O teatro nunca foi arte de maior destaque
entre os árabes e muçulmanos. Afora o teatro de sombras - que se atesta, no mundo
árabe, desde o fim da Idade Média, por influência turca -, há poucas expressivas
manifestações árabes dessa arte.
O teatro árabe atual tem suas raízes
fundamentalmente no teatro europeu que adentrou o Oriente Médio como parte da influência
ocidental, em meados do século passado.
Por outro lado, há um tipo de teatro, a Ta'ziya
que é muito tradicional e cultivado em certos setores muçulmanos.
Ta'ziya, literalmente
"consolação", é a transposição persa 1 dos Mistérios medievais do
Ocidente, embora deles se diferencie no espírito e na forma (é antes um remanescente de
antigas práticas religiosas persas).
A peça ritual iraniana, sempre representada
durante os primeiros dias do mês muçulmano de Muharram, relembra,
sobretudo, o massacre de Hussain e os infortúnios de outros membros da família de 'Ali.
Procedente da literatura medieval, a Ta'ziya encontra sua máxima expressão em O
drama de Kerbela, cujas cenas iniciais, apresentaremos, em tradução 2, a seguir.
Naturalmente, como observa Landau, a leitura
desta Ta'ziya dá apenas uma pálida idéia da enorme comoção que tal peça
exerce sobre a multidão de fiéis shiitas, seguidores de 'Ali, pai de Hussain, o mártir
de O drama de Kerbela.
Lembremos que Hussain, para os shiitas, ocupa
lugar extremamente importante. A doutrina shiita, fundada na interpretação alegórica do
Alcorão, prescreve muito poucas crenças, centradas na idéia de que todos os homens são
pecadores e, portanto, destinados ao inferno. Podem, porém, ser resgatados, não por
esforços próprios, mas por meio de um redentor. Ora, Hussain, filho de 'Ali, é esse
redentor 3.
O enredo da peça é pura emoção 4,
potenciada ao extremo pela repetição e insistência - sob diversos ângulos - de um
massacre cruel e injusto do grande líder religioso.
Enquanto teatro, a ação está longe de
vivenciar os momentos presentes classicamente numa tragédia, que incluem a exposição,
desenvolvimento e clímax de um conflito (propulsionados por oposição de vontades). A
ação de O drama de Kerbela, pelo contrário, restringe-se ao monótono relato
linear, resignado e lamuriento, das desventuras da família do Profeta, tendo como momento
paroxístico a decapitação de Hussain.
Sobre a representação da Ta'ziya, diz
Landau: "É representada com maior ou menor pompa e acompanhamento musical nos
teatros, nas mesquitas ou ao ar livre. Freqüentemente, o cenário - entre realista e
simbólico - é extraordinariamente rico; o sangue é real, mas a palha toma o lugar da
areia. Além disso, há um exagero nos efeitos cênicos, como por exemplo, quando a
cabeça decepada de Hussain, vertendo sangue, continua recitando versículos do
Alcorão".
Acrescente-se a isto, a extrema sinceridade
dos atores e a credulidade das massas e compreender-se-á que as cenas mais irreais sejam,
para eles, convincentes.
Tenha-se em conta que essa encenação teatral
é apenas um dos elementos das celebrações de Muharram. Ela vem
acompanhada de pregações e rituais religiosos que também ocorrem num crescendo
ao longo de dez dias, culminando esses eventos com a representação da paixão do Imam
Hussain. Daí o incrível impacto emocional que O drama de Kerbela exerce sobre a
multidão 5; a comoção chega a extremos como "o de os próprios atores, desfeitos
pela dor, se suicidarem; há somente uma geração, um tal frenesi apossou-se dos
espectadores que chegaram a atacar os estrangeiros nas ruas" 6.
Para situar o leitor, com vistas a uma melhor
compreensão do alcance e do significado de O drama de Kerbela, rememoraremos
alguns dados históricos.
Muhammad morreu em Medina, em 8 de junho de
632 e não deixou filhos homens, que pudessem ser candidatos naturais a sua sucessão.
Assim, a incipiente e ainda frágil comunidade muçulmana, acéfala, deparou-se, por
primeira vez, com um problema para o qual nem o Profeta nem o Alcorão davam solução 7.
