Boécio e o De Trinitate
Tradução e estudo introdutório:
Luiz Jean Lauand
jeanlaua@usp.br
Introdução
Com esta tradução[1] para o português do tratado De Trinitate de Boécio o leitor entra em contato com um dos mais notáveis textos da história da cultura. O surgimento desse opúsculo, no início do século VI, assinala o nascimento da Escolástica, um método que iria marcar por quase mil anos o pensamento ocidental e, séculos mais tarde, consubstanciar-se em sua mais importante instituição educacional: as Universidades. Mas o interesse do De Trinitate não se restringe a aspectos formais ou metodológicos. Ao valer-se do instrumental aristotélico para a análise do conteúdo da fé, Boécio lançava conceitos e teses fundamentais, que exerceriam extraordinária influência sobre o pensamento teológico posterior. É o caso do maior dos teólogos, S. Tomás de Aquino, que não só se apoiou em teses boecianas para escrever o seu próprio tratado sobre a Trindade da Suma Teológica, mas também compôs um importante comentário ao opúsculo trinitário de Boécio.
Boécio, o educador e o fundador da Escolástica[2]
Anício Mânlio Torquato Severino Boécio (c. 480-525) nasceu em Roma, descendente das nobres famílias dos Anícios e dos Torquatos. Estudou por muitos anos as ciências, a literatura e a filosofia gregas, adquirindo assim um profundo conhe-cimento da cultura clássica, que o capacitaria mais tarde para desempenhar o papel his-tórico de singular importância que lhe estava reservado: em meio da barbárie domi-nante, realizar (na medida do possível...) a salvação e transmissão da cultura antiga para os novos ocupantes do Ocidente, instalados onde florescera o Império Romano.
As invasões bárbaras representavam o risco de um iminente desaparecimento da cultura greco-romana que plasmara o Ocidente. Boécio percebeu perfeitamente a gravidade do momento histórico e, de volta à Itália (reino ostrogodo), valeu-se dos cargos que lhe foram confiados pelo rei Teodorico para exercer sua tarefa pedagógica.
De Boécio, por exemplo, procedem dezenas de contribuições para a língua latina (sobretudo devidas a seu trabalho de tradutor) e diversas formulações filosóficas que serão repetidas mil vezes pelos pósteros como de domínio público. É o caso das definições de pessoa (como substância individual de natureza racional); de felicidade (como o estado de perfeição que consiste em possuir todos os bens); de eternidade (como a posse total, perfeita e simultânea, de uma vida sem fim)[3].
Boécio foi o homem certo no lugar certo. Estava habilitado como nenhum outro para lançar os fundamentos da transmissão do saber clássico aos bárbaros e tal projeto, como se sabe, contém um dos elementos essenciais daquilo que se convencionou chamar "Idade Média".
Só com seu trabalho de tradutor e comentarista - com que estabelece a ponte entre a cultura antiga e a Idade Média -, Boécio já teria garantido um lugar de relevo na História da Educação e justificado o título de fundador da Escolástica, "primeiro escolástico" (Grabmann). Pois, não por acaso, Escolástica se relaciona com escola, escolar, e o ensino da Idade Média muito deve a esse educador.
Mas, há ainda uma outra contribuição inovadora de Boécio que incide sobre outro elemento ainda mais decisivamente essencial na constituição da escolástica como método: um estilo de pensamento teológico.
Os opúsculos teológicos de Boécio - dos quais o principal é precisamente o De Trinitate - são as "primícias do método escolástico" e, por isso, é Boécio considerado "um precursor de S. Tomás" (Stewart e Rand).
Já o título de seu livro ("Como a Trindade é um único Deus e não três deuses") expressa o propósito de esclarecer racionalmente a verdade de fé. Certamente isto não é algo de novo. Agostinho e outros tinham escrito textos com o mesmo intuito. Aliás, Agostinho havia afirmado a necessidade de cooperação entre fé e razão, com a célebre sentença do Sermão 43: intellige ut credas, crede ut intelligas, "entende a fim de que creias", "crê a fim de que entendas". Para Boécio, o lema era: fidem, si poteris, rationemque cojunge, "conjuga a fé e a razão"![4], conselho com que encerra uma carta ao Papa João I.
À primeira vista, nada de novo. A novidade, porém, está em que esse propósito tenha sido assumido explicitamente, programaticamente: aquilo que antes podia ser unicamente uma atitude fática tornava-se agora um princípio.
Nova é também a radicalidade do projeto. No seu De Trinitate, encontram-se várias concepções platônicas e neo-platônicas; as dez categorias, os gêneros, as espécies e diversos outros conceitos de Aristóteles; todo tipo de análises filosóficas e de linguagem. Mas não há nem sequer uma única citação ou referência à Bíblia, e isto num tratado teológico sobre a Santíssima Trindade!
