Universitário: o significado de ser católico, hoje
(notas e textos de conferência para o VII Congresso Católico
Universitário da Arquidiocese do Rio de Janeiro, 2-9-2001.)L. Jean Lauand
jeanlaua@usp.brFac. de Educação - USP
Introdução
Inicialmente quero agradecer ao eminentíssimo Cardeal Dom Eugênio Sales, à Pastoral Universitária do Rio de Janeiro, a todos os organizadores, às autoridades, professores, estudantes, aos queridos amigos presentes, por propiciar-me esta ocasião - para mim tão honrosa - de encontro e diálogo sobre tema tão importante para a Igreja.
Penso que o melhor é recordar, brevemente, o que significa ser católico e também o que é - o que deve ser... - a universidade e, com isto, teremos as bases para nosso tema: o que significa, para um universitário de hoje, ser católico (ou: o que significa para um católico ser universitário...). Naturalmente, esses significados não são únicos, isto é, não são uniformes: há uma diversidade de carismas, de vocações e de estilos, sobretudo quando se pensa em instituições tão amplas como a universidade e a própria Igreja.
Para além das diferenças (que, afinal, são de superfície e de ênfase), vamos procurar recordar [1] as características profundas desse ser católico - valendo-nos do novo Catecismo Católico [2] (doravante, abreviado por CC) - e de ser universitário (independentemente de quão longe nossas universidades possam estar da realização do ideal universitário; ou nossas vidas do ideal católico...).
Seja como for, sempre é útil recordar o ideal, o núcleo profundo. Entre outras razões, para sempre respeitarmos as diferenças entre católicos, a legítima diversidade de carismas e de estilos deste ou daquele movimento, deste ou daquele irmão. Há, nesse sentido, uma conhecida carta de Agostinho em que ele - evocando, no evangelho, as atitudes diametralmente opostas de Zaqueu e do Centurião - lembra que um não é melhor do que o outro e que ambos igualmente honraram a Cristo: Zaqueu oferecendo-Lhe um banquete; o centurião, pelo contrário, demovendo-O de Sua intenção de entrar em sua casa [3] .
Os católicos e o significado de ser católico?
Temos pouco tempo e vamos direto ao primeiro ponto: o que significa ser católico, hoje - para o universitário -, tomando como base o novo Catecismo. Naturalmente, só com enunciar esse referencial, torna-se imediatamente claro que não se trata de práticas externas (ter um crucifixo na sala de aula ou rezar determinadas orações etc., tudo isto pode ser muito importante, porém não atinge o núcleo da proposta do CC), mas de uma atitude coerente com a compreensão do alcance e do significado da vocação cristã, tal como proposto pelo CC.
Esse "alcance e significado da vocação cristã", a estatura humana e cristã à qual todo batizado está chamado, é mesmo o fato novo e o princípio que informa toda a proposta da Igreja. Adiantando os temas de que nos ocuparemos, trata-se de uma autêntica descoberta (ou "redescoberta", se pensamos nos primeiros cristãos...) da dimensão do cristianismo no mundo e na vida quotidiana.
Infelizmente, essa revolução profunda de compreensão do Evangelho, continua bastante à margem da consciência do cidadão comum, do ordinary people, do seo João e da D. Maria, ainda que seja precisamente ao cidadão comum, ao simples fiel (a cada um de nós, portanto...) que se dirige esta proposta do CC, que apresenta perspectivas insuspeitadas no próprio conceito de cristão...
É precisamente por ignorarem o alcance e o significado do cristianismo que - para muitos católicos - o catolicismo aparece como algo esvaziado e sem sentido, reduzido, quando muito, a algumas poucas práticas isoladas do resto da vida... Vale a pena, portanto, recordar os pontos essenciais da doutrina da Igreja sobre precisamente o que significa ser católico. Trata-se de algo rico também em conseqüências práticas...
O que significa ser católico? [4] O que o diferencia de alguém que pratica uma outra religião? A resposta a esta pergunta traz, na verdade, uma distinção radical, total, tão de outra dimensão, que torna o catolicismo absolutamente irredutível, incomparável a qualquer outra religião. Quem erradamente imaginasse o catolicismo uma religião a mais como as outras (o que, na prática, afinal, acaba sendo a idéia da maioria dos próprios católicos...), concebê-lo-ia essencialmente como um conjunto de regras de comportamento junto com a participação em certas cerimônias da comunidade. Mas isso, afinal, só diferenciaria perifericamente o catolicismo da doutrina pregada, digamos, pelo judaísmo, islamismo ou - em maior ou menor grau - por outras igrejas cristãs. Porque quanto ao código moral, os dez mandamentos são os mesmos para o católico, para o Alcorão e para a Toráh, e não há religião que pregue prejudicar o próximo, invejá-lo ou odiá-lo... E o menino católico integrar-se-ia à sua comunidade pelo Batismo, enquanto o menino judeu integrar-se-ia à dele pela circuncisão e a confirmaria pelo Bar-Mitzvá etc.
A diferença essencial: a graça
Falaremos, pois, do que é de decisiva importância para o cristão: a diferença essencial que nos situa a anos-luz de distância de qualquer outra religião: a graça. É precisamente pela sua peculiar concepção da graça que o catolicismo (junto com algumas outras igrejas cristãs) não é uma doutrina religiosa a mais, nem consiste em uma série de preceitos (mais ou menos comuns a outras religiões como o Islam ou o judaísmo...). Há esta diferença essencial: Trata-se no catolicismo de uma vida nova, participação na própria vida íntima de Deus: a vida da graça que principia no sacramento do Batismo. O alcance e o significado da vocação cristã estão ligados a uma compreensão do alcance e do significado do Batismo que um dia recebemos.
Ao começarmos a tratar deste tema é muito conveniente "desacostumarmo-nos", recordar (ou, talvez, considerar pela primeira vez...) esta espantosa realidade, a própria essência do cristianismo: a graça, a vida sobrenatural.
Tudo começa quando o Filho de Deus ao se fazer homem e habitar entre nós, misteriosamente comunica-nos sua divindade pelo Batismo de tal modo que somos - e essa formulação é importante - participantes da vida divina de Cristo: como diz o texto essencial de Hbr 3, 14 (e também II Pe 1, 4).
Esta doutrina evangélica é explicada detalhadamente pelo apóstolo Paulo. Aliás, desde o primeiro momento de sua conversão, quando Cristo lhe aparece já lhe propõe a inquietante e infinitamente sugestiva questão: "Saulo, Saulo, por que ME persegues?". E quando Saulo pergunta: "Quem és tu, Senhor?", ouve a resposta: "Eu sou Jesus, a quem tu persegues". E aí precisamente começa a revolucionária revelação: para Saulo, Cristo estava morto e ele perseguia cristãos... e de repente descobre que Cristo é Deus, que Ele ressuscitou e está vivo, não só à direita de Deus Pai, mas de algum modo, em Pedro, João, Teresa, Patrícia, Dudu, Helô..., nos cristãos, como dirá o próprio Paulo no essencial Gal 2, 20: "Já não sou eu que vivo; é Cristo que vive em mim". Nesse sentido, o CC afirma que, pelo Batismo, estamos como que plugados, on line, em Cristo. Ou para usar a palavra chave (de Hbr 3, 14), e que, com suas derivadas, aparece cerca de 200 vezes no CC!: participação.
#1265 O batismo não só purifica de todos os pecados, mas faz também do batizando "um nova criação" (II Cor. 5, 17), um filho adotivo de Deus tornando-o "participante da natureza divina" (II Pe. 1, 4), membro de Cristo (I Cor. 6, 15; 15,27) e co-herdeiro com Ele (Rom 8,17), templo do Espírito Santo (I Cor. 6, 19).
#1277- O batismo constitui o nascimento para a vida nova em Cristo.
A graça nos dá uma união íntima com Cristo: pelo Batismo somos como que enxertados em Cristo (Rom 6,4 e 11, 23) e principia em nós a in-habitação da Trindade, que se chama vida sobrenatural. Essa nova vida - e isto é muito importante - não é que elimine a vida natural, nem a ela está justaposta; pelo contrário, a assume, a reintegra, empapa-a, informa-a, estrutura-a por dentro. A espiritualidade cristã - esta é a grande novidade consagrada pelo Vaticano II - dirige-se a que descubramos e cultivemos essa vida interior, também e principalmente em nossa vida quotidiana. Pois, pelo Batismo, Cristo habita em nós e a vida cristã - alimentada pelos demais sacramentos - nada mais é do que a busca da plenitude desse processo - realizado pelo Espírito Santo - de identificação com Cristo, que principia no Batismo e tende, no limite, àquele: "Já não sou eu que vivo, é Cristo que vive em mim" (Gal 2,20) de S. Paulo.
#2813 Pela água do Batismo ... durante toda nossa vida nosso Pai "nos chama à santificação"
Cristo vive em seus "terminais": cada cristão não é só nem principalmente alguém que segue um código, é alguém que recebeu e tem a própria vida de Cristo. Cada cristão está chamado a ser outro Cristo... Uma das formas de Cristo perpetuar sua presença no mundo - em todos os lugares do mundo, em todas as épocas - é estando presente nos cristãos ("...por que Me persegues?"). Esta presença principia pelo Batismo... E isto é o que se chama graça: a participação da vida divina em nós. Isto é precisamente o que outras religiões não têm: que nossa vida passa a ser (em participação) a própria vida íntima divina.