Assim, era natural que a questão da sucessão
se polarizasse entre 'Ali - casado com Fátima, filha do Profeta - e Abu-Bakr - o primeiro
a converter-se ao Islam e um dos sogros de Muhammad (polarização que, de algum modo,
projeta-se, ainda hoje, na divisão sunitas/shiitas).
Após longa e apaixonada disputa (dada a falta
de critério de sucessão e o peso dos títulos de cada um dos dois califas em potencial),
o partido de Abu-Bakr saiu vencedor (seguido, após sua morte, por 'Umar e Uthman. 'Ali,
quarto califa, ocuparia o cargo somente em 656). Como faz notar Virolleaud: "se esta
ordem de sucessão dos primeiros califas, que é a ordem real, histórica, é admitida por
todos os árabes, não o é pelos muçulmanos do Iran. A seus olhos, com efeito, é 'Ali
que é o verdadeiro sucessor de Muhammad, e Abu Bakr, 'Umar e Uthman não são mais do que
usurpadores".
O drama de Kerbela mistura o real e o
legendário: Hussain teria se sacrificado pela salvação - temporal e, sobretudo, eterna
- de seu povo. Se foi "degolado como um cordeiro", foi por obediência aos
desígnios eternos de Deus. Assim, para os shiitas, Hussain não é só um combatente
valoroso, mas, principalmente, "o mártir". Naturalmente, a lenda encarregou-se
de amplificar e mitificar o significado histórico de Hussain.
Antes de apresentar as cenas iniciais de O
drama de Kerbela, resumimos, aqui, as informações aportadas por Virolleaud, como
subsídios para a leitura da peça.
Hussain tinha cerca de seis anos, quando
Fátima, sua mãe, morreu. Casou-se com a filha do rei dos persas e teve - deste e de
outros casamentos - vários filhos e filhas.
Aos cinqüenta e cinco anos, partiu com a
família para o Iraque, com o intuito de retomar o poder ao Califa de Damasco, Yazid,
filho de Muawia, fundador da dinastia omíada.
Mal chegado a Kufa, o pequeno grupo de Hussain
viu-se diante do poderoso exército de Damasco, na planície de Kerbela. Hussain
encontrava-se desamparado (seus partidários foram mantidos, por cerco, longe do campo de
batalha, ou caíram pela sede ou golpes dos inimigos).
As cenas passam-se no momento em que Hussain
está só com sua mulher (a princesa persa), suas duas irmãs: Zainab e Kulsum, seu filho
mais novo, sua filha pequena, Sukaina e seu sobrinho Abdallah, filho de Hassan. Diante
deles, o inimigo: o exército de Damasco, comandado por Ibn Saad e Shamr, representado
como inimigo pessoal de Hussain.
É pelo diálogo entre Ibn Saad e Shamr que
começam nossas patéticas cenas.
SHAMR: Ouve-me, caro Ibn Saad! De toda a família do manto 8, resta
apenas Hussain, filho de 'Ali. Todos os outros confessaram sua fé e morreram, feridos
pela espada e pelo punhal. Agora chegou a vez daquele a quem chamam a "luz dos olhos
dos dois Mundos 9". Que ele sucumba, pois, aos golpes de nossos sabres e lanças. Que
seus filhos e todos os de sua casa sejam feitos prisioneiros. E que nós nos apoderemos de
todas as pombas de seu harém! E apresentar-nos-emos cheios de alegria a Obeid 10, que se
regozijará ao saber da morte do filho de Fátima.
IBN SAAD: Que dizes, infiel! Como poderia eu tomar parte no assassinato
de Hussain? Não basta o que já fizemos? Já não tenho dificuldades bastantes para
explicar-me no dia do Juízo? Já não são suficientes as abominações que cometemos?
Não basta que Abbas tenha sofrido o martírio, que as mãos de Kassem tenham se manchado
com o sangue de Ali-Akbar? Por todos estes crimes que cometeste, o edifício da religião
está ameaçado de desmoronamento. E ainda queres voltar-te contra Hussain, filho de 'Ali.
Que maquinas contra esse infeliz, absolutamente abandonado pelos seus, nesta planície?
SHAMR: Fica sabendo, ó bravo Ibn Saad, que é necessário que te
desfaças de Hussain; se recusares, voltarás a Kufa e serás reconduzido ao comando das
tropas.
