção, nunca serviram para aproximar e congraçar os homens, que, pelo contrário, foram e continuam a ser causa de sofrimentos inenarráveis, de morticínios, de monstruosas violências físicas e espirituais que constituem um dos mais tenebrosos capítulos da miserável história humana”.

Naturalmente, não faltaram, na mesma ocasião, inúmeras vozes afirmando que precisamente a falta da religião e a ausência de Deus é que eram as grandes responsáveis por barbaridades como aquele atentado e houve até um significativo reavivamento religioso nos USA. E chamou-se a atenção para o fato de que execrar a religião por conta da loucura de uns fanáticos seria o mesmo que, por exemplo, pedir a extinção do futebol por conta de exageros de violentos torcedores...

Seja como for, a letra da canção Imagine é sugestiva e provocadora:

 Imagine  
(John Lennon - 1971)

Imagine there's no heaven
It's easy if you try
No hell below us
Above us only sky

Imagine all the people
Living for today...

Imagine there's no countries
It isn't hard to do
Nothing to kill or die for
And no religion too

Imagine all the people
Living life in peace...

You may say I'm a dreamer
But I'm not the only one
I hope someday you'll join us
And the world will be as one

Imagine no possessions
I wonder if you can
No need for greed or hunger
A brotherhood of man

Imagine all the people
Sharing all the world...

You may say I'm a dreamer
But I'm not the only one
I hope someday you'll join us
And the world will live as one

 

Um fato intrigante é que esses versos (“Imagine que não haja religião; nem céu nem inferno e - portanto - o mundo vivendo em paz”) foram cantados por Gianni Morandi, em 27-9-97, no famoso show Jesus Live Superstar, presidido pelo Papa João Paulo II, nos quadros do Congresso Eucarístico de Bologna (o famoso concerto que marcou a “reconciliação” da Igreja com o rock - do qual participou também Bob Dylan).

E João Paulo II, após a execução de Blowin’ in the Wind, comentou seus versos, respondendo à pergunta espontânea de um assistente: “Santidade, qual é o caminho?” Esta foi a resposta do Papa: “Um representante de vocês (Bob Dylan) disse em nome de todos que a resposta às grandes questões da existência está 'no sopro do vento' (blowing in the wind), e é verdade. Mas não no vento que tudo dispersa no turbilhão do nada, mas no vento que é o sopro e a voz do Espírito, voz do Espírito que diz: ‘Vem!” (...) Nos versos da canção ("Blowing in the wind") vocês me interpelavam: 'Quantos caminhos deve um homem percorrer para reconhecer-se como homem' (How many roads etc.)? e eu vos respondo: um . Um só é o caminho: Cristo! Etc.”


Essa contradição (incluir no programa de um show presidido pelo Papa, uma canção anti-religião), convida-nos a refletir sobre a possibilidade de uma leitura alternativa de Imagine, ajudados pelo próprio João Paulo II.

Na verdade, boa parte da utopia sonhada por Lennon, já tinha encontrado sua realização numa experiência histórica, infelizmente pouco difundida e pouco valorizada: a experiência Brasil. Para além de todas nossas mazelas, problemas e injustiças sociais; para além de saudosismos e ufanismos baratos; mas superando também ideologias de denúncia e o “politicamente correto”, é inegável que o Brasil (aquele Brasil de minha infância, o Brasil profundo) soube construir valores de convivência e harmonia absolutamente inigualáveis (valores, hoje, infelizmente, em declínio). Ou na certeira sentença de Tom Jobim: “Os Estados Unidos é ótimo, mas é uma merda; o Brasil é uma merda, mas é ótimo”.