Não que a Escolástica se caracterize por ser racional, não-bíblica, mas é preciso frisar aqui a especial importância dada à razão na tarefa de conjugar razão e fé. Este caráter inovador racional não passou despercebido a Tomás de Aquino. Na Introdução do seu comentário ao De Trinitate de Boécio, Tomás[5], a propósito do tema da Trindade, explica que há dois modos fundamentais de procedimento teológico: per auctoritates e per rationes. E que se Ambrósio e Hilário enveredaram pelo primeiro, e se Agostinho mistura os dois procedimentos, Boécio segue decididamente o segundo: a radicalidade da investigação racional.
O De Trinitate de Boécio
O De Trinitate é dirigido ao seu sogro, Quintus Aurelius Memmius Symmachus, único interlocutor à altura do filósofo naquela região e circunstâncias. Em seus desabafos, ao longo da Introdução, nota-se a angustiosa solidão intelectual e espiritual de Boécio no reino ostrogodo.
Boécio afirma, desde o início, a intenção de levar a investigação até onde o permitam as forças do intelecto humano; dada a especial dificuldade do tema, pede também uma especial benevolência do leitor.
A Introdução termina com uma referência à influência que recebeu de Agostinho. De Agostinho, com sua base neo-platônica (a que Boécio acrescentará contribuições de Aristóteles), procede o estímulo para a investigação filosófica da fé, acentuando mais o intellige ut credas do que o crede ut intelligas. Também de Agostinho é o conceito de Deus como essentia, o que não muda, porque é o que é, aquele que é (Ex 3,14). Tomás[6], porém, aponta a semente agostiniana tematicamente decisiva: a distinção entre o que diz respeito absolutamente a Deus, sem distinguir as Pessoas, e o que relativamente as distingue. A categoria relação como chave do trata-mento da questão da Trindade será o grande mérito do desenvolvimento boeciano, que culminará no século XIII no De Trinitate do próprio Tomás. De fato, a questão 28 da prima da Summa, dedicada às relações divinas[7], é um desenvolvimento das idéias de Boécio. No artigo 3, no sed contra, cita-se a sentença de Boécio, núcleo central de todo o tratamento teológico do dogma: "A substância contém a unidade; a relação multiplica a Trindade" (cap. VI). E em outro sed contra decisivo[8], Tomás vale-se de Boécio para afirmar que "pessoa"[9], em Deus, significa precisamente relação.
O capítulo I discute a sentença da unidade da Trindade e aponta um importante erro da heresia ariana: estabelecer diferenças entre Pai, Filho e Espírito Santo, atribuindo-lhes graus de dignidade diversos. E explica como a alteridade só se pode dar pelo gênero, espécie ou número (diferenças que não ocorrem na Substância divina). Para Boécio, seguindo a tradição grega, a Filosofia comporta ciências de duas espécies: teóricas (ou especulativas) e práticas (ou ativas).
No capítulo II, em que afirma que a substância divina é forma, estabelece uma divisão das ciências teóricas baseada na diversidade das formas de seus objetos. Às três formas correspondem três métodos de conhecimento distintos. Deus, sendo forma sem matéria, Forma por excelência, é Um e Simples e exclui todo número e toda possibilidade de nEle inerirem acidentes.
No capítulo III, discorre sobre o fato de que na substância divina não há número e aplica à questão da Trindade uma interessante discussão de linguagem a partir da distinção entre o "número pelo qual numeramos;" e a "realidade numerada".
O capítulo IV, dedicado a como se predicam de Deus as categorias, começa por enumerar as 10 categorias de Aristóteles, que o leitor encontrará bem explicadas pelo próprio Boécio. Baste aqui sua apresentação pelo clássico exemplo mnemônico: Arbor sex servos ardore refrigerat ustos. Cras ruri stabo sed tunicatus ero. A árvore (substância) refrigera (atividade) seis (quantidade) servos (qualidade) queimados (pas-sividade) pelo ardor (relação) do sol. Amanhã (quando) no campo (onde) estarei de pé (situação), mas estarei tunicado (condição). Em seguida, Boécio mostra como, sendo as criaturas tão diferentes do Ser de Deus, nossa linguagem não é unívoca quando apli-ca as categorias às criaturas e a Deus. Deus, aliás, para Boécio, não é sequer substân-cia, mas ultra-substância. Essa diferença de potencial expressivo da linguagem no caso particular da categoria relação é analisada nos cap. V e VI, nos quais se discutem respectivamente a relação em Deus e a Unidade e Trindade em Deus, estabelecendo a conclusão: "A substância é responsável pela unidade; a relação faz a Trindade".
Como a Trindade é um Deus e não três deuses
Boécio
Pesquisei por muitíssimo tempo[10] a questão da Trindade, até onde podem as forças da pequena chama[11] da mente, que a luz de Deus se dignou conceder-nos.
Tendo chegado a estruturar os argumentos e a redação, submeto-os a ti (Quintus Aurelius Memmius Symmachus, o sogro), pois anseio pelo teu abalizado juízo, tanto quanto pelas próprias descobertas de minha diligente pesquisa.
Bem poderás compreender o que sinto todas as vezes que confio à pena meus pensamentos: seja pela própria dificuldade do tema, seja pela escassez de interlocutores: na verdade és o único capaz de entendê-los e o único com quem os discuto.
