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Os Transcendentais e sua Negação -
O Belo e o Bom / O Mal e o Feio

 

Mario Bruno Sproviero

 

 

1. Introdução

     Em artigo anterior (1) de caráter introdutório tratamos dos transcendentais e de suas negações, chamando a atenção para a necessidade de um tratamento específico das inter-relações. Neste estudo retomamos a questão e enfocamos o tema do belo e do feio e estabelecemos comparações entre o belo e bom; o feio e o mal (tal como no artigo anterior contemplávamos a verdade em relação ao bem e principalmente o erro em relação ao mal).

 

2. A Beleza

     Há um diferença entre o belo e os outros transcendentais (a saber: o ser, a coisa, o alguma coisa, o real, o uno, o verdadeiro e o bem), ou seja, o belo, na própria tradição escolástica e neo-escolástica é questionável quanto à sua transcendentalidade.

     Havíamos considerado que a beleza, para ser transcendental, não pode ser reduzida à beleza física mas teríamos: beleza sensível, espiritual e sensível-espiritual (esta seria a propriamente humana a que é o resplendor do inteligível no sensível). Assim, não poderíamos dizer que se uma mulher é feia (sensivelmente) então é má (moralmente), mas que, se for má moralmente certamente será feia moralmente (por dentro).

     Ora, o belo distingue-se do bem e do verdadeiro por referir-se fundamentalmente ao sentimento, enquanto o bem aponta para a vontade e o verdadeiro para o intelecto. Na tradição filosófica ocidental confere-se espiritualidade (isto é, abertura para a totalidade do real) às potências da inteligência e da vontade. E o sentimento? Terá ele também um valor tão universal? Acaso será a beleza tão somente subjetiva?

     Negam a transcendentalidade do belo aqueles, como Caspar Nink (2), que consideram a beleza como a perfeição do ser: destarte só o ser perfeito seria belo. Eis como argumenta: "Nem todo objeto porém é belo, mas apenas aquele objeto acabado em sua espécie. A beleza - ao contrário da unidade, da verdade (Sinnerfülltheit) e da bondade - não é, então, um transcendental ou um atributo que pertença essencial e necessariamente a todo o ser, mas uma perfeição do ser que denota mais do que a unidade, a verdade e a bondade (Vollkommenheit) pertencentes a todo ser. Em que consiste este plus em perfeição? Cada ente não tem apenas a interna ordenação essencial para a existência, mas cada ente contingente simultaneamente propende para um possível desenvolvimento em direção à arquetípica plenitude de si mesmo (já Deus é por sua essência absolutamente perfeito). Quando um ser é perfeito em correspondência com seu ideal, é belo". (3)

     Ante a objeção de que a beleza - tal como outros transcendentais - pode comportar graus de participação; Nink responderia que, em sua concepção, beleza é somente a perfeição do ideal.

     Esta problemática também se encontra em Kant (1724-1804), que procura distinguir completamente a perfeição da beleza (4), mas não deixa de propor um conceito de beleza que inclui o de perfeição. Assim considera dois tipos de beleza: "Há duas espécies de beleza: a beleza livre (pulchritudo vaga) e a beleza simplesmente aderente (pulchritudo adhaerens). A primeira não pressupõe nenhum conceito e o que deva ser o objeto; a segunda pressupõe um conceito e a perfeição do objeto" (5).

     Temos assim duas posições contrárias, apesar de que em nenhuma delas é excluído totalmente o conceito de perfeição.

     Na posição de Kant a contemplação estética é não-teorética e não-prática, mas de certo modo coloca-se no meio: o juízo estético não é conhecimento, mesmo sendo exercido pelas faculdades cognitivas é um conhecer sem conhecimento e não é moral, embora finalístico e é não-prático no sentido de ser desinteressado. O intelecto, no entanto, participa do juízo estético, enquanto joga livremente com a imaginação; o interesse também está ligado ao juízo estético por um nexo necessário ainda que indireto entre o belo e o interesse moral.

     Além disso, o objeto do juízo estético é o belo sem conceito e independente da vontade, mesmo assim, há um tipo de beleza que inclui o conceito, precisamente a citada beleza aderente, bem como há um objeto dos juízos estéticos que inclui a moralidade, constituído pelo sentimento moral, ou seja, o sublime. (6)

     Kant trouxe uma grande contribuição à estética; no entanto, certas posições deveriam ser separadas, como ponderou Goethe, de sua teoria do conhecimento: assim esta separação total, pelo menos no caso da beleza livre, entre o belo e o conhecimento, não é aceitável, pois está comprometida com sua radical distinção entre intuição (apenas sensível em Kant) e conceito: a intuição é cega sem o conceito, o conceito é vazio sem a intuição.