#108 (...) Todavia a fé cristã não é uma "Religião de Livro". O cristianismo é a religião da "Palavra", não de um verbo escrito e mudo, mas do Verbo encarnado e vivo"(S. Bernardo).
O conceito fundamental é, portanto, o de graça: uma palavra "técnica" que toca as profundidades da teologia. Graça, no sentido religioso, não por acaso é a mesma palavra que se usa em expressões como "de graça", "gratuito" etc.: a graça é o dom por excelência.
Graça como participação: o instrumental teórico de S. Tomás
Para bem compreender a doutrina da participação é necessário que nos voltemos para Santo Tomás de Aquino, pois esse é um dos tantos pontos em que o CC se apóia no pensamento de Tomás, o pensador que formulou essa doutrina teológico-filosófica [5] .
Essa doutrina encontra-se no núcleo mais profundo do pensamento do Aquinate e é a base tanto de sua concepção do ser como - no plano estritamente teológico - da graça. Indicaremos resumidamente suas linhas principais.
Como sempre, voltemo-nos para a linguagem. Comecemos reparando no fato de que na linguagem comum, "participar" significa - e deriva de - "tomar parte" (partem capere). Ora, há diversos sentidos e modos desse "tomar parte" [6] . Um primeiro é o de "participar" de modo quantitativo, caso em que o todo "participado" é materialmente subdividido e deixa de existir: se quatro pessoas participam de uma pizza, ela se desfaz no momento em que cada um toma a sua parte.
Num segundo sentido, "participar" indica "ter em comum" algo imaterial, uma realidade que não se desfaz nem se altera quando participada; é assim que se "participa" a mudança de endereço "a amigos e clientes", ou ainda que se "dá parte à polícia".
O terceiro sentido, mais profundo e decisivo, é o que é expresso pela palavra grega metékhein, que indica um "ter com", um "co-ter", ou simplesmente um "ter" em oposição a "ser"; um "ter" pela dependência (participação) com outro que "é". Tomás, ao tratar da Criação, utiliza este conceito: a criatura tem o ser, por participar do ser de Deus, que é ser. E a graça nada mais é do que ter - por participação na filiação divina que é em Cristo - a vida divina que é na Santíssima Trindade.
Há - como indica Weisheipl [7] - três argumentos subjacentes à doutrina da participação: 1) Sempre que há algo comum a duas ou mais coisas, deve haver uma causa comum. 2) Sempre que algum atributo é compartilhado por muitas coisas segundo diferentes graus de participação, ele pertence propriamente àquela que o tem de modo mais perfeito. 3) Tudo que é compartilhado "procedente de outro" reduz-se causalmente àquele que é "per se".
No pensamento de Tomás, tanto o ato de ser da criatura como a graça são casos de participação. Na criação, Deus que é o ato puro de ser, dá, em participação o ser às criaturas, que passam a ter o ato de ser [8] . Essa primazia do ser exclui todo "essencialismo" em Tomás, que é, no dizer de Maritain "o mais existencialista de todos os filósofos" [9] . Nesse sentido, estão as metáforas de que Tomás se vale para explicar a participação. Ele compara o ato de ser (conferido em participação às criaturas pelo ato criador de Deus) ou a graça (a filiação divina que nos é conferida pela participação na Filiação de Cristo) à luz e ao fogo: um ferro em brasa tem calor porque participa do fogo, que "é calor" [10] ; um objeto iluminado "tem luz" por participar da luz que é na fonte luminosa [11] . Tendo em conta essa doutrina, já entendemos melhor a sentença de Guimarães Rosa: "O sol não é os raios dele, é o fogo da bola" [12] .
Cabe aqui uma comparação entre a criação (onde Deus nos dá em participação o ser) e a graça (onde Deus nos dá em participação sua própria vida íntima). Graça e criação: ambos são dom, favor e amor gratuito de Deus; mas a criação é, como diz S. Tomás, o amor comunnis (o amor geral) de Deus às coisas: o amor com que Deus ama as plantas, a formiga, a estrela; entes que são por um ato de Amor e de Volição divina. Mas, além desse "amor comum", há ainda (formulação também de Tomás) um amor specialis, pelo qual Deus eleva o homem a uma vida acima das condições de sua natureza (vida sobre-natural) e o introduz numa nova dimensão do viver.
A graça, que recebemos no Batismo, é uma realidade nova, uma vida nova, uma luz nova, uma qualidade nova que capacita nossa alma a acolher dignamente, para nela habitarem, as três pessoas divinas. Este amor absoluto (S. Tomás) é uma participação na vida íntima de Deus; a alma passa assim a ter uma vida nova: nela habita (ou para usar o termo teológico: inhabita - inhabitatio, habitação imediata, sem intermediários) a Trindade. Assim, quando se trata de definir a graça, Tomás vale-se das mesmas comparações de participação no ser. Não se trata de um panteísmo porque é participação: ter por oposição a ser: somos participantes (participes, metáchoi) de Cristo (Hbr 3, 14) e somos divinae naturae consortes "participantes da natureza divina" (2 Pe 1,4). Cristo é o Filho de Deus; nós temos a filiação divina.
Daí que ser católico não se restrinja a cerimônias, a práticas ou a cumprir regras de conduta; mas sim a alimentar um processo de identificação com Cristo, por assim dizer, 24 horas por dia. Assim, quando o CC declara que o Batismo é o sacramento da iniciação cristã por excelência está afirmando algo de muito distinto do que um mero "entrar no clube" ou "tirar a carteirinha" de cristão...
#1212 Pelos sacramentos da iniciação cristã...são colocados os fundamentos de toda vida cristã. A participação na natureza divina...
Ser cristão na vida quotidiana
Precisamente esta novidade: a graça conferida pelo Batismo (que - frisa o Catecismo - alcança a totalidade da vida quotidiana) é (e sempre foi...) a diferença infinita entre o cristianismo e as outras religiões: essa espantosa realidade é a própria essência do cristianismo: a graça, a vida sobrenatural, a participação na vida divina. Certamente, a doutrina da graça não é nova, desde sempre tem sido ensinada pela Igreja. Que há, então, de novo? Novo é a ampliação, a extensão e o aprofundamento que o novo Catecismo dá a ela:
#533 A vida oculta de Nazaré permite a todo homem estar unido a Jesus nos caminhos mais quotidianos da vida...
Nova é a afirmação de que essa identificação com Cristo dá-se - para a imensa maioria dos cristãos - na (e a partir da) imitação da "vida oculta" de Cristo (a vida oculta de Cristo, que nem sequer era mencionada no Catecismo anterior - de Trento - e agora ocupa diversos pontos do novo Catecismo). Porque Cristo, princípio da Criação (Jo 1) e autor da Redenção, assumiu toda a realidade humana e toda a realidade do mundo. E assim como misteriosamente no pecado de Adão - Paulo desenvolve isto no Cap. 15 da I Cor - houve para todos um decaimento; em Cristo, novo Adão, há um re-erguimento (Ele, pontífice - construtor de pontes - advogado, primogênito, primícias, "nossa paz - shalom , "nosso integrador", etc.).
E - tanto em Adão como em Cristo - é afetada toda a criação: Ele é a cabeça do Corpo que é a Igreja. Ele é o Primogênito, o princípio em tudo. E por meio dele Deus reconciliou - e está a reconciliar - consigo todas as criaturas. É o Cristo de Nazaré, em seus 30 anos de vida oculta, anos em que não fez nenhum milagre e viveu uma vida (também ela divina e redentora) com toda a aparência de absolutamente normal: vida de família normal no lar de Nazaré, de trabalho normal na oficina de José, de relacionamento social normal, vida religiosa normal etc.
#531 Durante a maior parte de sua vida, Jesus compartilhou a condição da imensa maioria dos homens: uma vida quotidiana sem grandeza aparente, vida de trabalho manual, vida religiosa judaica submetida à Lei de Deus, vida na comunidade...
#564 ...Durante longos anos de trabalho em Nazaré, Jesus nos dá o exemplo de santidade na vida quotidiana da família e do trabalho...
Cristo vivo nos cristãos, nos batizados. Cristo vivo no seo João da esquina e na D. Maria... a grande redescoberta da infinita responsabilidade dos fiéis leigos... Cristo que quer levar sua obra redentora à vida de família, à universidade, ao mundo do trabalho, às grandes questões sociais etc... Isto não estava dito pelo Antigo Catecismo. Nele, após afirmar nosso "plugamento" em Cristo pelo Batismo, o que se dizia era que, pelo Batismo, o cristão torna-se apto a todos os ofícios da piedade cristã (e é certo que o Batismo é a porta para a recepção de outros sacramentos etc.), mas não se falava em identificação com Cristo na vida quotidiana):
Antigo Cat. Rom II, II, 52 - Pelo Batismo também somos como membros incorporados, plugados, conectados a Cristo cabeça ... o que nos torna aptos a todos os ofícios da piedade cristã. Per Baptismum etiam Christo capiti tamquam membra copulamur et connectimur ... quae nos ad omnia christianae pietatis officia habiles reddit.