Não escrevo por desejo de fama nem pelo vão aplauso do vulgo; se houver algum fruto externo não pode ser outro que esperar o teu juízo[12] sobre o assunto tratado. Pois, excetuando a ti, para onde quer que eu olhe só vejo, por um lado, a pasmaceira ignorante e, por outro, a inveja astuta, de modo que pareceria um insulto aos tratados de teologia submetê-los a esses brutos que, mais do que interessar-se por aprendê-los, calcá-los-iam aos pés.
Assim, serei conciso, e o que extraí do fundo da Filosofia encobrirei sob palavras novas[13] que falam só a ti e a mim, se te dignares a olhar para elas; quanto aos demais, eles não nos interessam: não podem chegar a compreendê-las e não são dignos de lê-las.
Certamente, devemos pesquisar até onde for dado ao olhar da razão humana ascender às alturas do conhecimento da divindade. Pois também nas outras disciplinas há limites além dos quais a razão não pode chegar. A Medicina nem sempre traz a saúde ao doente e a culpa não será do médico, se tiver feito tudo o que estava ao seu alcance. E o mesmo vale para os outros conhecimentos.
No caso do presente estudo, tanto mais benevolente deve ser o julgamento, quanto tão mais difícil é a questão. No entanto, tu examinarás se as sementes lançadas em mim pelos escritos de S. Agostinho produziram seus frutos. Mas comecemos a discussão da questão proposta.
I
Há muitos que usurpam a dignidade da religião cristã, mas a fé que é válida principal e exclusivamente[14] é aquela que, tanto pelo caráter universal de seus preceitos[15] - que dão a medida da autoridade da religião -, quanto pelo seu culto, se espalhou por quase todo o mundo e é chamada católica ou universal. Dessa fé, a sentença da unidade da Trindade é: "O Pai é Deus, o Filho é Deus, o Espírito Santo é Deus"[16]. E, portanto, Pai, Filho e Espírito Santo são um deus e não três deuses.
A razão de sua unidade é a ausência de diferença[17]: e na diferença incorrem aqueles que aumentam ou diminuem a Unidade, como os arianos[18] que, atribuindo graus de dignidade à Trindade, desfazem a unidade e caem na pluralidade.
Pois o princípio da pluralidade é a alteridade[19]: fora da alteridade nem sequer pode ser entendida a pluralidade. Pois a diferença entre três (ou qualquer número de) coisas[20] reside no gênero, na espécie ou no número.
O número de modos de igualdade[21] acompanha o de diversidade. Ora, a igualdade pode se dar de três modos:
1) pelo gênero: como são iguais quanto ao gênero (animal) o homem e o cavalo;
2) pela espécie: como Catão e Cícero são iguais quanto à espécie (homem);
3) pelo número: como Túlio e Cícero são um e o mesmo [22].
Do mesmo modo, a diversidade também se dá pelo gênero ou pela espécie ou pelo número. Mas a diferença pelo número se dá pela variedade de acidentes. Pois três homens não diferem pelo gênero, nem pela espécie, mas pelos seus acidentes. E se nós mentalmente retiramos deles todos os demais acidentes, cada um, no entanto, continua ocupando um lugar diferente e de modo algum podemos supô-los num mesmo e único lugar, pois dois corpos não podem ocupar um mesmo lugar. Ora, o lugar é um dos acidentes. E assim, porque são plurais em seus acidentes, são plurais em número.
II
Trata-se, pois, de adentrar, e examinar com atenção cada ponto para que possamos entender e captar[23]; pois, como muito bem se disse[24]: "ao erudito compete tratar de captar a sua fé, tal como na realidade ela é".
Ora, são três as ciências especulativas: a Física, que está em movimento e não é abstrativa ou separável - anypexairetos - não abstrai o movimento, pois considera as formas dos corpos com matéria, formas que em ato não se podem separar dos corpos. E os corpos, estando em movimento, a forma, unida à matéria, tem movimento: com a terra, tendem para baixo; com o fogo, para cima. A Matemática, está sem movimento e não é abstrativa, pois ela estuda as formas dos corpos sem a matéria e, por isso, sem movimento. Porém essas formas, em união com a matéria, não podem separar-se dela. A Teologia, está sem movimento e é abstrativa, pois a substância de Deus carece de matéria e de movimento.
Das três ciências, a Física trabalha racionalmente (rationabiliter); a Matemática, disciplinarmente (disciplinaliter) e a Teologia, intelectualmente (intellectualiter): : pois não se trata aqui de lidar com imagens, mas antes de olhar para a forma que é, não imagem, mas verdadeira forma: ela mesma é e é por ela que o ente é .
Pois tudo é pela forma. Uma estátua se constitui como tal e se diz efígie de ser vivo, não pelo bronze, que é matéria, mas pela forma nela esculpida. E, do mesmo modo, o próprio bronze é bronze não pela terra que é sua matéria, mas pela forma. E mesmo a própria terra não é terra por ser matéria informe (apoion hylen), mas por causa da secura e do peso que são formas. Não há nada, pois, que seja o que é pela matéria, mas sempre pela forma própria.