     Essa distinção baseava-se em Baumgarten (1714 – 1762) que havia feito da estética uma disciplina filosófica independente. Esta seria a scientia cognitionis sensitivae, paralelamente à Lógica, ciência do conhecimento intelectual, ambas totalmente separadas.

     Em S. Tomás, (I,5,4 ad 1), reequilibra-se o equacionamento do tema: o belo refere-se à faculdade cognoscitiva; o bem, ao apetite. Em certo sentido, o belo é um tipo especial de bem ao mesmo tempo que é um tipo especial de conhecimento. É resplendor da verdade que convoca também o amor da vontade; é resplendor do bem que se impõe como verdade ao intelecto...

 

3. O Belo e o Bem (7)

     No bem, conhecimento é condição do apetite, e portanto, indiretamente, é condição do prazer que se segue à posse do objeto; no belo, o conhecimento é a causa subjetiva direta do prazer.

     Não há desejo sem conhecimento, mas este não agrada por si, só agrada quando, uma vez conhecido e desejado, é alcançado e possuído. No belo é o próprio conhecimento que causa o prazer. O conhecimento é causa subjetiva do prazer por supor uma perfeição intrínseca cujo conhecimento agrada; mas é causa direta do prazer, porque a satisfação resulta da própria intuição e conhecimento, no dizer do poeta a beleza é perene alegria : "A thing of beauty is a joy forever" (Keats).

     Assim, o conhecimento agrada enquanto conhecimento e não como condição de consumo de posse (Shakespeare descreve o embrutecimento como um dos efeitos deletérios da luxúria que, aliás, embota para a beleza sensível um segundo depois a ânsia torna-se nojo e ódio (8): "Past reason hunted / and no sooner had / past reason hated).

     Claro que o belo e o bom encontram-se no mesmo objeto, naturalmente sub rationes diversas. Temos uma interessante ilustração no próprio Shakespeare. Julieta, quando foi vista pela primeira vez por Romeu, despertou nele um sentimento estético e, só depois, o de posse (o amor entre ambos não foi platônico). Julieta era tão bela que sua beleza ofuscava o sentimento de posse: "Beauty too rich for use, for earth too dear!" (Ato I cena V) (9).

     Sendo o prazer do belo mais desinteressado do que o do bem, isto levou muitos autores como o poeta e filósofo Schiller (1759 - 1805) a fazer da estética a mola educadora do gênero humano. Veremos que isto deve ser entendido cum grano salis.

 

4. O Belo ontológico e o Belo artístico

     Considerando que uma coisa é bela não porque seu conhecimento agrade, mas que agrada porque é bela, a pergunta é pelo quid mediante o qual ela agrada, que é o que a faz bela e me atrai. O belo ontológico funda-se na perfeição intrínseca do ser. Para Aristóteles, "as formas principais do belo são a ordem, a simetria, a limitação (como oposto do indefinido, do apeiron)" (Met. XIII, 3); os neoplatônicos acrescentaram o esplendor. São Tomás (I, 39, 8), aponta três características: "Para haver beleza são requeridas três condições: primeiro, a integridade ou perfeição: o inacabado é, por este próprio fato, feio; segundo, a devida proporção ou harmonia; e por último a claridade (claritas): daí que o que tem cor nítida chama-se belo."

     A beleza das coisas sensíveis provém de que estas não são apenas superfícies opacas mas também símbolos e revelações naturais de seu último fundamento e finalidade: a verdade e a beleza de Deus resplandece nas suas criaturas; Deus é seu exemplar, seu fundamento e finalidade últimos. Deus como perfeição absoluta é a beleza por excelência, mas imprime esta beleza a todas as criaturas que dela participam, ainda que sua beleza deva sempre medir-se em relação a seu fim: quanto mais se apartam deste fim... Assim, diz S. Tomás, em De veritate, 92, 1, ad 6: "As coisas imprimem na nossa alma as suas semelhanças; no conhecimento de Deus porém ocorre o contrário, porque é de seu intelecto que promana aquilo que se encontra em todas as criaturas. Portanto, como em nós a ciência é o sinete impresso nas coisas da nossa alma, assim de modo inverso as formas só são um certo sinete da ciência divina impressa nas coisas".

     O belo é portanto o atraente resplendor do ente uno e verdadeiro, que encanta por seu conhecimento — conhecimento principalmente imediato, podendo contudo também ser discursivo, mas claro e expresso, contemplável sem esforço. Este conhecimento é então esplendor, clara inteligibilidade, do ente íntegro, proporcionado e que tende à perfeição; conhecimento fluente, agradável, luminoso...

