López Quintás e o Humanismo
em Clave Chinesa

 

Instituto Plural
Ho Yeh Chia
hochia@matrix.com.br

 

            Ao assistir à conferência de López Quintás no encerramento do curso de Filosofia da Educação de 1999 na Universidade de São Paulo, ocorreu-me o projeto de traduzir esse texto para o chinês, pois os temas que foram tratados não poderiam deixar de ser conhecidos também pelos leitores chineses da Internet. Tais reflexões parecem-me especialmente importantes neste momento tão crucial que a humanidade está atravessando, com tantas mudanças não só nos campos político e econômico, mas principalmente no plano espiritual, na linha afirmada pelo Dr. Quintas em sua conferência: compreensão, serviço, solidariedade, união, encontros...

            Neste estudo introdutório apresento algumas reflexões especialmente relacionadas a aspectos interessantes da tarefa de tradução - o que é natural, pois as línguas ocidentais são muito diferentes do chinês (desde o uso dos verbos até a construção de estrutura de sentidos - lógica da linguagem- e de pensamentos).

            Já no título um pequeno problema: a palavra "formação" (provavelmente Quintás estaria pensando em Bildung), que, seja como for, optamos por traduzir por "educação", pois é impossível pensar em chinês a "formação" do ser humano sem pensar na educação e no crescimento, no desenvolvimento. Nesse sentido, não há em chinês uma palavra para traduzir perfeitamente "formação" quando se trata do ser humano, quer a entendamos em dimensão passiva, quer em dimensão ativa (o sujeito agente de sua própria formação), porque o ser humano é aberto: não há um momento em que possamos dizer: "agora, ele já está formado!"; o homem não cabe em uma "forma". E como conseqüência, a palavra "configuração" foi traduzida por "criação", no sentido do resultado do trabalho criativo, uma vez que "configuração" em chinês traz o sentido de "programação", uma vez que não se pode, no pensamento de Quintás, admitir a idéia de que um ser humano seja programado por outro ser humano.

            Adotamos uma outra tradução para "formar", no contexto em que o Prof. Quintás discute o papel "formativo" da arte ("el arte forma las personas, que el deporte forma..."). Neste caso, traduzimos por "a arte cultiva e fomenta a natureza humana...", pois em chinês, outra tradução seria equívoca...

            A palavra "solidariedade" - uma das idéias centrais da conferência -, surprendeu-me por não admitir uma única tradução em chinês nos diferentes contextos. Assim, traduzimos - conforme o caso - por: "união", "mútua ajuda" ou "com-paixão".

            Também a palavra "domínio" não se deixa traduzir por uma única palavra chinesa. Conforme o contexto optamos por: "governar", "controlar", "comandar" ou "apoderar-se"...

            Um desafio interessante é - como se sabe - o da palavra "ser", que tanto como verbo quanto como substantivo é impossível de ser traduzida para o chinês em seu sentido original. Assim, em "El ideal del tener, tiene que ser cambiado por el ideal del ser", ficou para nós, como "o ideal de realização". Já em "ser de encuentro", "ser" foi traduzido por "ser vivo", porque precisamos da palavra "vivo" para ancorar o "ser", que sozinho, não teria sentido em chinês.

            Outro desafio belo e encantador ocorre quando o Prof. Quintás, a propósito de Marcel, diz que é preciso "pasar del problema al misterio...". Há dois sentidos que se pode dar à palavra "problema" em chinês: o de "pergunta"e o de "dificuldade"; em qualquer caso, o "problema" deve ser resolvido com bastante raciocínio, de maneira prática, seguindo uma lógica etc. Já para "mistério" é mais adequado em chinês a palavra também usada para adivinhação (que, etimologicamente, em português, remete ao divino...) ou enigma: neste caso se requer muita sabedoria, que não raras vezes caminha junto com a intuição, com o coração, com a virtude Jen.... O mistério pressupõe saber compreender o outro (o outro, que é sempre um mistério para nós e, naturalmente, não deve ser um "problema"...). Além do mais, somos um mistério também para nós mesmos: estamos sempre carentes de nos descobrirmos, nos compreendermos, nos intuirmos, nos ouvirmos - quem nunca se surpreendeu consigo mesmo, com uma reação inesperada?

            A decisiva palavra "encuentro" foi também traduzida de diversos modos: quando se fala do "ambiente de encuentro en la escuela", valemo-nos da expressão chinesa "encontro - huei-he -" que tem o sentido de "um encontro previamente marcado"; já no caso de "el ser humano es un ser de encuentro", usamos o "xian-fong" cujo sentido é de "encontro (aberto ao) inesperado", que tradicionalmente se aplica ao encontro de corações...

            Como se sabe, uma das maiores dificuldades para a aprendizagem do chinês, reside no fato de que, nessa língua, as articulações de palavras não se dão de maneira abstrata e uniforme; como quando em português dizemos: cabeças de gado, dentes de alho, pés de alface. Também no caso de verbos ("disseminar a calúnia", mas "semear a paz"; "formar uma fila", mas "montar um quebra-cabeças"). Assim, na discussão de educação como propiciadora de encontros, vale chamar atenção para o trecho: "Un profesor que no crea un ambiente de encuentro, realmente está fomentando la cultura o sólo fomenta la información?". Em chinês, para o mesmo verbo "fomentar", temos que empregar duas palavras bem diferentes: quando se trata da cultura, "fomentar" é "chuan-chen", que traz o sentido de promover com responsabilidade, como uma missão; já no caso da informação, usamos "chuan-di", que só tem o sentido de passar, de transmitir.

            Interessante é também a palavra "vocación", que em chinês, pode ser traduzida por "missão", mas que seria pobre demais para dar conta desta bela palavra, e portanto, acrescentamos a explicação: "tendência natural do ser humano". Pois, se vocação vem de vocare, chamar, e nós só respondemos aos chamados pelos quais somos atraídos, e portanto, pelos quais temos a tendência de seguir.

            Para finalizar, gostaria de lembrar a extraordinária importância da expressão "ideal ideal" empregada por Prof. Quintás, e que foi traduzida fielmente para o chinês no seu sentido original, considerando que nem sempre um ideal é um ideal ideal.