Ora, a divina substância é forma sem matéria e, portanto, é Um e é o que é. Qualquer outro ente não é o que é, pois, cada ente tem seu ser das partes de que está constituído, da conjunção de suas partes: mas não tal e tal tomadas separadamente. Por exemplo, o homem na condição presente consiste em corpo e alma, é corpo e alma, não corpo ou alma separadamente e, portanto, não é o que é. Aquele, porém, que não é composto disto e daquilo, mas é simplesmente isto, esse verdadeiramente é o que é, e é belíssímo e poderosíssimo porque em nada se assenta.
Daí que Ele seja verdadeiro Um[25], no qual não há número nem nada que não seja o que é. Nem pode tornar-se substrato de algo, pois é forma e as formas não po- dem ser substratos. Pois o que nas outras formas é substrato para os acidentes, como por exemplo a hominalidade, não recebe os acidentes pelo fato de ela mesma ser, mas sim pela matéria que lhe está sujeita. Assim, quando a matéria sujeita à hominalidade recebe um acidente qualquer, parece que é a própria hominalidade que o assume.
Já a forma que é sem matéria não pode ser substrato, nem nela inerir matéria, senão não seria forma, mas imagem[26]. Pois da forma que está à margem da matéria procedem as que estão na matéria e produzem o corpo. É, pois, um abuso de linguagem que cometemos quando chamamos formas o que são imagens, somente assemelham-se à forma que não está constituída em matéria: nEle nada há de diversidade; nem de pluralidade decorrente da diversidade, nem de multiplicidade decorrente de acidentes; e daí que tampouco haja número.
III
Assim, Deus não difere de Deus a título algum, pois não há diversidade de sujeitos por diferenças acidentais ou substanciais[27]. Onde, pois, não há diferença, não haverá pluralidade alguma, e daí tampouco número, mas somente unidade. E quando dizemos três vezes Deus e dizemos Pai, Filho e Espírito Santo, estas três unidades não fazem pluralidade numérica naquilo que elas mesmas são, se consideramos a própria realidade numerada e não o modo pelo qual numeramos. Neste caso, a repetição de unidades produz pluralidade numérica; quando, porém, se trata da consideração da realidade numerada, a repetição da unidade e o uso plural não produzem de modo algum diferença numérica nas realidades.
Pois há dois tipos de números: um, pelo qual numeramos; outro, que consiste nas coisas numeráveis. Assim, dizemos um para a coisa real; enquanto unidade designa aquilo pelo que dizemos que algo é um. Assim também dois pode referir-se à realidade - como, por exemplo, homens ou pedras -, mas dualidade não: dualidade refere-se somente àquilo por que se constituem dois: homens ou pedras. E assim também para os outros números.
Portanto, no caso do número pelo qual numeramos, a repetição da unidade faz pluralidade; nas coisas, porém, a repetição de unidades não produz número, como por exemplo se da mesma e única coisa eu dissesse: "uma espada, um gládio, uma lâmina". Podemos referir-nos a essa realidade com um único vocábulo, "espada", e a repetição de unidades (palavras) não é uma numeração: se dizemos "espada, gládio, lâmina" é uma reiteração e não uma enumeração de diversos; do mesmo modo, quando repito: "sol, sol, sol" não se trata de três sóis, mas de um só.
Assim, pois, se se predica do Pai, Filho e Espírito Santo três vezes Deus, a predicação tríplice não constitui número plural. Este é, pois, como dissemos, o perigo daqueles que fazem distinção por dignidade entre os três. Nós, os católicos, porém, não admitimos nenhuma diferença no que constitui a própria forma e afirmamos não ser Ele outra coisa que aquele que é. E para esta doutrina, dizer: "Deus Pai, Deus Filho, Deus Espírito Santo, e esta Trindade é um só Deus", é tal como dizer: "uma espada, um gládio, uma lâmina" ou "sol, sol, sol: um sol".
Com o que até aqui dissemos, procuramos deixar claro que nem toda repetição de número produz pluralidade. Quando, porém, dizemos, "Pai e Filho e Espírito Santo" não estamos usando sinônimos diversos como seria o caso de "espada" e "gládio", que são iguais e idênticos.
Pois Pai, Filho e Espírito Santo, são iguais, mas não são o mesmo. Este ponto merece um pouco de atenção. A quem pergunta: "É o Pai o próprio Filho?", respon-demos: "De modo algum". E: "É um o mesmo que o outro?", novamente: "Não!".
Não há, pois, entre eles - sob um determinado aspecto - uma total indiferença em todos os aspectos; e assim pode-se falar em número que, como explicamos acima, procede da diversidade de sujeitos. Discutiremos brevemente esse determinado aspecto, depois de termos examinado como é que se predica de Deus.
IV
Há ao todo dez categorias que podem ser universalmente predicadas de todas as coisas: substância, qualidade, quantidade, relação[28], lugar (onde)[29], tempo (quando), condição[30], situação[31], atividade e passividade.