Naquele tempo (e, em certa medida, ainda hoje) a experiência Brasil era a realização fática, evidente, dessa “utopia”: nossa família (rapidamente abrasileirada) era árabe e católica, mas, aqui, não havia países, não havia religiões, não havia raças etc. Não é que houvesse tolerância e não-discriminação: simplesmente nós não sabíamos que nossos vizinhos, Dona Tânia e seu Jacó, eram judeus (embora viessem em nossa casa freqüentemente para conversar e contar os horrores que, como judeus, sofreram na guerra); não sabíamos que a Dona Josefina era espírita; não víamos que Dona Zefa, retinta, dona da banca de jornal, era negra; que Dona Ester era protestante; que seu Leopoldo e Dona Adélia eram alemães... Todos eram muito queridos e fazíamos parte da grande família Brasil. Meu pai e minha mãe, as famílias de meus avós, eram, respectivamente, ortodoxos e maronitas. Na região do Líbano de que procediam, suas igrejas eram, de modo literal, proverbialmente antagônicas (só vim a saber disto muito recentemente, por estudos universitários pessoais). O provérbio, no caso, é: “É mais fácil o doce de mel ser feito com alho do que maronita casar com ortodoxo”. No Brasil, meus pais chegaram a celebrar bodas de ouro, sem nunca se lembrarem de que no país de origem esperava-se entre eles um ódio do tipo Mancha Verde X Gaviões da Fiel.

Outra interessante experiência brasileira (no sentido da “experiência Brasil”) é a nossa Editora Mandruvá - http://www.hottopos.com/ - uma editora de pensamento universitário que promove convênios editoriais da USP com universidades européias e de todo o mundo. Entre nossos colaboradores mais próximos, estão algumas das principais lideranças do pensamento muçulmano, judaico, taoísta, budista, evangélico, espírita, católico...: living as one. Uma convivência deliciosa entre todos, facilitada pelo fato de sermos brasileiros (de nascença ou não...) e, internacionalmente, a brasilidade de nossa editora permite integrar com facilidade, nos mesmos projetos, Madrid e Barcelona...

Ao não considerar o Brasil, John Lennon não imaginou que, na verdade, não se trata de imagine, mas de remember... É tarefa urgente resgatar plenamente esses valores brasileiros (antes que desapareçam completamente e se tornem irreconhecíveis), que são sem dúvida muito mais necessários para a comunidade internacional do que qualquer inovação tecnológica...

É nesse quadro de resgate de nossas origens essenciais que se pode compreender o imenso sucesso do “Bar da Dona Jura” da novela “O Clone”. O verdadeiro segredo do Bar da Jura, mais do que nos pastéis, encontra-se precisamente na “experiência Brasil”: na convivência acolhedora, lúdica, alegre, marota, afetuosa e amorosa; presidida pela irresistível simpatia, despachada e espontânea, de Solange Couto, que reacende a nostalgia daquele Brasil profundo, que todo mundo quer plenamente de volta e o mundo todo, mais do que nunca, precisa importar. Não é mera ficção ver a intransigência de um “tio ‘Abdu” balançar no Bar da D. Jura.

Felizmente, a maioria (a maioria silenciosa...) de nosso povo, ainda realiza a “experiência Brasil” e, aqui mesmo, no Butantan, em dois quarteirões da Av. Vital Brasil, encontra-se a rodo esse Brasil profundo: o Zé do restaurante “Os Cobras”, a Tina e a Zélia, cabeleireiras unissex, o Satoshi do Auto-elétrico Satoshi, o Ricardo da Pizzaria Trivial etc. etc. todos eles com estatura para ganhar com toda a justiça um Prêmio Nobel da Paz! (embora estejam um tanto desgostosos e atemorizados pela recente escalada da violência...).

O papa concorda comigo. João Paulo II, em sua primeira visita ao Brasil, permitiu-se uma escapada de protocolo num discurso no Rio (19-7-80). Após perguntar: “Posso fazer-vos uma confidência?”, o Papa confessou que quando ainda conhecia muito pouco do Brasil e que quando pela primeira vez lhe falaram de nosso país (provavelmente algum compatriota polonês radicado no Brasil, passando as férias na Polônia) “não foi para cantar suas belezas naturais, que são maravilhosas, nem para exaltar as riquezas de seu solo e sub-solo, que são inesgotáveis: nem para ressaltar os feitos deste ou daquele brasileiro notável. Ele me dizia apenas que esta era uma grande nação, malgrado todos os seus eventuais problemas, porque aqui se encontram todas as raças, gente vinda de todos os horizontes do mundo, reunidas num só povo e sem discriminação ou segregação, numa clara fusão de espírito e corações. ‘É uma família’, dizia, encantado, meu interlocutor”.