Participar em Cristo e em sua obra criadora e redentora
A Igreja, hoje, convoca cada cristão, o homem da rua, o profissional, o João da esquina e a D. Maria, cada um de nós, a ter uma vida cristã plena, não apesar de, mas precisamente por estar no meio do mundo, no dia de trabalho, na universidade, na vida de família, de relacionamento social etc. É pelo Batismo que cada cristão está chamado - é uma vocação - a reproduzir na sua vida a vida de Cristo (Gal. 2, 20)...
A Criação e a Redenção são projetos que se estendem aos cristos que são os cristãos. A partir do momento em que ocorre a Encarnação, o mundo - o mundo do trabalho, a vida quotidiana, a vida de família, a vida política, econômica e social etc. - torna-se algo do maior interesse religioso (a criação anseia pela manifestação dos filhos de Deus, pois Cristo quer reformá-la em Si).
Rom 8: 19 e ss. "Pois a criação em expectativa anseia pela manifestação dos filhos de Deus (...) na esperança de ela também ser libertada da escravidão da corrupção para entrar na liberdade da glória dos filhos de Deus. Pois sabemos que a criação inteira geme e sofre as dores de parto até o presente".
Col 1, 15 e ss. "Ele o Primogênito de toda criatura, porque nEle foram criadas todas as coisas, nos céus e na terra; as visíveis e as invisíveis... tudo foi criado por Ele e para Ele. Ele é antes de tudo e tudo nele subsiste. Ele é a cabeça da Igreja, que é o seu Corpo. Ele é o Princípio, o Primogênito, que tem em tudo a primazia, pois nEle aprouve a Deus reconciliar por Ele e para Ele todos os seres, os da terra e os dos Céus, realizando a paz pelo sangue da Sua Cruz".
Esse Cristo, princípio da Criação e Redentor do mundo; de cuja vida divina participamos pelo Batismo, quis associar-nos à sua obra criadora e também à sua obra redentora.
#307. (...) Deus concede assim aos homens serem causas inteligentes e livres para completar a obra da Criação, aperfeiçoar-lhe a harmonia para o bem deles e dos seus próximos. Cooperadores muitas vezes inconscientes da vontade divina, os homens podem entrar deliberadamente no plano divino, pelas suas ações, pelas suas orações, mas também pelos seus sofrimentos[(342): Cf. Cl 1, 24]. Tornam-se então plenamente "cooperadores de Deus" (1 Cor 3, 9; 1 Ts 3, 2) e do seu Reino[(343): Cf. Cl 4, 11]
# 618. A Cruz é o único sacrifício de Cristo, "único mediator entre Deus e os homens" (1 Tm 2, 5). Mas, pelo fato de que, na sua Pessoa Divina encarnada, "de certo modo uniu a si mesmo todo homem"[(947); GS 22, par. 2], "oferece a todos os homens, de uma forma que Deus conhece, a possibilidade de serem associados ao Mistério Pascal"[(948): GS 22, par. 5]. Chama seus discípulos a "tomar sua cruz e a segui-lo" (Mt 16, 24), pois "sofreu por nós, deixou-nos um exemplo a fim de que sigamos os seus passos" (1 Pd 2, 21). Quer associar a seu sacrifício redentor aqueles mesmos que são os primeiros beneficiários dele[(949): Cf. Mc 10, 39; Jo 21, 18-19; Cl 1, 24]. Isto realiza-se de maneira suprema em sua Mãe, associada mais intimamente do que qualquer outro ao mistéro do seu sofrimento redentor[(950): Cf. Lc 2, 35]: "Fora da Cruz não existe outra escada por onde subir ao céu[(951): S. Rosa de Lima, vida].
Deus, que tem poder para fazer das pedras filhos de Abrahão (Lc 3,8), quer contar com o amor conjugal de seo João e D. Maria para criar uma nova vida. Deus, que poderia fazer as crianças nascerem sabendo inglês e álgebra, quer contar com a tarefa educadora dos professores. Deus quer contar com engenheiros que canalizem córregos (como diz o povo em sugestiva expressão: "não tem um Cristo para acabar com as enchentes em São Paulo?"), com médicos que identifiquem vírus etc...
A redescoberta da Igreja é a da vida quotidiana como chamado a uma plenitude da existência cristã. Cristo, que passou 30 anos trabalhando na vida corrente sem fazer nenhum milagre (e S. José que passou toda a sua vida sem ver nem sequer um milagre de Jesus...), é modelo para - "já não sou eu que vivo é Cristo que vive em mim" - o estudante, o engenheiro, o taxista, o empresário, o torneiro mecânico, a dona de casa, o professor...; para cada cristão que assuma o chamado que recebeu no Batismo. Toda a proposta da Igreja é reformulada a partir do alcance dessa filiação divina que temos porque nos é dada em participação da Filiação que é em Cristo.
A participatio, essência do CC. A moral
Se repararmos bem, as quatro grandes partes do CC - a doutrina da fé, a liturgia, a 'moral e a oração - estão centradas no fato fundamental da participação.
#1692 O Credo professou a grandeza... de Sua criação e da redenção e da obra da santificação. Isto que a fé confessa, os sacramentos comunicam: pelos "sacramentos que os fizeram renascer" os cristãos se tornam "filhos de Deus" (Jo 1,12; 1 Jo 3,1), "participantes da natureza divina" (2 Pe 1,4). E, reconhecendo essa nova dignidade, são chamados a viver desde então "uma vida digna do Evangelho de Cristo" (Fil 1, 27). É pelos sacramentos e pela oração que recebem a graça etc.
Assim, a moral, longe de ser um código ou um manual, é um convite ao reconhecimento da dignidade desse "Viver em Cristo" (título da parte moral do CC): Agnosce, christiane, dignitatem tuam! (S. Leão, CC 1691). Para além de proibições e castigos, a moral é uma questão de retribuição de amor a essa presença de Cristo no cristão. Que vou fazer do Cristo que habita em mim? A que vou associá-lo? Com o que vou misturá-lo? "Não sabeis que vossos corpos são membros de Cristo. Ides fazer deles membros de uma prostituta?" (I Cor 6,15) "Não sabeis que sois o templo de Deus e que o Espírito Santo habita em vós?" (I Cor 3,16). É o homem novo de quem tantas vezes fala o Apóstolo, para quem tudo é lícito mas nem tudo convém (I Cor 6,12).
#1691 "Cristão, reconhece a tua dignidade. Por participares agora da natureza divina, não te degeneres retornando à decadência de tua vida passada. Lembra-te da Cabeça a que pertences..." (S. Leão Magno)
A participatio, essência do CC. A Santa Missa
Neste mundo, em que tantos estão desprovidos de qualquer motivação, a vida do cristão - que sabe que Cristo vive nele e está interessado em transformar toda a criação pela ação dos cristãos - torna-se fascinante. Sua vida fora desta consciência parece-lhe como o verso de Adélia Prado:
"De vez em quando Deus me tira a poesia e eu olho pedra e vejo pedra mesmo".
Nesse quadro ressalta a importância da Santa Missa: é por ela que nosso quotidiano é - por Cristo, com Cristo e em Cristo - enviado ao Pai. O CC, ao falar da Missa, conclui:
#1332 (chama-se) Santa Missa porque a liturgia na qual se realiza o mistério da salvação se conclui pelo envio dos fiéis (missio) a fim de que eles cumpram a vontade de Deus em sua vida quotidiana.
Na Missa, exerce-se de modo absolutamente único aquela união com Cristo-Cabeça. E "por Cristo, com Cristo e em Cristo" somos levados ao Pai. Do mesmo modo que o Sol, que é luz, dá a participar luz ao ar; e o fogo, que é calor, dá a participar calor a um metal a ele exposto, assim a Filiação do Verbo nos é dada em participação por Cristo. Pelo Batismo somos como que "plugados" nEle, e na S. Missa Cristo nos une a seu Sacrifício ante o Pai.
#1367 - O sacrifício de Cristo e o sacrifício da Missa são um único sacrifício: "A mesma e única Vítima, o mesmo e único Sacerdote que, pelo ministério dos padres, se oferece agora como se ofereceu na Cruz. A única diferença é o modo de oferecer: então, de maneira sangrenta; sobre o altar, de maneira incruenta".
#1368- A missa é também o sacrifício da Igreja. A Igreja, que é o Corpo de Cristo, participa da oferenda de sua Cabeça. Com Ele, ela se oferece toda inteira. Ela se une à Sua intercessão junto ao Pai por todos os ho-mens. Na Missa, o sacrifício de Cristo torna-se também o sacrifício dos membros de Seu Corpo. A vida de cada fiel, seu louvor, suas dores, sua oração, seu trabalho é unido aos de Cristo e à Sua oferenda total e adquire assim um valor novo. O sacrifício de Cristo presente sobre o altar dá a todas as gerações de cristãos a possibilidade de se unir a Seu sacrifício.