IBN SAAD: Que seja cortada tua língua, ó cão! Ó tirano, que
palavras acabas de pronunciar? Cita-me um versículo do Alcorão, que te autorize a
combater Hussain! Acaso Deus ordenou que fizéssemos guerra a Hussain? Não é Hussain a
chama da casa do Profeta? Não é ele a flor do jardim de Muhammad? E Fátima, sua mãe,
não é a melhor das mulheres? Não foi o Anjo Gabriel em pessoa que se encarregou de
pentear-lhe os cabelos? Acaso podemos renunciar à nossa parte no Paraíso, para obedecer
às ordens de Obeid ben Zyad? Queres sacrificar a religião pelo teu ódio?! Não! Mais
vale fazermos a paz com o Rei da Religião, ó homem indecente e ímpio. Acabemos com esta
guerra abominável e que Hussain retorne a Medina sem ser molestado.
SHAMR: Meus olhos e meu coração não estarão saciados de mortes e
matanças, até que Hussain caia, trespassado pela lança e pela espada; até que Zainab e
Kulsum não estejam sob meu domínio como prisioneiras e até que eu derrame o sangue de
Hussain.
IBN SAAD: Lembra-te de como o Profeta gostava de beijar Hussain. Será
que devemos transgredir as leis de nossa religião e decapitar Hussain? Será que devemos
conduzir a Damasco como cativas as irmãs de Hussain? Será que podemos esquecer tudo que
de bom devemos à mãe de Hussain?
SHAMR: Pois bem! Eu hei de matar o filho do Príncipe dos homens e dos Djinns.
Eu, que não tenho nenhuma consideração pela mãe dos dois Hassan 11. Onde estão as
mulheres do harém de Hussain? Digam a Hussain que saia, pois só sua morte poderá
acalmar meu revolto coração.
ZAINAB: Meu Hussain dorme, ó perverso infiel! Não o despertes!
Devagar, devagar! Hussain dorme, ó perverso infiel! Pelo Profeta do Oriente e do
Ocidente, devagar, devagar!
SHAMR: Repito, ó filha do Profeta de Deus. Vai e diz a Hussain, filho
de 'Ali: "Ó meu amo, é chegada a hora de considerares a morte". Dize-lhe que
não é hora de dormir. Quanto a ti, levar-te-ei a Damasco e serás tão maltratada, que
todos se lamentarão pela tua sorte.
ZAINAB: Ele dorme, ó indecente! O filho de 'Ali Morteza 12. Não grite
tão alto, pelo amor de Deus, devagar, devagar! Vou lhe repetir, ó maldito, as tuas
palavras. Deixa-me despertá-lo. Silêncio, silêncio! (A Hussain:) Ó irmão, Shamr está
aqui! Acorda, eu te conjuro! Meu véu já se torna negro só com a idéia de tua morte.
Acorda! Enquanto dormes tão suavemente, levam-me como prisioneira. Ó irmão, vê como
sou infeliz! Acorda! O exército inimigo já está aqui, ó rei sem cavaleiros e sem
tropas! Eis-me cercada pelo inimigo, acorda!
HUSSAIN: Estava tendo um sonho. Eu estava numa pradaria verdejante, e
tu me despertaste... E havia encantadoras huris, um parque e castelos, e tu me
despertaste... De um lado, meu avô 13, o melhor dos homens; do outro, meu pai, 'Ali
Morteza, e tu me despertaste... Minha mãe, vestida de preto, sentada, chorava; entoava um
canto fúnebre pela morte de uma pessoa querida, e tu me despertaste... Meu avô dizia:
"Hussain vai morrer e Zainab será levada em cativeiro", e tu me despertaste...
ZAINAB: Enquanto tu dormias, meu irmão, Shamr esteve aqui e disse:
"Levarei Zainab a Damasco, apesar de seus gritos e gemidos". Oh, como temo os
infortúnios do destino! Como temo, querido irmão, ter de para lá partir e sofrer!
HUSSAIN (orando): Ó destino! Os campeões da religião 14 já
sucumbiram a teus golpes! Ainda não estás satisfeito? Para qualquer lado que me volte,
não vejo amigo algum que me possa socorrer. Tudo que ouço são lamentos de infelizes
torturados pela sede. E como é penoso pensar que minha irmã será levada em cativeiro!