Tal como em Imagine (I hope someday you'll join us), o Papa concluía com um voto, hoje de uma atualidade premente: “Rezo para que a um mundo freqüentemente dominado pelas contendas de povos e raça, o Brasil possa dar - sem ostentação, antes com a espontaneidade e a naturalidade que caracterizam a sua gente - uma lição essencial, a da verdadeira integração: de como podem viver como uma só família pessoas vindas dos mais diversos recantos do mundo”.

A explicação do milagre planetário da “experiência Brasil” (e de suas atuais disfunções...) encontra-se na enxuta fórmula de Santo Tomás: “Iustitia sine misericordia crudelitas est; misericordia sine iustitia, dissolutio” (Cat. Aur. in Mt, cp5 lc 5): “a justiça sem misericórdia é crueldade; a misericórdia sem justiça é dissolução”. Em sua extrema simplicidade, essa fórmula esconde uma terrível dialética: o mesmo amor e a mesma misericórdia brasileiras, que tornam a convivência deliciosa, quando não temperados pela justiça podem acabar degenerando em impunidade, corrupção, dissolutio (oba-oba), caos... Estamos no caminho certo, é só acertar a dose de justiça! Infelizmente, ante tanta injustiça e violência (também as institucionais...), a tendência é tentar arranjar-se numa atitude de fechamento e amargor...

Seja como for, o Brasil chega a extremos incríveis de compreensão e acolhimento. Não é brinquedo, não! Drauzio Varella conta em Estação Carandiru (S. Paulo, Cia das Letras, 2002, p. 62) que são muitos os criminosos que arranjam namorada enquanto cumprem pena. “As moças respondem a correios amorosos de revistas femininas e são convidadas a conhecer o missivista, invariavelmente um rapaz de bons princípios que deu um mau passo e espera encontrar no amor de uma mulher a força para se regenerar”. O autor, de modo impreciso, atribui esse fato a um “mistério da alma feminina”: será mesmo que as moças yankees ou alemãs responderiam a esse tipo de apelo? Para usar a frase clássica: “É só no Brasil!”.

Não pretendo aqui fazer nenhum tipo de análise sociológica, mas é evidente (só o pior cego não o vê...) que esse transbordamento de amor, paz e compreensão é fruto da religião, da profunda (quase diria, insaciável) religiosidade do povo brasileiro: é o outro lado da moeda da tão propalada “incompetência da América Católica” (e, com muito orgulho, portuguesa), hoje moeda mais forte do que o euro, o dólar ou o yen. Como diz o sábio Riobaldo: “Hem? Hem? O que mais penso, testo e explico: todo-o-mundo é louco. O senhor, eu, nós, as pessoas todas. Por isso é que se carece principalmente de religião: para se desendoidecer, desdoidar. Reza é que sara de loucura. No geral. ... Muita religião, seu moço! Eu cá, não perco ocasião de religião. Aproveito todas. Bebo água de todo rio... Uma só, para mim, é pouca, talvez não me chegue. Rezo cristão, católico, embrenho a certo; e aceito as preces de compadre meu Quelemém, doutrina dele, de Cardéque. Mas, quando posso, vou no Mindubim, onde um Matias é crente, metodista: a gente se acusa de pecador, lê alto a Bíblia, e ora, cantando hinos belos deles. Tudo me quieta e me suspende. Qualquer sombrinha me refresca” (Guimarães Rosa, Grande Sertão: Veredas, Rio de Janeiro, José Olympio, 1967, 5a. ed., p. 15). 