É interessante notar que a própria palavra missa é o particípio plural neutro de enviar, mittere (as coisas que foram enviadas; os fiéis que são enviados); de mesma raiz que míssil (enviável), emissão, demissão, missionário, missão etc. Isto é, todo o nosso dia adquire um valor novo; o valor da Cruz de Cristo, é enviado ao Pai "por Cristo, com Cristo e em Cristo". E isto dá um sentido novo à nossa vida quotidiana. Na verdade, nosso principal título diante de Deus é essa união com o Filho pela qual apresentamos ao Pai nosso sacrifício de adoração, de petição, de ação de graças e de reparação. Isto está expresso de maneira incomparavelmente precisa na própria Oração Eucarística III da Missa:
"Respice, quaesumus, in oblationem, Ecclesiae tuae et, agnoscens Hostiam cuius voluisti immolatione placari... - Olhai, ó Pai, nós vo-lo pedimos, para a oferenda de Vossa Igreja e reconhecendo a Vítima por cuja imolação quisestes devolver-nos Vossa amizade...".
Isto é, Deus Pai - que não teria por que se interessar pelas nossas oferendas - olha para elas, porque vendo-nos a nós, não nos vê a nós mas a Seu Filho Jesus, e nos acolhe, por assim dizer, no arrasto da Cruz de Cristo na S. Missa... Cristo, que me amou e se entregou a Si mesmo por mim (Gal 2,20), associa-me a Seu sacrifício. São Paulo que afirma que o sacrifício de Cristo foi superabundante ("onde avultou o pecado, superabundou a graça" Rom 5, 18-20) é o mesmo que diz - de modo aparentemente contraditório: "Eu completo (?) em minha carne o que falta (?) aos sofrimentos de Cristo" (Col 1, 24). E é que Cristo vive nos cristãos: pelo Batismo, participamos de Sua vida e de sua Cruz redentora... Cristo recebia, do alto da Cruz, não só as ofensas / consolos dos que ali estavam presentes, mas também, sendo Deus, via exatamente a atitude de cada um de nós, hoje, 2 de setembro de 2001, ante sua Cruz: podemos "completar em nossa carne o que falta à Cruz de Cristo". Pois, Cristo sofreu in genere todas as dores, mas não viveu concretamente, digamos, a derrota para a seleção da Costa Rica, ou a dor de cabeça de ter de entrar na justiça contra o maluco que me arrebentou o carro ou a do trânsito engarrafado (vive essas dores em mim, se eu as uno à Missa).
A Universidade
Esse projeto de Cristo (pelos seus "cristos"...) de transformação do mundo num mundo conforme à Sua vontade, em que toda a criação geme em dores de parto (Rom 8) e em que todos os seres são reconciliados por Ele e para Ele (Col 1), inclui toda a realidade do mundo e também as instituições... Parte importante desse projeto (porque é parte importante da realidade humana) é a universidade.
Dizíamos que Cristo quer cristos-engenheiros que canalizem córregos, cristos-médicos que curem, e cristos-universitários que... Que o quê? Tudo depende do que entendamos por universidade, o papel da universidade nos planos de Cristo.
O constante desafio que o Papa, valendo-se da formulação de Píndaro, tem lançado ("Família, torna-te o que és!". "Europa, torna-te o que és!", "Cristão, torna-te o que és!"), pode ser aplicado à universidade: "Universidade, torna-te o que és!" [13] E a universidade - também ela - atravessa uma crise de identidade, que se manifesta assim que lançamos a inquietante pergunta (nos dias de hoje, em que os bancos e as empresas dão cursos para seus funcionários...) de Pieper: "Que diferença há - que diferença deve haver... - entre um curso na universidade e o mesmo programa num banco ou numa indústria?" ( http://www.hottopos.com.br/mirand9/abertu.htm ).
Essa crise mostra-se tanto mais aguda na medida em que não encontramos resposta melhor do que dizer que a diferença é que o banco conta com mais recursos...
"Universidade, torna-te o que és!". A palavra universum (universitas, etc.) é uma dessas palavras fundamentais, sem as quais nossa visão de mundo ficaria mutilada. Ela traduz a antiga e riquíssima intuição heraclitiana hen panta, o um no todo, o um que convoca o todo... [14] .
E com isso já temos uma primeira característica diferencial da educação universitária: a partir do um, o todo. Este "um" pode ser a química, o direito, a matemática, as letras ou até mesmo um alfinete: se é considerado universitariamente, surge a pergunta: o que o todo da realidade tem que ver com este alfinete. Ou na formulação de Whitehead: "What is it all about?"
Nesse sentido, há, como faz notar Pieper, um texto-chave que expressa uma profunda intuição, uma grande experiência de Platão, e que vai ser, na Idade Média, o impulso fundacional das universidades, e é também até hoje a diferença específica do ideal de Universidade. Esse texto encontra-se na República, quando Platão aponta como característica fundamental da verdadeira educação o permanente impulso "para alcançar o todo das coisas divinas e humanas em universal" [15] . Ora, essa "abertura para a totalidade", essa busca da conexão global do todo do real com este "um" (um alfinete que seja) é também a caracterização do próprio espírito humano. Esse anseio profundíssimo do homem traduz-se institucionalmente, objetiva-se na universidade.
O católico e a universidade: o sobe-desce do mundo...
Dentre os inúmeros aspectos da conexão "o católico e a universidade", destacaria aqui alguns, poucos, mas que me parecem importantes.
O primeiro também corresponde a uma intuição do pré-socrático Heráclito. Um de seus fragmentos (N. 60) diz: "O caminho para cima e o caminho para baixo são o mesmo e o único - hodós áno káto mía kaí hoyté".
À primeira vista, uma verdade acaciana. Porém, quando aprofundamos nela - à luz do Evangelho e do pensamento de Tomás, que sem excluir contribuições de outras linhas de pensamento, é a "base filosófica" do CC - vemos não só que é plena de conteúdo, mas até mesmo explosiva.
Por um lado, o mundo aparece-nos como criado e redimido pelo Verbo. O mundo para o cristão não pode ser considerado como mau; foi criado por Deus e Deus viu que ele era bom e muito bom! Certamente, nossos pecados e injustiças deformam a obra de Deus e a distorcem, mas esse mundo foi redimido por Cristo e está chamado à reconciliação com Cristo, precisamente pela ação dos "cristos", que somos - apesar de todo nosso joio - os cristãos.
Há, nesse sentido, um ponto importantíssimo de nossa fé que - curiosamente - continua ignorado pelos católicos: a Criação não é obra de Deus Pai e sim de toda a Ssma. Trindade: Deus Pai cria pelo seu Verbo [16] .
# 292 Insinuada no Antigo Testamento, revelada na Nova Aliança, a ação criadora do Filho e do Espírito, inseparavelmente una com o Pai, é claramente afirmada pela regra de fé da Igreja: “Só existe um Deus...: ele é o Pai, é Deus, é o Criador, é o Autor, é o Ordenador. Ele fez todas as coisas por si mesmo, isto é, pelo seu Verbo e Sabedoria”, “pelo Filho e pelo Espírito”, que são como que “suas mãos”. A criação é obra comum da Santíssima Trindade.
# 320 Deus, que criou o universo, o mantém na existência pelo seu Verbo, “este Filho que sustenta o universo com o poder de sua palavra”(Hb 1,3) e pelo seu Espírito Criador que dá a vida.
Por isso, há uma verdade, uma razão na Criação. É por isso (porque a criação é obra do Logos) que - diga-se de passagem - a Igreja não possui propriamente um conteúdo moral específico; ao afirmar a moral, afirma-a como realidade humana, proposta para todos os homens (e não somente para os católicos) [17] .
Ratio, razão, não é no CC (enão é em Tomás) a razão do "racionalismo", nem sequer somente a faculdade racional humana. Dentre os múltiplos significados da palavra latina ratio (que acompanha alguns dos diversos sentidos do vocábulo grego logos), interessam-nos principalmente dois: um que aponta para algo intrínseco à realidade das coisas; e, outro, para um peculiar relacionamento da razão humana com a realidade. Ratio é derivado do verbo reor, contar, calcular. Ratio originalmente é conta; rationem reddere é prestar contas. Mas ratio significa também: razão, faculdade de calcular e de raciocinar; juízo, causa, porquê; título, caráter etc. Em filosofia, aparece como tradução de logos que, como ensina Pierre Chantraine [18] , entre muitos outros significados: "acabou por designar a razão imanente", isto é: a estruturação interna de um ente, e este é o primeiro significado que nos interessa neste estudo; o segundo é a capacidade intelectual humana de abrir-se à ratio das coisas e captá-la [19] .
No âmbito da fé, não é por acaso, portanto, que S. João emprega, em seu Evangelho, o vocábulo grego Logos (razão, palavra) para designar a segunda Pessoa da Ssma. Trindade que "se fez carne" em Jesus Cristo: o Logos não só é imagem do Pai, mas também princípio da Criação (cfr. Ap 3, 14), o responsável pela articulação intelectual das coisas. Pois a Criação deve ser entendida também como essa "estruturação por dentro": projeto, "bolação", design das formas da realidade, feito por Deus através do Verbo, Logos. E em seu Comentário ao Evangelho de João, Tomás chega a discutir a questão da conveniência de traduzir Logos por Ratio em vez de Verbum. Esta última forma parece-lhe melhor, pois se ambas indicam pensamento, Verbum enfatiza a "materialização" do pensamento (em criação/palavra).
Assim, para Tomás, a criação é também "fala" de Deus: as coisas criadas são pensadas e "proferidas" por Deus: daí decorre a possibilidade de conhecimento do ente pela inteligência humana [20] .