Elas são determinadas pelo sujeito a que se referem: parte delas - quando se aplicam a outras coisas que não Deus -, referem-se à substância; parte, aos acidentes. Quando, porém, estas categorias são aplicadas à divindade, todas elas se tornam substanciais. Quanto à relação, ela não pode de modo algum ser predicada de Deus[32], pois a substância nEle não é propriamente substância, mas ultra-substância. Também não podem ser predicadas de Deus a qualidade e as demais categorias, das quais vamos dar exemplos para melhor compreensão.
Ao dizermos "Deus", aparentemente estamos designando uma certa substância, mas, na verdade, aquela que é ultra-substância; ao dizermos "justo" (aplicado a Deus), referimo-nos a uma qualidade, mas não à qualidade acidental, e sim à própria substância ou ultra-substância. Pois em Deus não é uma coisa ser, e outra ser justo, mas é-Lhe idêntico ser Deus e ser justo. E quando dizemos "grande ou o maior" parece que nos estamos referindo a uma determinada quantidade; mas, no caso, é à própria substância ou, como dissemos, ultra-substância: para Deus é o mesmo ser e ser grande. E quanto à sua forma, já mostramos acima como Ele é Forma e certamente Um e excluindo toda pluralidade.
Mas essas categorias são tais que dão à coisa a que se aplicam o caráter que expressam: nas coisas criadas, a divisão; em Deus, porém, apresentam-se conjugadas e unidas: quando dizemos "substância" (aplicada por exemplo a homem ou Deus) é como se aquilo de que predicamos fosse ele mesmo substância, como substância "homem" ou "Deus". Na verdade, porém, não é a mesma coisa: o homem não realiza em si a totalidade do ser humano, e por isso não é substância; o que ele é, deve-o a outras coisas que não são homem[33]. Deus, porém, é o próprio Deus; não é outra coisa senão "o que é" e, por isso, é Deus mesmo.
E assim também quando dizemos "justo", que é uma qualidade, dizemos como predicação do sujeito, isto é, se dizemos: "homem justo" ou "Deus justo", afirmamos que o próprio homem ou o próprio Deus são justos. Porém, uma coisa é o homem; e outra, o homem justo; enquanto Deus Ele mesmo é o que é justo.
"Grande" também se diz do homem ou de Deus como se fosse a mesma coisa dizer "homem grande" ou "Deus grande"; na verdade, porém, o homem pode até ser grande; mas Deus é, Ele mesmo, o próprio grande[34].
Quanto às outras categorias, também elas não podem ser predicadas de Deus nem (substancialmente) dos outros entes. Pois o lugar não se pode predicar do homem nem de Deus: do homem se diz que está na praça; de Deus, que está em toda a parte; mas não como se fosse o mesmo a coisa e o que dela se predica. Pois dizer que o homem está na praça é totalmente diferente do que afirmar seu modo de ser, por exemplo, branco ou alto ou qualquer propriedade que, por assim dizer, o circunscreva e determine e pela qual se possa descrevê-lo em si. A predicação lugar, pelo contrário, somente afirma onde se situa a substância em relação a outras coisas.
Com Deus, porém, não é assim, pois "estar em toda parte" não significa que esteja em cada lugar (Ele absolutamente não pode estar num lugar), mas que cada lugar é-Lhe presente para ocupar, embora Ele não possa ser recebido espacialmente e, por isso, não se diz que ele esteja situado em lugar algum porque está em toda parte, mas não alocado.
O mesmo se dá com o "quando", a categoria de tempo: tal homem veio ontem; Deus é sempre. Quando se predica o "vir ontem", aqui, novamente, não se diz algo sobre o homem em si, mas o que lhe sucedeu no tempo. Já o que se diz de Deus, "sempre é", significa um contínuo presente que abarca todo o passado e todo o futuro. Os filósofos dizem que isso pode ser também afirmado do céu e de outros corpos imortais, mas, mesmo assim, não do mesmo modo que de Deus. Pois Ele é sempre porque "sempre" é para Ele presente: e há uma grande diferença entre o nosso "agora", que é do tempo que corre, e a sempiternidade: o "agora" divino permanece, não corre, e consistindo, faz a eternidade. Junta eternidade e sempre, e terás o agora perene e incessante e, portanto, o transcurso perpétuo que é a sempiternidade.
Também são válidas essas considerações para as categorias condição e atividade; pois dizemos do homem: "ele, vestido, corre"[35], e de Deus: "Ele, possuidor de todas as coisas, governa". Aqui também não se diz nada do ser de ambos e essas são predicações exteriores; e todas as categorias até agora tratadas referem-se a outras dimensões que não à substância.
A diferença entre um e outro caso é fácil de perceber: "homem" e "Deus" referem-se à substância pela qual o sujeito é algo: homem ou Deus; "justo" refere-se a uma qualidade pela qual o sujeito é algo, a saber: justo; "grande", à quantidade pela qual ele é algo: grande. Já com as demais categorias isto não se dá: quando se diz que alguém está na praça ou em toda a parte, referimo-nos à categoria lugar, que não faz com que o sujeito seja algo, como pela justiça ele é justo.