     O belo artístico pressupõe o belo ontológico; mas acrescenta-lhe um aspecto fundamental: a expressividade, ou seja, a capacidade de expressão. Não deixa de ser uma realização do homem o expressar-se. Podemos aqui, de passagem, mencionar o grande pensador da tradição extremo-oriental, Confúcio (551 - 479 a.C.), que deu à expressividade um valor educativo básico. Para ele, era muito importante cuidar das ações externas para que o interno fosse convenientemente expresso. Daí o valor que atribuía à Literatura, entendida em sentido muito mais amplo do que o nosso, como arte da expressão total e adequada. Muitos poetas, entre os maiores qual Píndaro (ca. 550 - ca. 446 a.C.) e Goethe (1749 - 1832 d. C) revelaram que o homem deverá ser aquilo que sempre foi, isto é, ser na expressão o que é no interno, ser no final aquele permanente pensamento de Deus: cumprir seu projeto eterno.

     No artista (que deveria ser cada homem...) deve haver "um sentimento iluminado por uma idéia tão depurada quanto possível de emoções com reflexos psico-físicos e uma capacidade expressiva e comunicativa apta a poder transfundir o sentimento na obra. Há obra de arte, artisticamente bela, exatamente na medida em que é capaz de suscitar em outrem, através do puro conhecimento, aquele mesmo sentimento lírico" (10) Este não é o sentimento enquanto puramente subjetivo mas enquanto objetivado, como claramente o colocou o filósofo e esteta Benedetto Croce (1866 - 1952). O sentimento, tão desvalorizado em certa tradição filosófica intelectualista, é justamente a vida propulsora de toda a arte. (11) Os sentimentos são a inspiração: artista sem sentimento é sepulcro caiado. Claro que o sentimento estético, o sentimento artístico não é qualquer sentir psicológico — aliás, a gama dos sentimentos é um contínuo de uma complexidade e sutileza insuspeita aos que querem separar o intelecto da paixão e do amor, atitude patentemente não-cristã. Carosi nos dá um exemplo clarificador do sentimento lírico. Refere que em 1843, Victor Hugo (1802 - 1865), quando soube da morte trágica da filha de dezenove anos, Léopoldine, experimentou o mais vivo sentimento de dor, com tal perturbação que certamente o impedia de compor poesias. Decorridos muitos anos, aplacada a perturbação psicológica das emoções, surgiu um sentimento "lírico" e inspirou-lhe as partes mais belas, ou antes, as únicas partes verdadeiramente sentidas e comoventes de "Les contemplations" (1856).

 

5. A transcendentalidade do belo

 

     Em parte retomamos o que já estabelecemos no artigo precedente (p. 27).

     No já citado texto (I, 95, a 4, ad 1), S. Tomás diz essencialmente que o belo e o bem são o mesmo na realidade e diferem segundo a noção, o que situa o belo entre os transcendentais. Jacques Maritain (1882 - 1973) defende que o belo é o esplendor de todos os transcendentais reunidos; e com razão, pois o belo mais do que uma determinada qualidade é a harmonia de todas as qualidades: uma bela voz num corpo feio destaca a diferença mais do que uma voz feia num corpo feio.

     Que "ens et pulchrum convertuntur" resulta de que todo ente deve ter, enquanto ente, um mínimo de beleza, já que tem a sua integridade essencial, pois possui todos os componentes necessários para ser o que é, do contrário não seria — não se dá nunca suficientemente ao ser seu transcendental valor. Tais componentes estão em ordem, formando uma unidade, pois todo ente é uno. Assim cada ente participa de um mínimo de ordem e inteligibilidade que se manifestam, ainda que minimamente, com clareza. Estas condições independem do conhecimento humano que poderá captá-las, de acordo com seu estado e movimento, mais ou menos.

 

6. A negação do belo e do bom e sua convergência.

     O mal sendo privação num ente de uma perfeição devida, sendo destruição de algo que é, não é algo positivo, já que o positivo é uma perfeição ontológica do ser, um valor (12) e portanto um bem. O mal não é pura negação, o puro nada não é nenhum bem nem mal, nada é: o mal é falta daquilo que poderia e deveria ser. O mal existe num bem, se destruir completamente o bem, deixa de ser. O mal não é desejado enquanto mal, é desejado enquanto um falso bem; é desejado indiretamente enquanto se segue ao falso bem desejado.

     Paralelamente, está o feio para o belo. O feio é privação de perfeição, pela qual o próprio conhecimento é desagradável. O feio apóia-se no belo, como o mal no bem, não pode assim haver o feio absoluto a exemplo do mal: o não ser não é belo nem feio, não é. Assim, quando se diz que o ente finito é bom e belo, não se diz que o é totalmente, mas que tem beleza e bondade.