Só de imaginar, desfaleço. E minha pobre Sukaina, será levada também ela? Oh! Vertendo
lágrimas de sangue é que entrarei nos jardins do Paraíso.
ZAINAB: Ah! pudesse eu morrer por ti, tu que és a luz destes meus
olhos em pranto! Só de ouvir este teu pranto, minha alma se desfaz. Tuas palavras exalam
o acre perfume das separações. O sangue jorra de meu coração, ao te ouvir falar assim.
Por 'Ali, o amigo de Deus, meu ilustre pai! Que tua benéfica sombra possa sempre
estender-se sobre minha cabeça.
HUSSAIN: Chegou, ó minha irmã, o momento que me foi reservado pelo
destino, é a hora de partir. Saudarei nossa mãe por ti. Devo confessar minha fé,
tombando sob os golpes desses traidores. Pela tua alma, não deixes de cuidar de Sukaina.
E se - Deus não o permita - um tirano estender a mão contra minha pobre criança,
perderei toda a paciência e queixar-me-ei, amargamente, a meu avô e a meu pai que vou
encontrar no Paraíso.
ZAINAB: Não fales assim, não fales assim, tu por quem eu daria a
minha vida. Deus há de impedir isso! O Céu não permitirá uma tal injustiça para com a
família do Profeta. Mas, se tu perdes a vida, só restará a Zainab morrer, já que sua
mãe a pôs no mundo só para sofrer e chorar.
SUKAINA: Pai querido, uma gota d'água, pelo amor de Deus! Meu
coração, este pobre passarinho, jaz exaurido em meu peito. Trata de me encontrar, pai
querido, uma gota d'água, pois minha alma, atormentada pela sede, está em meus lábios,
a ponto de voar. Vê em que estado se encontra tua filha; tua criança está extenuada.
Há algo que eu desejo tanto, mas não sei onde encontrar remédio para meu mal.
HUSSAIN: Filhinha, tua dor é imensa, e tens já o que lamentar diante
do destino! Que não faria eu pelo amor de teus olhinhos em pranto? Que não faria eu por
ti e pelo teu pobre coraçãozinho? Levanta-te e cessa esses gemidos que avivam, ainda
mais, a ferida de meu coração. Disseste que há algo que desejas; por que não pedes a
teu pai?
SUKAINA: O que eu desejo é um pouco de água. Paizinho querido, acha
para mim, acha para mim. Paizinho, meu coração queima de sede, dá-me água: é uma boa
ação que Deus recompensará.
HUSSAIN (a Zainab): Minha pobre irmã, vá e traz-me as armas. É hora
de me preparar para o combate contra os rebeldes. Talvez, quando eu estiver lá em cima,
junto às fontes celestes, poderei lançar um pouco de água sobre o fogo que devora estas
criancinhas.
ZAINAB: Ó, meu querido e infeliz irmão! Como, sem ti, encontrarei
forças para suportar a vida! Que será de tuas irmãs, dize-me. Sem ti, não posso viver
neste mundo. Ó rei, não parte para esse campo de batalha. Como temo que sejas
martirizado por nossos inimigos!
HUSSAIN: Ó minha pobre irmã! Por quanto tempo ainda, pelo teu amor
por mim, terei teus conselhos? Bem sei que este exército de traidores não me deixará
escapar. Tu, partirás em cativeiro. Terás de partir em luto por mim. Chega a hora de me
veres sucumbir ao punhal. De longe, gritarás: "Hussain, Hussain!" e eu, tudo
que poderei fazer, será levar para o túmulo, teus lamentos. E então, tomarás conta de
Sukaina; defendê-la-ás contra a adversidade. Não permitas que dela se apodere o
desespero. Que ninguém moleste esta criança!
ZAINAB: Ó meu Deus! Será minha mão decepada e a alma de Zainab
arrancada a seu corpo! E vós, da casa do Profeta, formai um círculo para proteger a
chama da família de 'Ali. E agora, recebe, ó irmão, que és para mim mais precioso do
que o sangue de meu coração, recebe de minhas mãos, tuas armas.
HUSSAIN: Ó 'Ali, protege-nos, Ó 'Ali, sê fiel a tua promessa. Ó
'Ali! Tua família, ó 'Ali, está indefesa, abandonada ao inimigo, entregue às piores
angústias!