O mesmo ocorre quando se diz "ele corre" ou "governa" ou "é agora" ou "é sempre": nestes casos estamos expressando tempo ou atividade - se é que o "sempre" divino pode-se encaixar em tempo -, mas não algo pelo qual é algo, como pela magnitude se é grande. Quanto às categorias situação e passividade nem precisamos ocupar-nos delas porque, claramente, sequer ocorrem em Deus.
Já se tornam evidentes as diferenças da predicação? Algumas categorias apontam para a coisa; outras, para circunstâncias da coisa. Aquelas dizem que a coisa é algo; estas , não incidem sobre o ser da coisa, mas sobre aspectos antes extrínsecos que lhe são aderentes. As categorias que determinam de algum modo o ser de algo chamam-se categorias segundo o ser; quando pressupõem sujeito, são chamadas acidentes segundo o ser. Quando se trata de Deus, que de modo algum é sujeito[36], só se pode falar de predicação segundo a substância.
V
Trata-se agora de examinar a categoria relação, para cuja discussão valer-nos-emos de tudo o que anteriormente foi tratado; a relação, mais do que qualquer outra categoria, constitui-se por referência a outro e parece especialmente não ser predicação relativa à coisa em si.
"Senhor" e "servo", por exemplo, são relativos; examinemos se são predicados da substância. Suprimindo o servo, suprime-se o senhor. Mas se suprimimos a brancura não suprimimos alguma coisa branca, embora, certamente, ao suprimir a brancura particular[37] desta coisa branca suprimamos também conjuntamente a coisa. No caso do senhor, se suprimimos a palavra "servo", destrói-se também a palavra "senhor": não porque o senhor seja substrato do servo como a coisa branca é substrato da brancura, mas sim porque se desfaz a relação (o poder) que sujeitava o servo ao senhor. Já que o poder se desfaz ao suprimir-se o servo, vê-se que o poder não é algo que per se esteja no senhor, mas é algo extrínseco que lhe advém pela relação com os servos.
Não se pode, portanto, afirmar que uma predicação de relação acresça, diminua ou altere de algum modo a coisa em si a que se refere. Pois a categoria relação não diz respeito à coisa em si; ela simplesmente aponta uma condição de relatividade (e não sempre ou necessariamente para outra substância mas às vezes para uma mesma)[38].
Assim, suponhamos um homem em pé. Se eu me dirijo a ele pela direita e me coloco a seu lado, ele estará à esquerda em relação a mim não porque ele mesmo seja esquerda, mas porque eu me coloquei à direita. Agora, se eu me aproximo pela esquerda ele se torna direita em relação a mim: e, de novo, não porque ele seja em si direita (como ele é branco ou alto), mas por causa do meu posicionamento. Fica tudo na dependência de mim e nada tem que ver com o seu ser em si.
Essas categorias que não afetam a coisa em si não podem mudar, alterar ou afetar de nenhum modo sua essência. Daí que se Pai e Filho são termos de relação e, como dissemos, não têm outra diferença que a de relação, e se a relação não é predi-cada daquele de quem se predica como se fosse o próprio sujeito e qualidade sua, en-tão ela não produzirá nenhuma alteridade de substância em seu sujeito mas - numa frase dificilmente compreensível e que requer explicação - uma alteridade de pessoas.
Pois é uma regra básica a de que as distinções em realidades incorpóreas são estabelecidas por diferenças e não por separação espacial. Não se pode dizer que Deus se tornou Pai pelo acréscimo de algo; pois Ele nunca começou a ser Pai, já que a produção do Filho pertence à sua própria substância; embora o predicado Pai, enquanto tal seja relativo. E se nos lembramos de todas as proposições feitas sobre Deus na discussão prévia, devemos admitir que Deus Filho procede de Deus Pai e Deus Espírito Santo de ambos e que eles não podem ser espacialmente diferentes por serem incorpóreos. Mas já que o Pai é Deus, o Filho é Deus e o Espírito Santo é Deus, e já que em Deus não há pontos de diferença que o distingam de Deus, Ele não difere dEles. Mas onde não há diferença, não há pluralidade; e onde não há pluralidade, há unidade. E, novamente, nada senão Deus pode ser gerado por Deus e, na realidade numerada, a repetição da unidade não produz pluralidade. E assim a unidade dos três está convenientemente estabelecida.
VI
Mas, como toda relação sempre se refere a outro, pois a predicação que se refere ao próprio sujeito é sem relação, a numerosidade da Trindade é garantida pela categoria relação, enquanto a unidade é preservada pelo fato de que não há diferen-ça de substância ou de operação ou de qualquer predicado substancial. Assim, a subs-tância é responsável pela unidade e a relação faz a Trindade. E assim, somente os termos referentes à relação podem ser aplicados distintamente a cada um. Pois o Pai não é o mesmo que o Filho, nem cada um dos dois é o mesmo que o Espírito Santo. Ainda que Pai, Filho e Espírito Santo sejam o mesmo e único Deus, o mesmo em justiça, em bondade, em grandeza e em tudo que pode ser predicado segundo o ser.