É nesse sentido que a Revelação Cristã fala da "Criação pelo Verbo"; e a Teologia - na feliz formulação do teólogo alemão Romano Guardini - afirma o "caráter verbal" (Wortcharakter) de todas as coisas criadas. Ou, em sentença de S. Tomás: "Assim como a palavra audível manifesta a palavra interior [21] , assim também a criatura manifesta a concepção divina (...); as criaturas são como palavras que manifestam o Verbo de Deus" (I d. 27, 2.2 ad 3).
# 299 Já que Deus cria com sabedoria, a criação é ordenada: “Tu dispuseste tudo com medida, número e peso”(Sab 11,20). Feita no e por meio do Verbo eterno, “imagem do Deus invisível”(Cl 1, 15), a criação está destinada, dirigida ao homem, imagem de Deus, chamado a uma relação pessoal com Deus. Nossa inteligência, que participa da luz do Intelecto divino, pode entender o que Deus nos Diz por sua criação, sem dúvida não sem grande esforço e num espírito de humildade e de respeito diante do Criador e da sua obra. Originada da bondade divina, a criação participa desta bondade: “E Deus viu que isto era bom...muito bom”(Gn 1,4.10.12.18.21.31). Pois a criação é querida por Deus como um dom dirigido ao homem, como uma herança que lhe é destinada e confiada. Repetidas vezes a Igreja teve que defender a bondade da criação, inclusive do mundo material.
Essa concepção de Criação como fala de Deus, a Criação como ato inteligente de Deus, foi muito bem expressa numa aguda sentença de Sartre, que intenta negá-la: "Não há natureza humana porque não há Deus para concebê-la". De um modo positivo, poder-se-ia enunciar o mesmo desta forma: só se pode falar em essência, em natureza, em "verdade das coisas", na medida em que há um projeto divino incorporado a elas, ou melhor, constituindo-as.
Assim, diz Tomás: "Qualquer criatura (...) por ter uma certa forma e espécie representa o Verbo, porque a obra procede da concepção de quem a projetou" (Quaelibet creatura... secundum quod) habet quamdam formam et speciem, repraesentat Verbum: secundum quod forma artificiati est ex conceptione artificis I, 45, 8)).
Assim quando aprofundamos no sentido da sentença heraclitiana e lembramos de que o mundo existe porque "desceu" do Verbo, Verbo que conferiu ao homem uma participação em Sua inteligência, este mesmo mundo oferece-se ao espírito humano - como num enigma, diz São Paulo - para que decifre a presença do Logos.
Essa capacidade de abertura para o todo do real, que é precisamente o conceito clássico de espírito, é, dizíamos, a ratio fundacional da universidade. Mas o espírito não é um espírito puro: é um espírito encarnado e o homem está chamado a buscar - com sede de Eros, como diz Platão - respostas sobre a conexão global (Zusammenhang) da realidade: o Hen panta, o "um / todo" de Heráclito: o um que convoca o todo da realidade, que, como dizíamos, segundo Platão é aquela característica fundamental da verdadeira educação: o permanente impulso "para alcançar o todo das coisas divinas e humanas em universal" (República, 486a).
Essa busca do significado global da realidade dá-se, portanto, a partir do "um", da realidade concreta: por detrás de qualquer estudo universitário (quer se trate de fontes de energia, de economia política, de matemática, ou de literatura) discute-se, busca-se (sempre que se trate do verdadeiro espírito universitário e não de apressadas agências de formação técnica especializada) o ser do homem, seu significado, seu destino.
É o caminho de subida que, afinal, é o mesmo que desceu do Verbo...
Quando se pensa nisto, repara-se imediatamente que a verdadeira universidade, para além de técnicas (sem dúvida, necessárias) tem seu princípio na alma, na admiração sempre renovada pelo significado humano do estudo, no cultivo da abertura para a totalidade do real: trilhar nos dois sentidos um caminho que é o mesmo e único...
Daí que se toda vocação autenticamente universitária é apaixonada (não esqueçamos que a palavra studio em latim, designa uma forma de amor, a realização primorosa de algo porque se ama) a do católico deve ser ainda mais: é uma ocasião de encontro com o Verbo (e, de outro ponto de vista, com o Espírito Santo).
Naturalmente, para isto, para fazer de sua vida universitária um "viver em Cristo" (já não sou eu quem estuda, quem assiste às aulas... é Cristo que vive em mim - Gal 2, 20) é necessário conhecer profundamente a vida de Cristo: conhecer o Evangelho (como é possível um universitário não conhecer o Evangelho?); conhecer a doutrina da Igreja (o CC, os documentos do Papa...); procurar discernir em todas as manifestações culturais - e devemos conhecer a fundo as que nos dizem respeito mais diretamente - o modo como elas se relacionam com o reino de Cristo.
O católico, o mundo e a política: o respeito pela autonomia das realidades temporais
Mas aqui tocamos o ponto explosivo das relações entre religião e o mundo; ou mais especificamente: política e fé. Dissemos, de diversos modos, que Cristo tem interesse neste mundo, que deve ser resgatado pelos "cristos" (que participam da Filiação de Cristo) e que as questões temporais têm uma dimensão "religiosa", pois o mundo foi criado e redimido pelo Verbo. Para citar de novo Adélia Prado:
Frigoríficos são horríveis
mas devo poetizá-los
para que nada escape à redenção
Frigorífico do Jibóia
Carne fresca
Preço jóia.
E é evidente que esse projeto divino de resgate do mundo, inclui como uma dimensão essencial o âmbito político. Porém, o problema do posicionamento do cristão diante do mundo tem sido - parece-me - muito mal equacionado: são-nos apresentadas falsas soluções, falsos problemas, falsos dilemas...
O mais triste nisso tudo é que a nova e riquíssima solução da Igreja (e a Igreja levou 1700 anos - de Constantino ao Vaticano II - para desembaraçar-se de erros teóricos nesse campo), com sua profunda teologia (que inclui a redescoberta do papel dos leigos na Igreja e cujos princípios remontam a S. Tomás, embora tivéssemos que esperar o Vaticano II para extrair as últimas conseqüências teológicas) continua bastante ignorada.
A meu ver, um dos erros mais graves e que está na contra-mão do que o Vaticano II ensina (e esse erro chega mesmo a constituir uma espécie de sacrilégio) é o de pregar a todo cristão um desprezo do mundo, como se o mundo fosse ruim e perigoso.
Na verdade, o cristão, o simples fiel, o leigo está chamado a encontrar a Deus no mundo: a universidade, a arte, a cultura, o convívio social, o trabalho, as amizades, a família (e poderíamos acrescentar: o futebol, a música, as diversões etc.) não são um obstáculo para a vida espiritual, mas a própria matéria de nosso encontro com Cristo. Nós, fiéis leigos, somos chamados a imitar a Cristo na sua vida de cidadão normal -não de monge nem de frade- nos 30 anos de sua vida no convívio do lar de Nazaré e na oficina de José!
É nesse sentido que, dizíamos, o CC - pela primeira vez na história - inclui uma seção sobre "A vida oculta de Jesus". E isto porque o mundo é bom, foi criado por Deus (e Deus viu que era muito bom!)! E o Verbo se fez carne, assumiu plenamente nossa realidade humana e material. Note-se que entre as verdades de fé da Igreja encontra-se a da realidade da alma como "forma", isto é que o espírito humano está intrinsecamente unido à matéria.
# 365. A unidade da alma e do corpo é tão profunda que se deve considerar a alma como a “forma” do corpo; ou seja; é graças à alma espiritual que o corpo constituído de matéria é um corpo humano e vivo; o espírito e a matéria no homem não são duas natureza unidas, mas a união deles forma uma única natureza.
Vale a pena, citar de novo o final do ponto 299 do CC:
#299 "Repetidas vezes a Igreja teve que defender a bondade da criação, inclusive do mundo material.
Defender contra quem? Também contra "cristãos" demasiadamente "espiritualistas", que afirmam que o mundo material é mau (que a matéria, a comida, a bebida, o sexo... são maus, não teriam sido criados por Deus), o que, de certo modo, é uma blasfêmia.
Evidentemente, este mundo depois do pecado, anda necessitado de redenção e a atuação política -e aqui tocamos o ponto!- deve ser feita de acordo com a ordem querida por Deus, mas sem interferir - insiste o Vaticano II - na legítima autonomia das realidades temporais (uma autonomia que lhes foi conferida, também precisamente pelo fato de terem sido criadas pelo Logos).
Há nesse sentido, uma passagem evangélica importantíssima, mas curiosamente nunca lembrada. Trata-se de um episódio evangélico aparentemente intranscendente: "um da multidão" aproxima-se de Cristo e faz um pedido: que Jesus use Sua autoridade para convencer seu irmão a repartir com ele a herança (Lc 12, 13). Para surpresa daquele homem (e contrariando a mentalidade antiga e a oriental, que uniam o poder religioso a questões temporais...), Cristo recusa-se terminantemente a intervir nessa questão: "Homem, quem me estabeleceu juiz ou árbitro de vossa partilha?" (Lc 12, 14). O máximo a que Cristo chega é a uma condenação genérica da cobiça, contando a esses irmãos a parábola do homem rico cujos campos haviam produzido abundante fruto e com o célebre convite à contemplação dos lírios: "Olhai os lírios do campo...".
