A (Re)humanização
da Medicina
Dante Marcello Claramonte Gallian
dante.dac@epm.br
Diretor do Centro de História e Ciências da Saúde da UNIFESP
Em sua origem a Medicina Ocidental era uma ciência essencialmente humanística. Segundo Werner Jaeger, “de todas as ciências humanas então conhecidas, incluindo a Matemática e a Física, é a Medicina a mais afim da ciência ética de Sócrates.” (1995, p. 1001). Suas raízes se assentavam no solo da filosofia da natureza e seu sistema teórico partia de uma visão holística que entendia o homem como ser dotado de corpo e espírito. Neste sentido, para médicos como Hipócrates (nascido em Cós, aproximadamente no ano 460 a. C.) “as doenças não são consideradas isoladamente e como um problema especial, mas é no homem vítima da enfermidade, com toda a natureza que o rodeia, com todas as leis universais que a regem e com a qualidade individual dele, que [o médico] se fixa com segura visão.” (idem, p. 1007). As causas das doenças, portanto, deveriam ser buscadas não apenas no órgão ou mesmo no organismo enfermo, mas também e principalmente no que há de essencialmente humano no homem: a alma; esse componente espiritual que distingue o homem dos outros organismos vivos do planeta.
Mais do que um biólogo, mais do que um naturalista, o médico deveria ser, fundamentalmente, um humanista. Um sábio que, na formulação do seu diagnóstico, leva em conta não apenas os dados biológicos, mas também os ambientais, culturais, sociológicos, familiares, psicológicos e espirituais – pois não podemos nos esquecer que, para o homem grego, os deuses não deixam de ser sujeitos ativos na História e na vida das pessoas. O médico clássico portanto é, antes de tudo, um filósofo; um conhecedor das leis da natureza e da alma humana.
Este foi o modelo, a concepção de médico e de medicina que se perpetuou historicamente – obviamente não sem mudanças, rupturas e transformações - no Ocidente até há bem pouco tempo. A Antigüidade Latina herdaria a medicina hipocrática e pouco lhe acrescentaria – assim como ocorreu com boa parte do patrimônio cultural helenístico absorvido pelos romanos. Na Idade Média, apesar das grandes transformações causadas pelas invasões bárbaras, pela difusão do Cristianismo e do Islamismo, todo o pensamento filosófico e científico ocidental e oriental continuou, essencialmente, fundamentado no patrimônio clássico. Avicena, Averróis, Isidoro de Sevilha e tantos outros que escreveram ou praticaram a medicina nesses tempos, tinham a Hipócrates e Galeno como paradigmas incontestáveis. É certo que no Renascimento, no alvorecer da Modernidade, muitos dos postulados clássicos começaram a ser revistos, graças ao espírito investigativo que caracterizou o período. Veremos então Michelangelo revolucionando a anatomia ou, um pouco mais adiante, Vessálio contestando a Hipócrates (Cf. Porter, 1999, p.163). Isso entretanto, não afetou a concepção filosófica da medicina, que, muito mais agora do que na Idade Média, se afirmava como uma ciência essencialmente humanística.
Mesmo a “Nova Ciência” do século XVII, que concluiu a obra de desconstrução do conhecimento médico clássico-escolástico (Idem, p. 201) e o Iluminismo, que estabeleceu as bases do método científico contemporâneo, não deixaram de reafirmar o caráter amplamente humanístico da medicina, vista não apenas como ciência, mas também como arte. Em 1796, Marie-François-Xavier Bichat, um dos mais importantes precursores da nova medicina que iria florescer no século XIX, afirmava no seu manifesto de fundação da Societé Médical d’Emulation que a “arte médica devia pagar um tributo a todas as ciências humanas.”(apud Oliveira, p. 357) E, numa longa lista que inclui praticamente todas as ciências consagradas da época aponta: às belles-lettres, “por lançarem suas flores sobre uma ciência sublime e bela”; à moral, “porque sem ela o homem chega a um conhecimento apenas imperfeito, grosseiro e material”; à história natural e à filosofia, “pois estamos convencidos – conclui Bichat - que uma teoria médica será tanto mais sábia e melhor estabelecida quanto mais intimamente se identificar com a ciência das relações, já que a medicina não é mais que o seu corolário ou aplicação.”(idem, p.358)
Apesar do rápido desenvolvimento do chamado método experimental – ou simplesmente “método científico” – durante o século XIX, a visão humanística da medicina continuou a dominar diversas gerações de médicos em todo o mundo. Durante essa época forjou-se a imagem romântica do médico sábio, conhecedor dos avanços científicos no campo da clínica, da patologia, da farmacologia mas também amante da literatura, da filosofia, da história. Homem culto, o médico romântico aliava seus conhecimentos científicos com os humanísticos e utilizava a ambos na formulação dos seus diagnósticos e prognósticos. Conhecedor da alma humana e da cultura em que se inseria, já que invariavelmente andava muito próximo de seus pacientes – como médico de família que era – este respeitável doutor sabia que curar não era uma operação meramente técnica, mas fundamentalmente humano-científica; uma operação que envolvia elementos de caráter cultural e psicológico. Por outro lado, essa substancial inserção do médico em seu meio sociocultural, fazia com que seu papel não se restringisse ao de simplesmente curar