Não se deve esquecer que a predicação de relatividade nem sempre envolve diferença (como servo para o senhor). Porque o igual é igual ao igual, o semelhante é semelhante ao semelhante, e o mesmo é o mesmo que o mesmo; e a relação do Pai para o Filho, e de ambos para o Espírito Santo, é relação de igual para igual[39].
Uma tal relação não será encontrada nas coisas criadas, mas isto é por causa do modo de diferenciação que afeta as transitórias criaturas. Ao falar de Deus, porém, não devemos deixar-nos guiar pela imaginação; mas pelo puro intelecto elevar-nos e acometer o entendimento de tudo o que importa conhecer.
Mas já basta acerca da questão proposta. Agora a acuidade da discussão aguarda o critério do teu julgamento: o pronunciamento de tua autoridade sobre se discorri corretamente ou não. Se pela graça de Deus apresentei argumentos para este ponto que se sustenta por si no firmíssimo fundamento da fé, volto-me gozosamente em louvor, pela obra feita, para Aquele de quem procede o efeito. Se, porém, a natureza humana não logrou transcender seus limites naturais, valha pela intenção o que tiver falhado pela fraqueza.
[1]. A partir do original latino apresentado por Stewart e Rand em Boethius - The Theological Tractates, London-Cambridge, Loeb, 1953.
[2]. Em Educação, Teatro e Matemática medievais, 2ª ed., S. Paulo, Perspectiva, 1990, comento mais amplamente o trabalho pedagógico de Boécio, sobretudo no que se refere à Geometria. Este tópico recolhe e resume algumas considerações de J. Pieper em Scholastik, cap. II, München, DTV, 1978.
[3]. Rationalis naturae individua substantia; statum bonorum omnium congregatione perfectum; interminabilis vitae tota simul et perfecta possessio.
[4]. O si, no caso, mais do que condicional ou dubitativo indica algo que muito provavelmente irá ocorrer. Como se disséssemos: "se chover em janeiro (o que é praticamente certo), o trânsito ficará congestionado".
[5]. Certamente, também Tomás é um escolástico nesse sentido profundamente racional, mas no Prólogo ao Comentário ao De Trinitate de Boécio cita vinte vezes a Bíblia e nenhuma vez Aristóteles.
[6]. In Boethium De Trinitate, Proemii textus et explanatio.
[7]. E a relação é, vale insistir, o conceito chave de acesso à Trindade.
[8]. I, 29, 4.
[9]. É oportuno lembrar que também é de Boécio a própria definição de pessoa utilizada por Tomás: rationalis naturae individua substantia.
[10]. Tomás comenta que, neste parágrafo e nos seguintes, Boécio apresenta seu trabalho segundo as quatro causas aristotélicas: material (o próprio assunto: a Trindade), eficiente (as luzes de Deus e da inteligência humana), formal ("Tendo chegado a estruturar...") e final ("Não escrevo por desejo de fama...").
[11]. Igniculus, pequena chama. Tomás faz ver (In Boethium De Trinitate, Proemii textus et explanatio) que a luz por excelência é a do conhecimento de Deus; os anjos, um termo médio; quanto ao homem, só dispõe de uma "pequena chama".
[12]. O juízo do sábio. Conforme o comentário de Tomás, o principal é o fruto interior: o conhecimento da verdade divina. O juízo do sábio (e não o rumor do vulgo) é o único fructus exterior aceitável.
[13]. Como diz Tomás, a brevidade, a profundidade e a novidade das palavras são três recursos que se unem à dificuldade da matéria para subtrair a sublimidade do tema à profanação do vulgo (cfr. Mt. 7,6).
[14]. A rigor, comenta S. Tomás (In Boethium De Trinitate, Lectio I), os hereges não são cristãos, embora assim sejam considerados pela opinião dos homens ao vê-los confessar o nome de Cristo. Daí a distinção entre "principal e exclusivamente".
[15]. Que, comenta Tomás (In Boethium De Trinitate, Lectio I), se dirigem a todos os homens: ao contrário da Lei de Moisés (que foi dada a um único povo) e das diversas seitas heréticas da época, que se dirigiam só a um determinado tipo de homem (umas, só aos solteiros; outras, excluíam os pecadores, etc.).
[16]. Pater deus, Filius deus, Spiritus Sanctus deus. Dada a inexistência de artigo em latim, uma tradução mais literal seria: "O Pai é o Deus, o Filho é o Deus, o Espírito Santo é o Deus".
[17]. Boécio emprega em sentido técnico as palavras: differentia, numerus e species.
[18]. Para os hereges arianos, comenta S. Tomás (In Boethium De Trinitate, Lectio I), a dignidade do Filho é menor que a do Pai e a do Espírito Santo menor que a de ambos.