ZAINAB: Ó pai, ó Leão invencível, vem! Herdeiro do sopro miraculoso
do Profeta, vem! Nossa situação é atroz. Se é para te apiedares de nós, esta é a
grande hora!
HUSSAIN (dirigindo-se a sua gente): Ó infelizes, não vos desfaçais
em pranto! Eis que vou a cavalo encontrar esses traidores. Pedir-lhes-ei, ó minha irmã,
um gole d'água para minha pequena Sukaina, que tanto sofre. (Dirigindo-se à gente de Ibn
Saad:) Ó miseráveis, inescrupulosos, chamai Ibn Saad à minha presença e que venha só!
UM SOLDADO DO EXÉRCITO ÁRABE (a Ibn Saad): Saiba, ó Ibn Saad, que
Hussain está no campo de batalha, só; e deseja falar-te.
IBN SAAD: Salve, ó luz dos olhos de Fátima! Possa eu te servir, ó
ornamento do trono de Deus! Que desejas? Estou às tuas ordens, pronto para cumprir
exatamente a tua vontade!
HUSSAIN: Vê, traidor maldito! Eis que toda a família de Fátima é
devorada pela sede, e eu, Hussain, que o Profeta gostava de carregar sobre seus ombros,
vejo-me reduzido a beber em vez de água, o sangue que corre de meus olhos. Neste país
miserável, há água em abundância para os animais selvagens e para os pássaros; mas as
mulheres de minha casa morrem de sede. E toda a água do mundo tinha sido dada como dote
para minha mãe 15. Por que devemos ser privados da herança de Fátima? Dá, pois, um
pouco d'água à família do Profeta; pois seu coração está em chamas e seus lábios
estão ressecados.
IBN SAAD: Ó lua nova do céu da nobreza! Hoje a água está
formalmente interditada para ti. Yazid acaba de me enviar ordens de não dar de beber, nem
de comer, aos filhos de Mustafa. É, portanto, impossível dar-te sequer uma gota. E,
além do mais, devo deixar tua santa presença.
HUSSAIN (pedindo socorro): Ó Céu, teus golpes...! Não te abala, como
a mim, ouvir as lamentações destes pobres exilados e destas criancinhas? Deverias ter
vergonha das lágrimas que fazes Fátima derramar. Tem pena, então, dos infelizes
órfãos de Fátima! Em tua injustiça 16, deixaste-os sem ajuda e sem sustento. E eu, eu
me encontro só e desamparado nesta planície, repleta de emboscadas. Encontro-me só ante
um exército de inimigos. Acaso não haverá, no mundo dos homens e dos Djinns,
alguém temente a Deus, capaz de vir em meu socorro? Certamente, meu avô dar-lhe-á uma
bela recompensa no dia do Juízo.
ZAAFAR 17: Salve, ó estrangeiro, atormentado pela sede nas planícies
de Kerbela! Salve, ó prisioneiro do exército de perdição! Em que estado te encontro
eu! O quê! Teus olhos, marejados de lágrimas? Deus não criou os homens e os Djinns
para vos servir? Por que teus amigos foram martirizados por esses tiranos? Por que teu
exército foi desbaratado? Por que os corpos de teus irmãos palpitam em seu próprio
sangue?
HUSSAIN: Quem és tu, que nos saúdas, abandonados que estamos por
todos? Por que honras a família de Muhammad, o Eleito? Bem se pode ver que não fazes
parte desta corja. O perfume da fidelidade emana de teus cabelos.
ZAAFAR: Possa eu te servir de resgate, ó príncipe do reino da
infelicidade! Sou teu servo. Pertenço ao povo dos Djinns do poço de Elem. Quando
teu nobre pai arrancou nosso país às mãos dos inimigos, pôs-me à frente do exército
dos Djinns e, desde então, estamos inteiramente submetidos a sua vontade. Ora, os Djinns
acabam de me informar sobre teu infortúnio e vim em teu socorro. Que minha cabeça te
sirva de resgate! Todo o exército dos Djinns, ó rei, está sob as minhas ordens.
Estão todos os Djinns aí na planície. Venho em teu socorro e decidi
sacrificar-me por tua causa. Permite, pois, que eu parta para a guerra santa e que minha
cabeça seja teu resgate! Permite que eu realize o desejo de meu coração.