O cristão - que precisamente por ser cristão e querer implantar o reino de Cristo - deve estar interessadíssimo na implantação do reino de Cristo na terra, em todos os problemas "do mundo", especialmente na medida em que dependem dele (da reforma curricular de sua faculdade ao problema da reforma agrária no Brasil; do último disco de rock à crise energética etc. etc. ) ele não vai partir para a "solução católica", que, concretamente, não existe...
Já certas visões muçulmanas têm favorecido uma forte e arraigada teocracia própria e não por acaso o chefe político se intitula Ayyatullah, "sinal de Deus".
Em nosso exemplo, a questão da herança - ao contrário de Cristo, que se recusa de dar critérios concretos - o Alcorão (4, 11 e ss.) diz concretamente: "Allah vos ordena o seguinte no que diz respeito a vossos filhos: que a porção do varão equivalha à de duas mulheres. Se estas são mais de duas, corresponder-lhes-ão dois terços da herança. Se é filha única, a metade. A cada um dos pais corresponderá um sexto da herança, se deixa filhos; mas se não tem filhos e lhe herdam só os pais, um sexto é para a mãe. Etc., etc.". E conclui: "De vossos ascendentes ou descendentes, não sabeis quais vos são os mais úteis. Isto compete a Allah. Allah é onisciente, sábio".
Contrastemos com o cristianismo. Naturalmente, para um cristão, o mundo é criação de Deus e obra de sua Inteligência: o mundo foi criado pelo Verbum e, portanto, conhecer o mundo é conhecer sinais de Deus. E mais: cada criatura é porque é criada inteligentemente por Deus, participa do ser de Deus. O Deus cristão é Emmanuel, Deus conosco, e pela Encarnação, a eternidade de Deus ingressa na temporalidade e Cristo en-cabeça, re-capitula (como diz o Catecismo da Igreja Católica) toda a realidade criada.
Daí que a Igreja defenda tenazmente a lei moral, lei natural da dignidade do ser do homem, que lhe foi conferida pelo ato criador do Verbum. Mas, precisamente por essa mesma concepção teológica, o cristão pode afirmar a mais decidida autonomia das realidades temporais: porque o mundo é obra do Verbum, a realidade temporal tem sua verdade própria, suas leis próprias, naturais, descartando o clericalismo.Esta é mesmo a doutrina oficial da Igreja, que rejeita definitivamente tanto o clericalismo quanto o laicismo que pretende afastar Deus da realidade social.
Assim, na mesma passagem (4, 36) em que a Lumen Gentium (sugestivamente no capítulo IV, dedicado aos leigos - a cuja iniciativa e responsabilidade de cristãos compete a santificação da ordem temporal), constituição dogmática do Vaticano II, afirma: "nenhuma atividade humana pode ser subtraída ao domínio de Deus", ajunta: "é preciso reconhecer que a cidade terrena, a quem são confiados os cuidados temporais, se rege por princípios próprios". Também do Vaticano II é a Gaudium et Spes (1, 3, 36): "Se por autonomia das realidades terrestres entendemos que as coisas criadas e as próprias sociedades gozam de leis e valores próprios, a serem conhecidos, usados e ordenados gradativamente pelo homem, é absolutamente necessário exigi-la. Isto não é só reivindicado pelos homens de nosso tempo, mas está também de acordo com a vontade do Criador. Pela própria condição da criação, todas as coisas são dotadas de fundamento próprio, verdade, bondade, leis e ordem específicas. O homem deve respeitar tudo isto, reconhecendo os métodos próprios de cada ciência e arte" (Cfr. também Vaticano II Apostolicam Actuositatem II, 7).
Em extremo sentido contrário, um Ayyatulah Khomeini (Princípios políticos, filosóficos, sociais e religiosos, Rio de Janeiro, Record, 1980.) pôde afirmar: "Costuma-se dizer que a religião deve ser separada da política e que as autoridades religiosas não se devem imiscuir nos assuntos de Estado. (...) Tais afirmações só emanam dos ateus: são ditadas e espalhadas pelos imperialistas. A política estava separada da religião no tempo do Profeta? (Que Deus o abençoe, a Ele e aos seus fiéis)" (p. 27). "O Islam tem preceitos para tudo o que diz respeito ao homem e à sociedade. Esses preceitos procedem do Todo-Poderoso e são transmitidos pelo seu Profeta e Mensageiro. (...) Não existe assunto sobre o qual o Islam não haja emitido seu juízo" (p. 19). "A instauração de uma ordem política secular equivale a entravar o progresso da ordem islâmica. Todo poder secular, seja qual for a forma pela qual se manifesta, é forçosamente um poder ateu, obra de Satanás. É nosso dever exterminá-lo e combater seus efeitos. (...) Não temos outra solução senão derrubar todos os governos que não repousam nos puros princípios islâmicos, sendo, portanto, corruptos e corruptores (...) É esse o dever, não só dos iranianos, mas de todos os muçulmanos do mundo." (p. 23)
Em outras palavras, para um cristão, já que o mundo é criação inteligente de Deus (do Logos) se eu quiser trabalhar, digamos, com cocos, devo estudar coqueirologia e NÃO consultar bispos ou a Bíblia... E o mesmo se diga da reforma agrária ou da reforma tributária (claro que sempre tendo em conta os critérios de justiça da Igreja, mas não existe uma "reforma agrária católica" nem uma plantação de cocos católica). É necessário respeitar a autonomia das realidades temporais e o fato de eu querer implantar nelas o reino de Cristo é um fato da intimidade de minha oração, que, ao sair para fora não sai como um fato católico, mas como uma posição pessoal, que eu defendo com argumentos humanos (científicos, filosóficos etc.) meus e não atrelada a um clericalismo de partidarismos católicos.
A universidade e a indiferença religiosa
Não quero concluir sem registrar - particularmente em nosso meio - um inexplicável (e perigoso) divórcio: por um lado, nosso povo e nossa cultura são profundamente religiosos; enquanto a universidade é bastante indiferente, ou mesmo refratária à religião. Cria-se assim uma cultura erudita afastada das autênticas raízes populares: o que é perigoso para os dois pólos.
Muito mais sensato é José Saramago, o insuspeito Saramago, quando diz em seu diário: "Há uma evidência que não deve ser esquecida: no que respeita à mentalidade, sou um cristão". Ou seja, apesar de tudo, no Ocidente, e de um modo encantador no Brasil, os valores cristãos marcam profundamente a cultura.
Seja-me permitido aqui dizer uma palavra sobre o trabalho que desenvolvo como autor e como editor, não por presunção, mas por se tratar de realidades vividas. Os autores que mais me falam de Deus, que me levam a Deus, não são somente os Santo Tomás (a quem tanto venero...), mas também Tom Jobim, Paulinho da Viola, Chico, Vinicius... E o "lugar" onde encontro a Deus, não é só o templo, mas também a rua, as canções populares, o falar da gente do povo...
Mas tudo isto já é assunto para ser discutido na palestra da tarde. Só a título ilustrativo, permitam-me, a modo de Apêndice, uma pequena "antologia pessoal".
Mas antes -também a modo de Apêndice - , lembraremos alguns critérios de João Paulo II para o Jubileu dos universitários.
Apêndice 1 - O Papa e a universidade
Nesse antológico discurso, João Paulo II, começa lembrando o Efatá de Jesus na cura do surdo-mudo (Mc 7, 34). Também o homem de hoje precisa dos cristos que lhe abram o caminho para a verdade - a verdade que torna livres - nos diversos campos do saber.
" Quando o homem não é espiritualmente "surdo-mudo", cada percurso do pensamento, da ciência e da experiência lhe oferece também um reflexo do Criador e lhe suscita um desejo d'Ele, com frequência escondido e talvez também reprimido, mas insuprimível". (...)
"A vossa vocação de estudiosos e professores que abriram o coração a Cristo consiste em viver e testemunhar com eficácia esta relação entre todas as ciências singularmente e aquele "saber" supremo que concerne a Deus e num certo sentido concide com Ele, com o seu Verbo que se fez homem e com o Espírito de verdade por Ele dado. Assim, através da vossa contribuição, a Universidade torna-se o lugar do Efatá em que Cristo, servindo-se de vós, continua a realizar o milagre de abrir os ouvidos e os lábios, suscitando uma renovada escuta e uma verdadeira comunicação" (...)
"No nosso tempo verificam-se grandes transformações, que abarcam também o mundo universitário. O carácter humanista da cultura às vezes parece ser secundário, enquanto se acentua a tendência a reduzir o horizonte do saber àquilo que se pode medir, e a descuidar todos os temas que dizem respeito ao significado último da realidade. Pode perguntar-se que homem a Universidade prepara hoje. Diante do desafio de um novo Humanismo que seja autêntico e integral, a Universidade tem necessidade de pessoas atentas à Palavra do único Mestre; precisa de profissionais qualificados e de credíveis testemunhas de Cristo. Trata-se de uma missão decerto não fácil, que exige um compromisso constante, se nutre de oração e de estudo, e se exprime na normalidade da vida quotidiana". (...)