Mas ainda há mais. Lennon não só acertou no ponto de que a paz do Brasil decorre do “no religion” motivado por uma profunda religiosidade, como também em nossa particular concepção de céu e de inferno. O brasileiro, tantas vezes apontado como “povo sem memória” e sem planejamento de futuro (improvisador por natureza) está sempre “living for today”. Não escapam a essa regra as realidades religiosas de Deus, céu e inferno: todas presentes no quotidiano. Ninguém está muito preocupado com o “mármore do inferno” projetado para um longínquo “yaumi ad-dyn”, juízo de Allah. Nada mais oposto à concepção do brasileiro do que um Deus ausente. Deus, também Ele brasileiro, não habita um mundo distante, indiferente aos mortais, como nos terríveis versos de Hölderlin:

Aber Freund ! wir kommen zu spät. Zwar leben die Götter,
Aber über dem Haupt droben in anderer Welt.
(Brot und Wein, VII)

Mas, meu amigo, chegamos tarde demais. Sim, ainda vivem os deuses,
Mas num outro mundo, acima de nossas cabeças

 

Não, o dia a dia do brasileiro é habitado por Deus e seus representantes (muitos deles não oficiais e suspeitos como Santo Expedito ou São Longuinho), que interferem diretamente em nosso quotidiano, fazendo-nos encontrar uma chave perdida ou escalando para nós um juiz coreano, enquanto seleções poderosas como as da França e da Argentina voltam para casa desoladas.

A religiosidade brasileira é prática; franciscana (nominalisticamente franciscana, para retomar a tese de Gilberto Freyre): vê a Cristo no outro, sobretudo no aflito e no pobre: “Tudo quanto fizestes a um destes pequeninos, a Mim o fizestes” (Mt 25, 40). Só no Brasil, mesmo: um padre Roberto Lettieri funda a fraternidade franciscana “Toca de Assis” para cuidar dos mais miseráveis sofredores de rua e em oito anos são centenas e centenas de jovens, com uma alegria de céu estampada no rosto, que assumem essa pobreza radical de dedicarem sua vida à adoração de Deus e a limparem as feridas dos pobres..., o que, naturalmente, é impensável numa concepção calvinista da religião, de céu e de inferno...

De fato, não há céu nem inferno meramente projetados para um futuro; o brasileiro “living for today” saboreia o Céu em seu quotidiano, tal como, aliás, o ensina o maior pensador da Igreja, Santo Tomás: "Assim como o bem criado é uma certa semelhança e participação do Bem Incriado, assim também a consecução de um bem criado é já uma semelhança e participação do Céu, da bem-aventurança final" (De Malo 5, 1, ad 5).

E Dante, ao chegar ao Paraíso, fala também de que o Céu não está fora do nosso dia-a-dia; pelo contrário, buscamo-lo em cada ato, em cada gesto, em cada sorriso:

Quel dolce pome che per tanti rami
cercando va la cura de' mortali
Oggi porrà in pace le tue fami

 

É esse Céu que o Brasil encontra na convivência e na maravilhosa paisagem que Deus nos deu, capaz de arrancar louvores a Deus de um ateu como José Saramago (aliás, genial especialista em cegueira...). Em seu diário, em 17 de fevereiro de 1996, Saramago remonta a impressões de viagem anterior ao Rio e à sensação que teve ao aproximar-se do maravilhoso panorama da baía da Guanabara. Um colega francês que o acompanhava no navio ("isto foi no tempo das viagens marítimas") exprimia o seu "deslumbramento pela voz da humildade e da gratidão", com estas palavras: "Nunca pensei que os meus olhos valessem tanto". Mas Saramago, insatisfeito com aquele comedido deslumbramento, fala-nos do "gesto" que deveria ter-se seguido à frase: "ajoelhar-se no convés e dar graças a quem inventou os olhos e as paisagens" (Cadernos IV, 1997, p. 74, 17.II). Ora, o que é isto senão oração? E isto num homem que garante que nunca rezou na vida: "Nem eu alguma vez rezei na vida" (Cadernos III, 1996, p. 11)
(Cfr. Maia e Castro “No Diário de Saramago: um Humanismo Latente”) 

E ainda tem gente falando que haverá paz sem religião, “ ‘magina’ seu João Lenão”?

Redescubramos a experiência Brasil, a terapia Brasil, que, como se vê, não é brinquedo não!