     Com isso, são o feio e o mal convertíveis.

     Ora, há uma confusão cultural e assentada entre o belo ontológico e o belo artístico. (13) Antes da idade moderna, a preocupação do artista era a representação de homems, mulheres e objetos belos e muitas vezes tais representações careciam de vida e perfeição o chamado "academismo". A modernidade freqüentemente acentua a representação bela do patológico, do vício, da fealdade e paroxisticamente as representações transvestem-se de vida e perfeição.

     Nesta confusão, temos uma inversão do ideal da arte como educadora da humanidade. O belo e a virtude mal representados quanto estrago aos valores religiosos fazem as representações kitsch! a virtude ridicularizada, os vícios apresentados como belos e bons etc, são fontes de grande corrupção cultural e moral. Note-se que os sete vícios capitais têm na literatura, no teatro, no cinema e na televisão um tratamento ligeiro e benévolo. A gula, por exemplo, a vontade impotente de querer devorar o mundo é representada em quadros que a incentivam e valorizam sobremodo. Bem diferente de sua imagem real: a de quem abdica culposamente de sua humanidade, brutalizando-se, vivendo como animal depravado. Tal como encontramos no famoso verso de Dante (1265 - 1321), (Inf. XXI, 139), que deve ser recitado não tragicomicamente mas cômico-tragicamente: "ed elli avea del cul fatto trombeta".

     O falso, o mal, o feio convergem, mas como estão inviscerados no verdadeiro, no bem e no belo, necessitam e alimentam-se destes e procuram fazer-se passar por estes: é o cerne da sedução: o vício e o feio artístico belamente representados. Assim a morte mostra-se bela e o homem ama a morte.

     Vivemos numa cultura da morte e toda a representação está a favor e a serviço dela.

 

7. Conclusão

     A finalidade destes dois artigos foi mostrar, ainda que esquematicamente, a importância do estudo dos transcendentais, de sua negação, de seu paralelismo e de suas implicações existenciais.


 

1- Cf. M. B. Sproviero - "A Negação dos Transcendentais; o Erro e o Mal". In Mirandum, Ano II nº 4 (Suplemento), Jan- Abr 98, pp. 21-34.

2- Caspar Nink S.J. Ontologie. Verlag Herder, Freiburg, 1952.

3- Op. cit. p. 347

4- Immanuel Kant, Kritik der Urteilskraft. Erstes Buch 15. Das Geschmacksurteil ist von dem Begriff der Vollkommenheit gänzlich unabhängig.

5- Op. cit. 16. Das Geschmacksurteil, wodurch ein Gegenstand unter der Bedingung eines bestimmten Begriffs für schön erklärt wird, ist nicht rein. Utilizo a edição: Kant Werke. Fünfter Band. Im Insel - Verlag, Wiesbaden, 1957.

6- Cf. Luigi Pareyson – L’Estetica di Kant, U. Mursia, Milão, 1968. P. 59

7- Cf. Paolo Carosi - Curso de filosofia: vol II. Edições Paulinas, S. Paulo, 1963. ps 63 - 69.

8- Em II Sam 13, 15a, lê-se: "Então Amnon irou-se sobremaneira - a aversão que lhe teve foi maior do que o amor com que a tinha amado".

9- Em sentido contrário, o da banalização e coisificação do sexo, são sintomáticas as expressões populares: "boa" (no sentido de "boazuda") e "comer".

10- op. cit. ps 65 - 66.

11- Naturalmente, o tema do sentimento, infinitamente complexo, mereceria um tratamento extenso e detalhado.

12- Com "valor" quer-se indicar tanto a realidade enquanto participável ao intelecto e à vontade os valores reais -; ou também enquanto idéias realizáveis. Valores enquanto puramente idéias, o que se constitui num paradoxo para a mentalidade moderna, não têm em si qualquer valor. Na corrente idealista de Heinrich Rickert (1863 - 1936), os valores são universalmente o irreal. Nesta direção, o idealista Bruno Bauch (1877 - 1936) escreveu: "ein Wert, welcher er auch immer sei, kann als Wert nie wirklich sein" (Wahrheit, Wert und Wirklichkeit, 1923, p. 468), ou seja "um valor qualquer que seja, não pode enquanto valor ser real".

13- Passamos aqui por alto da interessante questão sobre a relação entre o belo ontológico e o artístico, em que Hegel (1770 - 1831) defende, em sua Ästhetik, a superioridade do belo artístico, tese brilhante, infelizmente ligada a seu racionalismo panteísta e antropólatra.