"Fixando o olhar no mistério do Verbo encarnado (cf. Bula Incarnationis mysterium, 1), o homem encontra-se a si mesmo (cf. Gaudium et spes, 22). Ele experimenta também um íntimo júbilo, que se exprime no mesmo estilo interior do estudo e do ensino. Assim, a ciência ultrapassa os limites que a reduzem a um mero processo funcional e pragmático, para reencontrar a sua dignidade de investigação ao serviço do homem na sua verdade total, iluminada e orientada pelo Evangelho. Caríssimos Professores e Estudantes, esta é a vossa vocação: fazer da Universidade o ambiente em que se cultiva o saber, o lugar onde a pessoa encontra projectos, sabedoria e impulso ao serviço qualificado da sociedade. Confio este vosso caminho a Maria, Sedes Sapientiae".
Apêndice 2 - Deus no mundo
Num estudo - reproduzido pelo Vaticano em seu site - procuro mostrar como quase todas as formas de convivência quotidiana em muitas línguas (obrigado, parabéns, thank you, gracias etc.) são tributo à cultura cristã:
http://www.hottopos.com/notand1/antropologia_e_formas_quotidiana.htm
E o tema - essencial para o cristão - da voz média foi-me ensinado por Paulinho da Viola:
- As línguas antigas dispunham de uma fantástica terceira voz: a voz média. Emprega-se a voz média para ações que não se enquadram propriamente na voz ativa nem na voz passiva. Quer dizer que há ações que não são ativas nem passivas? É, é isto mesmo! O verbo nascer p. ex. não é ativo nem passivo: eu nasço ou sou nascido? Sim ,certamente sou eu que nasço, mas não exerço ativamente esta ação ("Dá licença, abram alas que eu vou nascer...); por isso o inglês fala do nascer na passiva: I was born in 1952...
O mesmo acontece, p. ex. com o morrer (excetuando o caso do suicida): a ação é minha, mas não é minha... A língua espanhola procura suprir a lacuna da voz média, tornando reflexivos verbos que em português não o são: Yo me muero etc.
O príncipe Paulinho da Viola trabalha muito com esse conceito de voz média; p. ex. de seu último disco são os maravilhosos versos: "Não sou eu quem me navega, quem me navega é o mar..." Assim são voz média em latim: nascer (nascor), morrer (morior); falar (loquor: é falando com você que eu falo comigo mesmo); confessar (confessando eu ME arrependo) etc. Como já dá para perceber, a voz média permite solucionar uma série de problemas cristãos -sim a ação é minha mas não é minha: é de Deus- que ficariam sem solução no binômio voz ativa/voz passiva. É Deus quem me navega, ou, para citar de novo o mestre Paulinho: "Foi um rio que passou em minha vida e meu coração se deixou levar".
http://jean_lauand.tripod.com/page13.html#51
Outro tema essencial para o cristão, o do up / down a que o mundo nos convoca (participação do Ser / nada da criatura) encontro-o em S. Tomás como em "A garota de Ipanema":
A doutrina de Tomás encontra uma inesperada e discreta confirmação na famosa canção "Garota de Ipanema" de Vinicius e Tom Jobim. A letra, como todos recordam vai falando da beleza ("Olha que cosa mais linda / mais cheia de graça / É ela menina que vem e que passa") e de como "o mundo inteirinho se enche de graça etc. " e, de repente, o verso, tão profundo quanto inesperado e (só) aparentemente contraditório:
"Oh, por que tudo é tão triste?"
Por que a beleza traz consigo também a sensação de solidão e tristeza? Talvez também porque se advinha que a criatura tem a beleza de modo precário e contingente; só Deus é a Beleza incondicional e simpliciter. "Est autem duplex defectus pulchritudinis in creaturis: unus, quod quaedam sunt quae habent pulchritudinem variabilem, sicut de rebus corruptibilibus apparet (...) Secundus autem defectus pulchritudinis est quod omnes creaturae habent aliquo modo particulatam pulchritudinem sicut et particulatam naturam; hunc defectum excludit a Deo, quantum ad omnem modum particulationis... Deus quoad omnes et simpliciter pulcher est" (De div. nom. cp 4, lc 5).
http://www.hottopos.com.br/mirand9/bipolar.htm
E é no golaço de meu time ou num artístico bailado que Deus se manifesta:
Naturalmente, instintivamente, o homem tende a evocar Deus quando a beleza inesperada ou intensa arranca-o do embotamento quotidiano! "Meu Deus! Quanta beleza..." exclama o poeta (Castro Alves, "Sub Tegmine Fagi") e com ele - consciente ou inconscientemente - todos os artistas.
Daí que não chegue a surpreender que o significado etimológico da espanholíssima palavra ¡Olé!, seja um recurso a Deus. ¡Olé! -diz o Diccionario de la Real Academia- provém do árabe Wa-(a)llah ("Por Deus!" - a língua árabe não dispõe da vogal "e" e, por vezes, o "a" tem som semelhante a "e"). E é uma exclamação de entusiasmo ante uma beleza (ou alegria) surpreendente ou "excessiva" (no verbete ¡Olé!, o Diccionario de María Moliner exemplifica com o caso das touradas ou do flamenco). Facilmente intuímos que a beleza de um ousado lance de tourada, de um golaço sem ângulo ou de um "taconeo flamenco" é - de algum modo misterioso, mas real - participação na criação - também ela artística - de Deus: ¡Olééé! (...)
Por isso, não chega a ser de todo surpreendente o depoimento, imensamente profundo, de Tom Jobim sobre a criação artística, em uma entrevista, quando foi contemplado nos EUA com a mais alta distinção com que pode ser premiado um compositor, o Hall of Fame: "Glória? A glória é de Deus e não da pessoa. Você pode até participar dela quando faz um samba de manhã". E complementa: "Glória são os peixes do mar, é mulher andando na praia, é fazer um samba de manhã". Palavras que confirmam os ensinamentos de João Paulo II: "Queridos artistas, como bem sabeis, são muitos os estímulos, interiores e exteriores, que podem inspirar o vosso talento. Toda a autêntica inspiração, porém, encerra em si qualquer frêmito daquele «sopro» com que o Espírito Criador permeava, já desde o início, a obra da criação".
http://www.hottopos.com/mp2/allah.htm
Daí que não acaba de me convencer - embora evidentemente compreenda o sentido da distinção - a exagerada separação entre, por exemplo: músicas "de Jesus" X músicas "do mundo". É o próprio João Paulo II quem nos vai ensinar a ver a marca cristã na língua portuguesa: quando ele se encanta com o fato de no Brasil chamarmos o trabalho de "serviço" ou com os nomes cristãos de nossos dias da semana:
João Paulo II (Dies Domini, Nota 22) destaca -entre outros encantadores fatos da língua portuguesa- o de que os nomes dos dias da semana em nossa língua são: segunda feira, terça feira etc. Quando observamos os nomes dos dias da semana nas outras línguas, são - como parte das concessões cristãs ao paganismo - baseados em deuses pagãos (romanos ou nórdicos): italiano: lunedi; espanhol: lunes; francês: lundi; alemão: Montag; inglês : monday. Ou seja, o dia da lua. Thursday é o dia de Thor, o deus do trovão (Donners-tag). "Feria" em latim é a palavra para festa. Ora, como genialmente faz notar Josef Pascher: para a liturgia todo dia é dia de festa e é por isto que a liturgia chama o dia comum (/que não é comum: é sempre de festa) de feria ... Festa, porque o culto cristão - o sacrifício de Cristo, a Santa Missa - se realiza em meio à criação: toda a criação (e particularmente cada um de nós, os que participamos cada dia - ou cada domingo - da Missa) é -por Cristo, com Cristo e em Cristo- oferecido ao Pai. E, como dizíamos, mesmo as nossas dores - as incompreensões, a doença, as injustiças, o desemprego - são vividas por Cristo em nós e "enviadas" na missa ao Pai que as aceita, porque reconhece em nós a Seu filho Jesus. É por isso que João XXIII dizia: "A Igreja é uma enamorada, que sempre canta. Para ela, até o Requiem é canto".
Sendo nossa religião a do Verbo Encarnado, o essencial da missa é a união das 24h de nosso dia ao sacrifício de Cristo. Cristo leva ao Pai meus trabalhos e meu dia: é festa!. Assim se compreende que se fale em feria, festa pela liturgia; já que em vez das superstições dos astros, temos a Cristo. Comentando o Salmo 93 (En. in Ps. 93, 3), S. Agostinho diz: "O primeiro dia depois do sábado é o domingo, dia do Senhor; o segundo é a secunda feria, à que os profanos chamam diem Lunae; a tertia feria, diem illi Martis; a quarta feria é o que os pagãos chamam de dia de Mercúrio e o pior é que muitos cristãos também... Não admitamos isto! Oxalá se corrijam e abandonem este modo de falar e usem a linguagem que é nossa (...) pois Cristo aboliu as superstições".