ou não as enfermidades. Ele era também aquele que, frente aos limites e impossibilidades médicas, sabia acompanhar o enfermo e seus familiares, ajudando-os no sofrimento, na preparação para a morte, além de intervir como orientador nos assuntos mais diversos, tais como o despertar da sexualidade nos adolescentes, os problemas de relacionamento do casal e inúmeras outras questões da vida familiar. Não se pode estranhar portanto que o médico acabasse assumindo outras atividades além da medicina: as artes, as ciências, a história, a literatura, a política, dentre outras. Paradoxalmente, o mesmo século XIX, que assistiu a consagração da moderna medicina humanística em sua versão romântica, marcou também o início da sua crise. Principalmente a partir da segunda metade desse século, as importantes descobertas em campos como o da microbiologia, desencadearam uma verdadeira revolução no terreno da patologia, gerando profundas transformações na ciência médica como um todo. O desenvolvimento das análises laboratoriais e outros métodos clínicos incrementaram consideravelmente a formulação dos diagnósticos, assim como o aparecimento de medicamentos como a penicilina, começaram a propiciar aos médicos uma eficácia na cura e um domínio sobre as doenças sem precedentes na história. Assistia-se a um verdadeiro “milagre” e, ao se iniciar o século XX, tudo dava a entender que a medicina estava prestes a atingir a sua idade de ouro, o seu estágio de “ciência exata”.[1] Os enormes progressos alcançados garças às ciências físicas, químicas e biológicas, aliados aos desenvolvimentos tecnológicos, foram, cada vez mais, redirecionando a formação e a atuação do médico, modificando também sua escala de valores. Na medida em que o prestígio das ciências experimentais foi crescendo, o das ciências humanas esvanecia-se no meio médico. História, literatura, filosofia, não deixavam de ser ciências importantes, mas para o médico pouco podiam acrescentar agora que as novas descobertas e métodos efetivamente científicos abriam novas dimensões. Estudar história da medicina, por exemplo, poderia ser interessante e "enriquecedor" do ponto de vista cultural, porém, em termos de utilidade pouca coisa podia acrescentar à formação do médico (Rosen, 1980, p.14), já que a chave do conhecimento não estava mais na experiência do passado ou nas intuições artísticas ou filosóficas, mas sim no estudo atento e sistemático do comportamento físico-químico dos órgãos, tecidos e células.
A medicina deixava de se apoiar nas ciências humanas para se sustentar essencialmente nas ciências exatas e biológicas. É óbvio que desde as sua origens a medicina se fundamentou no estudo dos componentes biológicos do corpo para construir suas teorias, elaborar seus diagnósticos e determinar seus tratamentos, entretanto, nunca em sua história como a partir desse período que se inicia no século XIX e se estende até nossos dias, essa fundamentação chegou a ser tão absoluta e dogmática. As descobertas ainda mais surpreendentes que ocorreram nas últimas décadas, principalmente no âmbito da biologia celular e molecular, que ultimamente têm culminado nas pesquisas do genoma, parecem ter definitivamente confirmado a idéia de que a chave de todo o conhecimento médico está nas ciências experimentais. Anuncia-se para dentro em breve o descobrimento das verdadeiras causas de todas ou pelo menos quase todas as doenças que flagelam a humanidade. E, desta forma, através de manipulações em nível genético, assim como por meio de precisos e eficazes tratamentos preventivos, poder-se-á prever, reverter e principalmente prevenir grande parte das doenças que nos espreitam, como o câncer, as deficiências imunológicas ou os distúrbios cardiovasculares.
Visto desta forma, as ciências humanas – a história, a filosofia, a literatura – não têm mais nada a dizer à medicina, a não ser louvar as suas lutas e conquistas e relatar a sua tremenda evolução. Ainda que, obviamente, um verniz humanístico nunca deixe de ser algo apetecível ao bom médico que zela pela sua imagem de intelectual livre-pensador e, que em última análise, deve se preocupar com as questões de relacionamento médico-paciente. De fato, todo esse processo de supervalorização das ciências biológicas, da super-especialização e dos meios tecnológicos, que acompanharam o desenvolvimento da medicina nestas últimas décadas, trouxe como conseqüência mais visível, a “desumanização” do médico. Um sujeito que foi se transformando cada vez mais em um técnico, um especialista, profundo conhecedor de exames complexos, precisos e especializados, porém, em muitos casos, ignorante dos aspectos humanos presentes no paciente que assiste. E isso, não apenas por força das exigências de uma formação cada vez mais especializada, mas também em função das transformações nas condições sociais de trabalho que tenderam a proletarizar o médico, restringindo barbaramente a disponibilidade deste para o contato com o paciente, assim como para a reflexão e formação mais abrangente. Estes dilemas éticos de relação, entretanto, são apenas uma parte - importantíssima, sem dúvida, porém não exclusiva – da questão. A desumanização da medicina deve ser encarada não apenas do ponto de vista ético, de relação entre médico-paciente, mas também do ponto de vista epistemológico.
