Verdade e Verdades, Limitação da Recepção do Ser 

- nota introdutória à tradução da entrevista de J. Marías

 

Ho Yeh Chia
Pesquisadora do Projeto Protem-Mackenzie,
com bolsa DTI-CNPq.
Instituto Plural
hochia@matrix.com.br

 

            Apresentamos a seguir a tradução para o chinês de um trecho da entrevista do filósofo espanhol Julián Marías (a L. Jean Lauand, Madrid, 8-4-98, originalmente publicada sob o título "Perspectivas de la Filosofía, hoy ", na revista Notandum, No. 1 - http://www.hottopos.com/notand1/entrev_marias.htm ).

            A tarefa - árdua e complexa - da tradução para o chinês do conceito de verdade expresso nessa entrevista obriga-nos a este estudo introdutório.

            É freqüente que uma determinada língua apresente um par de palavras para determinado conceito que é expresso em outras por um único vocábulo: o francês, por exemplo, para esperança dispõe de espoir e espérance; felicitas e beatitudo são duas formas do latim para felicidade. Naturalmente, esse fenômeno não se dá necessariamente por mera abundância, mas, em muitos casos, como ajustamento a modos (por vezes sutis) de ver a realidade. Na língua chinesa encontramos - em vez da única palavra das línguas ocidentais: verdade - duas: zhen-shi e zhen-li.

            Como disse, o que era para ser uma mera tarefa de tradução acabou por suscitar uma reflexão sobre a própria idéia da verdade. É evidente que tudo surgiu por uma "dificuldade de tradução", mais precisamente na última pergunta, na qual se discute o problema da verdade, a propósito do "pensamento pós-moderno". O problema está em que não há como traduzir "verdade" naquele contexto para o chinês: pela falta de uma palavra correspondente.

            A questão é que há diversos contextos de verdade, diversas situações da verdade, cuja diferença não é tão evidente nas línguas ocidentais, precisamente porque nelas há apenas uma palavra para verdade.

            Verdade, em clave chinesa, é expressa com palavras diferentes nas sentenças de contextos diferentes. Assim, há, basicamente, duas palavras para verdade, que tentaremos ilustrar pelos seguintes exemplos:

            A primeira palavra, "zhen-shi" designa a verdade usada nos fatos concretos não-falsos, verdades como partes da realidade: por ex., a) estou trabalhando em meu computador neste momento. Ou, b) estou usando uma blusa azul agora. Ou ainda, c) meu nome é Chia. São casos de fatos verdadeiros da minha realidade no momento presente, mas que não são universais e nem eternas. São meras verdades de convenção - como em c) - ou verdades provisórias que, daqui a pouco, já não serão verdades - como nos exemplos a) e b).

            Tais verdades não abarcam a realidade toda, porque há muitas coisas acontecendo neste mesmo momento no mundo afora. E não falam do meu ser metafísico. Porém são verdades, ninguém pode negar.

            Usamos a mesma "zhen-shi" para coisas verdadeiras, palpáveis, como por exemplo, o fato de eu apanhar o livro que está diante de mim. Se eu o apanho é porque ele é verdadeiro, é palpável, é "zhen-shi-de" - "pertence a realidade concreta" - e não tenho como duvidar da sua existência. Também quando eu sinto fome, e digo que minha fome é "zhen-shi-de", estou afirmando que ela é fome de verdade, e eu bem sei o quanto ela é verdadeira, eu a sinto verdadeiramente. Mas sempre se trata de existências temporárias, que podem deixar de existir no momento seguinte, em que algo pode acabar com sua existência: eu posso queimar o livro e posso alimentar-me e já não há mais fome.

            "Zhen-shi" pode ainda ser usado para coisas abstratas, como sentimentos. Por exemplo, se estou sentindo uma angústia intensa, ou uma enorme alegria, ou qualquer outro sentimento, eles são "zhen-shi-de" se eu os sinto de verdade. Eu é que vou saber se eles são "de verdade" ou não. E eles podem deixar de existir para mim no próximo minuto, assim que eu mudar de humor, porém neste momento, eles são verdadeiros, eles verdadeiramente existem para mim.

            "Zhen-shi" aplica-se também no sentido de duradouro, sério, intenso...: como quando dizemos em português: "para fazer um doutoramento, você vai ter que estudar de verdade". Ou quando afirmo que o meu amor pela música é de verdade, é "zhen-shi-de".

            O "zhen-shi" ainda pode ser usado para verdades históricas passadas, como quando um historiador pesquisa cuidadosamente um fato histórico e comprova que ele de fato ocorreu, foi verdadeiro, que aconteceu de fato, podemos dizer que isto é "zhen-shi-de", é de verdade.

            Agora, outra expressão bem diferente é "Zhen-Li": é a Verdade. No caso, Verdade que acreditamos ser eterna e ser verdadeira independentemente de lugar, de tempo, de circunstância. E esta Verdade não está desvinculada da realidade, muito pelo contrário, ela é precisamente a máxima adequação entre a inteligência e o real, em total identificação com a realidade.