HUSSAIN: Sê bem-vindo, belo Zaafar! És verdadeiramente um amigo da
família do Profeta, mas não podes, ó bem-aventurado, tomar parte nesta luta, pois vós,
os Djinns, sois invisíveis aos olhos dos homens. Se lutásseis com eles, não
seríeis vistos por estes traidores. Seria um combate desleal e os que morrem pelo Amigo,
não devem recorrer a tais estratagemas.
ZAAFAR: Ó rei dos Djinns e dos homens, não estás com excesso
de escrúpulo, em se tratando de infiéis como estes? Tu és um estrangeiro neste país,
não tens ninguém que te socorra e estes mandriões estão obstinadamente determinados a
te matar. Muito bem! Para te agradar, revestir-nos-emos de forma humana e, assim,
poderemos nos sacrificar por ti, ó príncipe, e combateremos até o martírio, a fim de
que no dia do Juízo, teu avô perdoe nossas faltas 18.
HUSSAIN: O Deus dos dois Mundos, ó Zaafar, está contente convosco;
já que acudistes a meu apelo, Ele vos ajudará. Deus te dê a recompensa que mereces: que
no dia da Ressurreição, o fogo do Inferno não te atinja. Quanto a mim, meu coração
está já farto das agitações deste mundo; minha vida chegou a seu termo. Retornai agora
a vosso país e deixai que eu adentre o caminho que me conduz ao Amigo.
ZAAFAR: Ó Deus, sê testemunha de que eu vim aqui para tomar parte na
guerra santa, mas que o Imam deste mundo não me concedeu a permissão que lhe pedi. (A
Hussain:) Ó rei, possa eu te rever um dia! Agora, porque assim o queres, eu parto. Deus
te guarde! (Aos Djinns:) Ó Djinns, chorai por Hussain, o perseguido,
afastado que está de seu avô e de seu pai, nesta planície, onde grassa o ódio.
Tínhamos vindo aqui com o desejo de ajudá-lo, mas nossa esperança foi frustrada. É
preciso partir, sem nada ter podido fazer.
HUSSAIN (em oração): Ó Deus poderoso e misericordioso, Senhor das
graças, vê a que estado estou reduzido, agora que o inimigo me cerca por todos os lados.
Considera, ó Deus único e misericordioso, que, em Kerbela, cumpri, com toda a lealdade,
meus compromissos. Por misericórdia, ó juiz supremo, sê tu também fiel à tua
promessa, no dia do Juízo. Ó Criador, Senhor benevolente, pelo preço de meu sangue,
perdoa o povo de meu avô, no dia da Ressurreição.
SHAMR: Ó Hussain, que vens fazer nesta planície? Acaso queres morrer,
ó filho querido dos dois Mundos? Segue o meu conselho: renuncia à tua luta, reconhece a
autoridade de Yazid e, assim, poderás tranqüilamente dirigir-te à província que bem te
aprouver. Se, pelo contrário, recusares a submeter-te, ó senhor, acomete a batalha,
dirige-te ao combate.
HUSSAIN: Dize-me, Shamr, como o neto de Muhammad, o eleito, poderia
prestar juramento de obediência a um infiel maldito? Não, não me peças para reconhecer
a autoridade de Yazid. Só peço, ó celerado, que me dês um pouco de tempo para que eu
possa despedir-me das pessoas da Casa da Pureza. E, então, irei encontrar-te no campo de
batalha, expondo minha cabeça e minha alma por amor dAquele a quem amo.
SHAMR: Assim seja! Vai, ó luz dos olhos dos homens e dos Djinns;
despede-te de tua família e chorai bastante juntos, pois já não os tornarás a ver e
só vos reencontrareis no dia do Juízo.
HUSSAIN: Adeus, adeus, adeus família de Ya-sin! 19. Adeus,
queridas mulheres de lábios abrasados pela sede, pálidas como a lua, astros que
resplandecem no zodíaco do luto! Chegou a hora em que, com os olhos rasos de lágrimas,
devo deixar-vos com o coração cheio de angústia. Ó infelizes, apegai-vos aos véus em
vossos gemidos, envolvei-vos com lenços em vosso pranto! Mas minha recomendação
suprema, ó Zainab, é a de cuidar de Sukaina.