Será que, efetivamente, nas circunstâncias atuais, as ciências humanas – a história, a filosofia, a literatura, a psicologia – não têm mais nada a dizer no campo do diagnóstico e do prognóstico médico? É óbvio que quando se pensa em termos de saúde pública e, em certos casos, de epidemiologia, os aportes sociológicos e antropológicos são vistos como essenciais e indiscutíveis. Mas, quando adentramos o território da clínica e das especialidades, no que poderia ajudar os conhecimentos históricos, filosóficos ou literários que determinado médico ou cientista possa ter? Certamente, ninguém discute que tais conhecimentos possam ajudá-lo na questão do relacionamento com o paciente, mas seria só isso? Será que o advento do conhecimento científico – entendido aqui no sentido estrito das atuais ciências exatas e biológicas – terá significado a superação definitiva da “medicina humanística”, uma medicina que, carente de conhecimentos efetivamente científicos, se viu obrigada historicamente a apelar para saberes pré-científicos ou mesmo pseudo-científicos?
Dentro desta perspectiva que se poderia chamar de cientificista-evolucionista - senão propriamente de positivista - a história serviria apenas para trazer à luz do presente as carências, erros e absurdos das teorias e procedimentos médicos do passado – apesar da imensa boa vontade e esforço destes - e admirar a lenta e difícil conquista da verdade científica no decurso do tempo. Tal teoria da ciência, bastante em voga nos nossos dias, já vem sendo combatida e criticada desde a virada do século por filósofos como Gaston Bachelard e, mais recentemente, Thomas Kuhn, mas parece não ter sido o suficientemente absorvida pela maioria dos médicos e cientistas da saúde contemporâneos, que continuam demasiadamente entusiasmados com as novas perspectivas da ciência. Não que tais perspectivas não sejam de fato entusiasmantes e benéficas, o problema, entretanto, é a falta de reflexão crítica sobre elas; sobre as suas conseqüências éticas, sociais, culturais, existenciais. Ainda que quase todo mundo concorde teoricamente, na prática poucos são os que efetivamente estão conscientes de que a ciência e a tecnologia não pode resolver todos os problemas da humanidade. A crença na panacéia científico-tecnológica da atualidade se por um lado impulsiona a evolução do conhecimento, por outro o bloqueia, hipertrofiando certas dimensões da verdade em detrimento de outras.
Certamente, mesmo depois de totalmente desvendado o código genético e desenvolvidas as mais sofisticadas técnicas de diagnóstico e prognóstico clínico, os médicos continuarão enfrentando limitações e dificuldades que exigirão mais do que o conhecimento científico-tecnológico para que possam ser superadas. E isto é uma realidade que já se experimenta, muitas vezes de forma traumática e desalentadora, nos dias de hoje. Sem dúvida há uma grande necessidade de se “reumanizar” a medicina. De se desenvolver e fornecer recursos humanísticos para o processo de formação e de atuação do médico e dos cientistas da saúde em geral. E isto, não apenas por uma questão de ética, como já se afirmou acima, mas por uma exigência fundamentalmente epistemológica; pela própria lógica do desenvolvimento do conhecimento científico. Isso porque só se pode falar em verdadeira evolução do conhecimento biológico-médico quando se procura a integração dos saberes que extrapolam o campo eminentemente físico-experimental. As ciências humanísticas têm muito a contribuir para o desenvolvimento das ciências da saúde e da medicina em particular. Mas tal contribuição só pode se efetivar quando médicos, cientistas da saúde, historiadores, filósofos, antropólogos, psicólogos, literatos, pedagogos e alunos, percebam a necessidade de, sem pré-conceitos e com o espírito aberto, se constituir canais comuns de estudo, discussão e troca de experiências. Nunca como hoje se faz tão necessário a reflexão histórico-filosófica para que se possa reumanizar a medicina e as ciências da saúde em geral.
Bibliografia:
JAEGER, Werner: Paidéia. A formação do homem grego. São Paulo, Martins Fontes, 1995.
PROTER, Roy, The Greatest Benefit to Mankind; a medical history of humanity. New York/London, WW. Norton & Company, 1999.
ROSEN, George, “O lugar da história na educação médica” in Da Polícia Médica à Medicina Social; ensaios sobre a história da assistência médica. Rio de Janeiro, Graal, 1980.
OLIVEIRA, Antônio Bernardes de, A Evolução da Medicina; até o início do século XX. São Paulo, Pioneira/ Secretaria de Estado da Cultura, 1981.
[1] O que se passava na medicina neste momento não deixava de ser uma manifestação do sentimento que dominava uma grande parcela dos cientistas, intelectuais e ideólogos da época: a crença religiosa no poder salvador da ciência.