            Por exemplo, sendo eu uma budista, a Verdade em que acredito é aquela dita por Buda. Suas afirmações não são apenas "zhen-shi" - fatos ocorridos historicamente -, mas, sobretudo, "Zhen-Li". Porque a Verdade que Buda buscou e descobriu é Verdade eterna, independente de lugar, de tempo, de circunstância, de estes ou aqueles sujeitos, mas uma verdade objetiva, que é Verdade para todos os seres humanos.

            Assim. podemos dizer que de forma geral, as verdades que as religiões buscam são essa Verdade. Cabe lembrar aqui a famosa passagem da Bíblia onde perguntaram a Jesus o que era a verdade (João, 18: 38). Evidentemente, as versões chinesas da Bíblia, traduzem essa verdade por "Zhen-Li", a Verdade eterna.

            É oportuno que retomemos aqui os exemplos das duas esperanças em francês e das duas felicidades em latim (que se ajustam, mais ou menos, à distância que há entre as duas verdades em chinês). Certamente a esperança e a felicidade são realidades humanas complexas: espero que o Brasil ganhe a próxima Copa, espero que minha situação financeira melhore, sim, mas também o cristão espera a salvação de Deus! E a virtude teologal é espérance e não espoir. A espérance no sentido de virtude teologal, não admite plural, mas só singular (cfr. J. Pieper "Crer, Esperar e Amar", Notandum nº 4, Gabinete de Filosofia Medieval da Universidade do Porto/Mandruvá, 1999 - http://www.hottopos.com.br/notand4/crer.htm).

            Voltemos agora para a questão da tradução: na última pergunta, onde Lauand pede ao entrevistado que comente sobre a filosofia pós-moderna "que recusa a verdade, não esta ou aquela verdade, mas a própria idéia de verdade". Aí nos parecia que o entrevistador se referia à Verdade, "Zhen-Li". Porém, na hora de traduzir a resposta, encontramos verdade e Verdade, tratadas indistintamente. E, de fato, não há nas línguas ocidentais duas palavras distintas para essas duas verdades, e a brilhante resposta de Marías torna isso ainda mais claro.

            Embora haja apenas uma palavra nas línguas ocidentais para a verdade, é evidente que o sentido das duas verdades (verdade e Verdade) também está claros para ocidentais, mas ela é expressa por uma única palavra. Esse fato obriga a mente oriental a continuar questionando. E para responder, conto com a colaboração do Prof. Lauand que me oferece a feliz lembrança da doutrina da participação de Tomás de Aquino. Retomarmos aqui o caso das duas felicidades que havia em latim: felicitas e beatitudo e que Tomás, no século XIII, já as usava indistintamente. Tal como ocorre com as esperanças, felicitas era originalmente a felicidade correspondente a assuntos "humanos" (profissionais, financeiros, de saúde etc.); reservando-se beatitudo para a felicidade divina. O fato de Tomás de Aquino atenuar essa distinção não é casual: "Tomás insiste uma e outra vez: todas as criaturas são boas e têm de bondade o que têm de ser: 'Unaquaeque creatura quantumcumque participat de esse, tantum participat de bonitate' (Ver. 20,4). E mais: é certo que a felicidade definitiva do homem reside na posse de Deus pela contemplação, pelo olhar de amor; mas, para o Aquinate, essa felicidade não é algo 'transferido' para depois da morte, e sim, algo que irrompe, que já se inicia nesta vida, pela fruição do bem de Deus nos bens do mundo, até mesmo em um copo de água fresca num dia de calor: 'Assim como o bem criado é uma certa semelhança e participação do Bem Incriado, assim também a consecução de um bem criado é uma certa semelhança e participação da bem-aventurança final" (De malo 5,1, ad 5)" (Lauand, "Transtorno Bipolar: a Normal 'Patologia' de Tomás de Aquino" - http://www.hottopos.com.br/mirand9/bipolar.htm#_ftnref15).

            Isto é, no fundo não há para Tomás duas felicidades, mas apenas uma (em graus de participação distintos) e a felicitas remetendo à beatitudo, não se torna necessário distingui-las.

            Talvez um fenômeno semelhante tenha concorrido para deixar as línguas ocidentais tranqüilas com uma única palavra verdade. Afinal, para a tradição ocidental, Deus é Logos e o Logos é o criador de tudo...

            Porém, na mesma doutrina encontramos razões para que haja duas palavras para verdade, pois a verdade adimte níveis diferentes. Cito aqui uma outra passagem de Lauand, onde o autor mostra que existem graus diferentes de participação: "Participação envolve, pois, graus e procedência. Tomás parte do fenômeno evidente de que há realidades que admitem graus (como diz a antiga canção de Chico Buarque: 'tem mais samba no encontro que na espera...; tem mais samba o perdão que a despedida'). E pode acontecer que a partir de um (in)certo ponto, a palavra já não suporte o esticamento semântico: se chamamos vinho a um excelente Bordeaux, hesitaremos em aplicar este nome ao equívoco 'Chateau de Carapicuíba' ou 'Baron de Quitaúna'" (Lauand, Verdade e Conhecimento, Martins Fontes, 1999, p. 57 e 58).

            Seja como for, a existência de duas formas da verdade na língua chinesa convoca a atenção para a percepção da diferença entre elas no emprego desses termos.