ZAINAB: Ó, irmão querido, como Zainab gostaria de servir de resgate a
teus olhos em pranto! Que pretendes fazer? Oh, pudesse eu sofrer em teu lugar! Que
intenção abrigas, ó espírito de minha alma?
HUSSAIN: Vem, vem, ó imagem viva de minha mãe, tu que hás de cuidar
de meus órfãos. O dia da reunião passou e é chegada a noite da separação. O Céu
impõe a ti, a dor que causa a toda alma que ama: a dor da separação. Chegou o momento
de oferecer minha vida, ó irmã; aprontai o véu da dor e o lenço do pranto;
preparai-vos para partir em cativeiro, pois hoje é o dia em que tombarei no campo de
batalha e meu nome será inscrito no livro dos mártires.
ZAINAB: Pudesse eu servir de resgate a teus olhos, de onde emanam
pedras preciosas, ó tu, que estás imerso em aflições! Se - não o queira Deus! -
desaparecesses, o que seria de Zainab? Quando já não estiveres entre nós, com quem
iremos dividir nossas dores? Quando estivermos de luto por ti, quem cuidará de nós? Não
pode meu frágil corpo suportar tanto pesar. Para onde, ó pobres mulheres, havemos de ir
nesta planície, quando todos os homens da família estiverem mortos?
HUSSAIN: Ó minha irmã, exilada no deserto de Kerbela, és para nós,
abandonados por todos, a imagem viva de minha mãe. Todos de nossa família já partiram
precocemente para o Paraíso; e agora é a minha vez de confessar a fé. Ouve, pois, com
toda a alma, minhas últimas recomendações, tu, que tanto sofreste, ó minha
irrepreensível irmã. Que possa teu peito suportar a dor. Que as mulheres portem o véu
sobre a cabeça, pois ele é o guardião de sua castidade; que homem algum, alheio à
família, possa ver seu rosto. Não permita Deus que, após minha partida, sejam meus
órfãos feridos, sobretudo o ilustre Zein al Abedin, que está doente e que já se desfaz
em prantos por mim e está a arder de sede. Não deixe de velar por Sukaina; que ninguém
faça mal àquela que, com tanta alegria, estreitei em meu peito.
ZAINAB: Possa eu servir-te de resgate, ó meu irmão. Por Deus, não
vás ao encontro desses desavergonhados de Kufa! Fica! Já não caíram, com a cabeça
partida, Kassim, Abbas e Ali Akbar sobre a planície de Kerbela? Não os viste tombados no
campo da carnificina? Não estreitaste em teu peito, o corpo dos mártires? Não tenho
forças, Deus é testemunha, para suportar o espetáculo de teu cadáver estendido sobre a
planície.
HUSSAIN: Mas, acaso não prometi ao Criador que, por amor a meu Amigo,
daria a minha vida sem lamentações? Não assumi junto com meu avô, diante do Criador,
Senhor das graças, o compromisso de entregar minha vida em Kerbela e, desse modo,
tornar-me o Redentor de todos os culpados no dia do Juízo?
ZAINAB: Irmão querido, como - dize-me - poderia eu resignar-me com
isso? Queira Deus que nunca veja teu corpo tombar, coberto de sangue! Como poderia
suportar essa cena? Que irmã teria a coragem de ver o corpo de seu irmão banhado em
sangue?
HUSSAIN: Lembra-te de que eles assassinaram teu pai! Conseguiste
resignar-te com a morte de tua mãe! Não te desesperes, pois! Já não te conformaste com
a morte de Hassan? Não te desfaças, pois, em lágrimas, ante a idéia de que vou morrer
e pensa, após minha partida, em cuidar destes órfãos.
ZAINAB: Ó irmão querido, quando partiu meu pai, Hassan tomou seu
lugar à frente da família. Quando Hassan se foi, tu tomaste o lugar dele. Mas, depois de
ti, irmão amado, quem nos protegerá? Que farei? A quem recorrer?
HUSSAIN: Ó minha irmã, como és infeliz! Quando me tiverem tirado a
vida, a misericórdia divina estenderá sobre ti, o manto da proteção. O ilustre Zein al
Abedin será teu protetor. Ó imagem viva de Fátima, deixa-me ir e lembra-te que de tua
vida depende a vida de Sukaina, minha filha.