[19]. Tomás (In Boethium De Trinitate, Lectio I) propõe aqui, a propósito da precisão de linguagem de Boécio, uma interessante discussão sobre a diferença entre alteridade (alteritas) e aliedade (alietas). Tanto alter como alius significam: outro. Alter, porém comporta as diferenças não só de substância (como é o caso de alius) mas também as acidentais.
[20]. Boécio, comenta S. Tomás (In Boethium De Trinitate, IV,I,c), refere-se aqui à pluralitate compositorum, pois gênero, espécie e acidentes só se dão nos compostos: as criaturas; Deus, porém, é simplicíssimo.
[21]. Igualdade traduz idem. Aqui também cabe uma observação sobre a precisão boeciana: idem e ipse indicam igualdade, mas enquanto idem pode indicar igualdade em relação a este ou aquele aspecto, ipse indica identificação, o mesmo e único sujeito ele próprio.
[22]. Cícero é, na época, conhecido e citado pelo seu nome Túlio.
[23]. Intelligi atque capi. Tomás (In Boethium De Trinitate, Lectio II) interpreta esta passagem dizendo que a discussão do tema deve adequar-se tanto à realidade envolvida (e a essa dimensão diz respeito o intelligere) quanto a nós (capere), que não podemos abarcar a grandeza de Deus do mesmo modo como compreendemos uma realidade sensível ou uma demonstração matemática. E lembra que não é a mesma a evidência que temos nas diversas disciplinas.
[24]. Stewart e Rand anotam: Cícero (Tusc. V. 7. 19).
[25]. "Um", para os antigos, mais do que um número expressa o próprio ser.
[26]. Imagem significa aqui forma unida à matéria.
[27]. Tomás, comentando (I, 30, 1) esta passagem que, aparentemente, faz uma objeção à pluralidade de pessoas em Deus, responde com o próprio Boécio (veja-se o cap. VI ou o último parágrafo do cap. III), esclarecendo que a suma unidade e simplicidade de Deus exclui, em sentido absoluto, toda pluralidade; mas admite-se a pluralidade do ponto de vista da relação, pois, sendo a relação "para outro", não implica composição.
[28]. Ad aliquid. A relação não é um algo (aliquid), mas um "a algo" (ad aliquid).
[29]. Ubi.
[30]. Habitus.
[31]. Situm esse. O acidente situs indica não a presença num lugar (ubi), mas a estruturação espacial interna da própria coisa.
[32]. Tomás, comentando (I, 28, ad 1) esta passagem à primeira vista contraditória, diz que o que não é possível é predicar de Deus a relação a título do caráter próprio dessa categoria: que não se refere ao sujeito no qual inere, mas "a outro" [pois, como o próprio Boécio explica neste capítulo, em Deus (ultra-substância), confunde-se cada predicado com sua própria substância]. Mas isto não significa que não haja em Deus relações, e sim que, precisamente no caso desta categoria das relações, elas não se dão em Deus inerindo nEle, mas por uma certa referência a outro.
[33]. Só Deus, que é o que é, é simples; as criaturas, são compostas. O homem, por exemplo, compõe-se de substância e acidentes; a substância, por sua vez, é composta de matéria e forma; etc.
[34]. No comentário de Gilberto Porretano, "o próprio Deus é a razão de ser do que é grande" (PL 64, 1285).
[35]. É preferível "ele, vestido, corre" a "ele corre vestido" para manter a ordem de apresentação das categorias.
[36]. Isto é, substrato de acidentes.
[37]. Podemos prescindir intelectualmente da cor (acidente que inere na coisa), embora concretamente a coisa se dê com cor. Já a categoria relação envolve dois pólos relativos e nem sequer se pode pensar, por exemplo, em direita sem esquerda ou em senhor sem servo.
[38]. Nec semper ad aliud sed aliquotiens ad idem. Trata-se de uma passagem muito sutil: a tradução inglesa neste ponto ("a condition of relativity: (...) not necessarily to something else, but sometimes to the subject itself", p. 27) contradiz-se na p.29: "no relation can be affirmed of one subject alone (nulla relatio ad se ipsum referri potest", cap. VI, início). A solução nos é dada por Tomás num artigo em que, por acaso, não faz nenhuma referência a Boécio (I, 31, 2,). Tomás começa por expor as incomparáveis dificuldades de linguagem no tema da Trindade: para falar da Trindade de pessoas sem ferir a Unidade deve-se evitar as palavras diversitas e differentia, mas pode-se usar distinctio. Do mesmo modo, como em Deus não há distinção de substância, mas só de pessoas (relações): o Filho é outro (alius) que o Pai (outra Pessoa), mas não é outra coisa (aliud) que o Pai (a mesma substância). Assim se compreende que Boécio empregue, nessa sentença, o neutro aliud e não o masculino alius.
[39]. Comentando esta passagem, que parece conduzir à conclusão de que as relações em Deus são meramente de razão e não reais, Tomás (I, 28, ad 2) afirma a coerência da formulação, desde que se entenda a igualdade tal como Boécio a quis caracterizar: não indicando uma identidade absoluta, mas somente que pelas relações não se altera a identidade da mesma e única substância divina.