Nessa mesma linha, S. Tomás diz (Super Ev. Io. cp 20 lc 1)que o domingo é prima feria e isso por causa da Páscoa: assim como o Gênesis começa com O dia, assim também a Páscoa em que principia o mistério da nova criatura e se renova a face da terra é o dia, a feria. A Páscoa é o dia da Ressurreição no qual inchoabitur dies aeternitatis, "começa o dia da eternidade, no qual já não se alternam dia e noite, pois o Sol que faz esse dia, já não morre". Pela missa, o católico em vez da "segunda feira brava", tem a segunda festa.
http://jean_lauand.tripod.com/page13.html#13
[1] . E recordar é sempre tarefa fundamental da filosofia e da educação: no núcleo mais profundo da tradição de pensamento ocidental - como também no Oriente e na Bíblia - sempre encontramos a advertência: "o homem é um ser que esquece" - cfr. p. ex. o No. 2 de: http://www.hottopos.com.br/videtur9/renlaoan.htm
[2] . Citaremos os pontos do Catecismo indicando o número pelo sinal # de cardinalidade. Assim: # 354 é o ponto 354 do Catecismo. As citações seguem a 9a. edição brasileira (já atualizada com a edição típica latina).
[3] . Augustinus Hipponensis - Epistulae Cl. 0262 , epist. : 54, v.: 34.2, par.: 3: "Neque enim litigauerunt inter se aut quisquam eorum se alteri praeposuit Zachaeus et ille centurio, cum alter eorum gaudens in domum suam susceperit dominum, alter dixerit: non sum dignus, ut sub tectum meum intres, ambo saluatorem honorificantes diuerso et quasi contrario modo,ambo peccatis miseri, ambo misericordiam consecuti".
[4] . Emprego a palavra "católico" por estar num Congresso Católico; naturalmente as concepções que vou apresentar a seguir, são também compartilhadas - em maior ou menor grau, conforme o caso - por outras igrejas cristãs. Também nesse sentido, quando uso "cristão" como sinônimo de "católico" não é por nenhuma pretensão de exclusivismo ou de menosprezo por outras igrejas cristãs...
[5] . Trato mais detidamente do conceito de "participação" no estudo introdutório a Tomás de Aquino: Verdade e Conhecimento, São Paulo, Martins Fontes, 1999.
[6] . Cfr. Ocáriz, F. Hijos de Dios en Cristo, Pamplona, Eunsa, 1972, pp. 42 e ss.
[7] . Weisheipl, James A. Tomás de Aquino - Vida, obras y doctrina, Pamplona, Eunsa, 1994, pp. 240-241.
[8] . Para a "participação" do ser em Tomás, cfr. Lauand, L. J. Razão, Natureza e Graça: Tomás de Aquino em Sentenças, São Paulo, FFLCHUSP, 1995 e o já mencionado estudo introdutório a Tomás de Aquino: Verdade e Conhecimento, São Paulo, Martins Fontes, 1999.
[9] J. Maritain, "L'humanisme de Saint Thomas d'Aquin", in Mediaeval Studies, 3 (1941).
[10] . Evidentemente, não no sentido da Física atual, mas o exemplo é compreensível.
[11] . Participação envolve, pois, graus e procedência. Tomás parte do fenômeno evidente de que há realidades que admitem graus (como diz a antiga canção de Chico Buarque: "tem mais samba no encontro que na espera...; tem mais samba o perdão que a despedida"). E pode acontecer que a partir de um (in)certo ponto, a palavra já não suporte o esticamento semântico: se chamamos vinho a um excelente Bordeaux, hesitamos em aplicar este nome ao equívoco "Chateau de Carapicuíba" ou "Baron de Quitaúna". As coisas se complicam - e é o caso contemplado por Tomás - quando uma das realidades designadas pela palavra é fonte e raiz da outra: em sua concepção de participação a rigor, não poderíamos predicar "quente" do sol, se a cada momento dizemos que o dia ou a casa estão quentes (se o dia ou a casa têm calor é porque o sol é quente). Assim, deixa de ser incompreensível para o leitor contemporâneo que, no artigo 6 da Questão disputada sobre o verbo, Tomás afirme que não se possa dizer que o sol é quente (sol non potest dici calidus). Ele mesmo o explica, anos depois, na Summa Contra Gentiles (I, 29, 2), que acabamos dizendo quente para o sol e para as coisas que recebem seu calor, porque a linguagem é assim mesmo: "Como os efeitos não têm a plenitude de suas causas, não lhes compete (quando se trata da 'verdade da coisa') o mesmo nome e definição delas. No entanto (quando se trata da 'verdade da predicação'), é necessário encontrar entre uns e outros alguma semelhança, pois é da própria natureza da ação, que o agente produza algo semelhante a si (Aristóteles), já que todo agente age segundo o ato que é. Daí que a forma (deficiente) do efeito encontra-se a outro título e segundo outro modo (plenamente) na causa. Daí que não seja unívoca a aplicação do mesmo nome para designar a mesma ratio na causa e no efeito. Assim, o sol causa o calor nos corpos inferiores agindo segundo o calor que ele é em ato: então é necessário que se afirme alguma semelhança entre o calor gerado pelo sol nas coisas e a virtude ativa do próprio sol, pela qual o calor é causado nelas: daí que se acabe dizendo que o sol é quente, se bem que não segundo o mesmo título pelo qual se afirma que as coisas são quentes. Desse modo, diz-se que o sol - de algum modo - é semelhante a todas as coisas sobre as quais exerce eficazmente seu influxo; mas, por outro lado é-lhes dessemelhante porque o modo como as coisas possuem o calor é diferente do modo como ele se encontra no sol. Assim também, Deus, que distribui todas suas perfeições entre as coisas é-lhes semelhante e, ao mesmo tempo, dessemelhante". Todas essas considerações parecem extremamente naturais quando nos damos conta de que ocorrem em instâncias familiares e quotidianas de nossa própria língua: um grupo de amigos vai fazer um piquenique em lugar ermo e compra alguns pacotes de gelo (desses que se vendem em postos de gasolina nas estradas) para a cerveja e refrigerantes. As bebidas foram dispostas em diversos graus de contato com o gelo: algumas garrafas são circundadas por muito gelo; outras, por menos. De tal modo que cada um pode escolher: desde a cerveja "estupidamente gelada" até o refrigerante só "um pouquinho gelado"... Ora, é evidente que o grau de "gelado" é uma qualidade tida, que depende do contato, da participação da fonte: o gelo, que, ele mesmo, não pode ser qualificado de "gelado"... Estes fatos de participação são-nos, no fundo, evidentes, pois com toda a naturalidade dizemos que "gelado", gramaticalmente, é um particípio...
[12] . Noites do Sertão, Rio de Janeiro, José Olympio, 6a. ed., 1979, p. 71.
[13] A meu ver, o melhor tratamento do tema encontra-se em Pieper: O que é Acadêmico?, S. Paulo, EPU, 1981 e Abertura para o todo: a chance da Universidade: http://www.hottopos.com.br/mirand9/abertu.htm . Veja-se também Lauand, Jean O que é uma universidade?, São Paulo, Perspectiva-Edusp, 1987, Coleção Debates 205.
[14] . "Como pode o vocábulo universum, que se refere ao caráter de todo único e uno da realidade, de repente passar a significar algo de novo e diferente? Assim, é claro que também não depende do nosso gosto entender por universidade qualquer coisa, algo que não tivesse nada a ver com aquilo que expressa esta palavra fundamental".
[15] PLATÃO, A República, 486a.
[16] E também pelo Espírito Santo...
[17] . # 1954 (...) A lei natural exprime o sentido moral original, que permite ao homem discernir, pela razão, o que é o bem e o mal, a verdade e a mentira: "A lei natural se acha escrita e gravada na alma de todos e da um dos homens porque ela é a razão humana ordenando fazer o bem e proibindo pecar (...)
# 1955 (...) A lei natural enuncia os preceitos primeiros e essenciais que regem a vida moral (...). Está exposta, em seus principais preceitos, no Decálogo. Essa lei é denominada natural, não em referência à natureza dos seres irracionais, mas porque a razão que a promulga pertence como algo próprio à natureza humana(...).
# 1956 Presente no coração de cada homem e estabelecida pela razão, a lei natural é universal em seus preceitos, e sua autoridade se estende a todos os homens. Ela exprime a dignidade da pessoa e determina a base de seus direitos e de seus deveres fundamentais.
# 1872 O pecado é um ato contrário à razão. Fere a natureza do homem e ofende a solidariedade humana.
Nesses pontos, como dizíamos, já se vê a referência ao pensamento de Tomás de Aquino: naturalmente, aqui, "razão" e "natureza" são entendidos em seu significado clássico de ratio e natura, tal como aparecem em S. Tomás.
[18] Dictionnaire Étymologique de la Langue Grecque, Paris: Klincsieck. Logos significa ainda: palavra, discurso, argumentação, raciocínio, conta, proporção (ana-logos), quociente, o Verbo, segunda Pessoa da Trindade etc. Para a etimologia de ratio ver Érnout & Meillet Dictionnaire Étymologique de la Langue Latine, Paris, Klincsieck, 1951, 3ème ed.
[19] É o que Tomás chama também de recta ratio, em oposição a uma perversa ratio que se fecha à ratio das coisas ou as deforma.
[20] Não por acaso Tomás considera que "inteligência" tem que ver com intus-legere ("ler dentro"): a ratio do conceito na mente é a ratio "lida" no íntimo da realidade.
[21] O conceito, a idéia, a ratio.