ZAINAB: Ó rei sem exército, abandonado por todos, teus suspiros são
como chamas que me queimam a alma e teus gemidos fazem-me perder a razão. Vê os corpos
puros de Kassim e de Akbar, desfeitos em mil pedaços; vê as lamentações das crianças
que se elevam da terra à abóbada azul. Ó Deus, trago a alma sobre meus lábios, prestes
a abandonar-me. Ouve o apelo que te dirijo do fundo de minha desgraça!
HUSSAIN: Pobre irmã! Levanta a cabeça! Só de te ver assim, meus
olhos vertem lágrimas de sangue. Levanta a cabeça! Ai! E isto é só o começo de tuas
provações. É o primeiro sofrer de tua primeira dor. Não deverás partir em cativeiro?
Não serás arrebatada pelo exército do ódio? Não te arrastarão a Damasco onde, com a
cabeça descoberta, serás confundida com a multidão?
ZAINAB: Filho amado de Fátima! Hussain, meu querido irmão! Pudesse eu
ser sacrificada em teu lugar! Não creias, ó príncipe, que eu possa continuar a viver.
Não cessarei de golpear-me a cabeça e o peito sobre teu corpo. Deus é testemunha de que
chorarei tanto, que o espetáculo de minha dor arrancará lágrimas até das estrelas e
dos planetas.
HUSSAIN: Chora e geme, pobre irmã. Sei o quanto sofres. Mas como
poderia eu escapar a estes infiéis? São tão cruéis que empenhar-se-ão em acabar
comigo, enquanto a alma animar-lhes o corpo.
KULSUM: Ó irmão, que Kulsum ama como sua própria vida! Não mais
verei o róseo de tua face? Teus gemidos abrasam-me o coração. Teus suspiros devastam
minha alma como um fogo devorador. Não basta termos pranteado Abbas, Kassim e Akbar? Não
é o bastante para chorar até o fim de nossos dias? Não vás te expor aos golpes destes
homens de coração duro, pois bem sei que sucumbirás.
HUSSAIN: Ó minha pobre irmã Kulsum, que o destino tratou tão
duramente, que resposta devo dar-te, ai! Quando eles tiverem me martirizado, que
humilhações estes malvados infligirão à família do Profeta? Terás de mendigar o
pão, de porta em porta e errar, com a cabeça descoberta, pelas cidades. Mas não
desfigures teu rosto, ó irmã querida. Tem coragem e sê paciente.
SHEHRBANU: Ó tu, imagem viva do leão de Deus! 20 , seja eu teu
resgate! Hussain, tu, cujo fígado está ressequido pela sede! Ó luz dos olhos de
Fátima! Sou eu, tua serva, a infeliz Shehrbanu. Arrancada de meu país natal, abandonada
por todos, sem ter ninguém para me defender a não ser tu! Ai, que fazer nesta terra de
perdição, cercada que estou pelo exército dos infiéis, ó rei dos homens piedosos.
HUSSAIN: Aproxima-te, pobre Shehrbanu, aproxima-te ó minha infeliz
companheira! Meu coração arde, quando penso em teu desamparo! Tem paciência e não
gemas assim, pois dia virá em que o Deus do Universo te compensará amplamente por tuas
dores.
SHEHRBANU: Ó príncipe sem exército, flor cultivada nos jardins de
'Ali, o amigo de Deus, o vitorioso! Lembra-te de que tua família faz parte da tribo do
Profeta; são todos netos do enviado de Deus e nenhum desses tiranos terá a audácia de
maltratá-los. Quanto a mim, uma estrangeira, só tenho a temer, ó rei dos homens
piedosos!
HUSSAIN: Minha fiel amiga, companheira da minha juventude, como és
infeliz! Ai, eu devo tombar despojado de armas sobre a planície e meu corpo abatido
tingir-se-á de vermelho como uma rosa. Meu corcel, privado de seu cavaleiro, manchará
seu corpo com sangue; derramará lágrimas pela injustiça do destino e relinchará em
sinal de luto. Retornará ao acampamento e deter-se-á ante a tenda. E então, minha fiel
amiga, monta-o e mete-lhe a rédea ao pescoço. Irás para onde Deus o leve e, assim,
escaparás à miséria e ao cativeiro.