Dom Quixote é um dos personagens da
literatura universal que maior interesse desperta, hoje, entre os autores árabes; dentre
outras razões, como bem aponta o professor Martínez Montávez, "porque se trata de
um símbolo que se ajusta às circunstâncias vividas pelo mundo árabe
contemporâneo"(1). Para Hani al-Rahib, escritor sírio
fortemente comprometido com a problemática do mundo árabe atual, Dom Quixote é o
símbolo ideal para expressar, tanto seus sentimentos, como suas propostas de solução
para os graves conflitos que agitam a área geográfica em que esse mundo está imerso.
Hani al-Rahib nasceu em Latakia em 1939 e
conquistou enorme prestígio em diferentes campos da literatura árabe (conto, romance,
jornalismo e, especialmente, ensaio). Pertence a uma geração que se formou
literariamente durante o período de maior influência do existencialismo europeu na
Síria. Essa corrente surge na região nos anos cinqüenta e aderem a ela, com entusiasmo,
um extenso grupo de intelectuais procedentes da pequena e da média burguesia(2).
O engajamento nacionalista (pan-arábico ou local) assim como o realismo (fotográfico ou
social), que caracterizam o conto sírio desde seus começos nos anos quarenta, não
ficaram à margem da corrente existencialista, apesar da tendência dos autores dessa
corrente a tratar, sob o prisma de um exagerado individualismo, elevadas questões
metafísicas muito afastadas da problemática social, objetivo tradicional dos autores
realistas. Cedo, porém, um grupo de existencialistas de "esquerda" - entre eles
o próprio Hani al-Rahib -, que, no fim dos anos sessenta, se encontrava nessa fase
individualista, derivou para posições cada vez mais coletivistas de nítida influência
marxista.
As primeiras publicações de Hani al-Rahib(3)
expressam sua angústia existencial, valendo-se de um complicado sistema de símbolos que
caracterizarão toda a sua obra posterior e recorrendo à abstração para velar, em
parte, a forte carga de crítica política, principal motivo do autor em seus escritos.
Trata-se de um narrador, para quem o realismo cerceia a liberdade de expressão, porque
fragmenta a realidade e impede uma visão de conjunto. Daí que afirme: "As
literaturas modernas, especialmente as européias, sentiram-se impelidas a utilizar uma
forma narrativa que possui uma maior capacidade de expressão, impede os maneirismos e
permite aprofundar o conteúdo. Refiro-me ao Simbolismo, que é capaz de articular, por
meio de metáforas, sonhos ou alusões, as diversas partes da narrativa, obtendo uma
hipótese de realidade no que não é real"(4).
Hani al-Rahib, que é, sem dúvida, um dos
autores mais conhecidos e também controvertidos(5) da literatura
síria contemporânea, é o porta-voz das preocupações e das esperanças de sua
geração, que já foi chamada de "geração do desencanto". Sua frustração
ecoa na fala de um de seus personagens: "Destruíram nossa fé e nem a cruz de Cristo
nem a mensagem de Muhammad voltarão a influenciar a alma humana. Nossa vida quotidiana
está marcada pelo selo da depravação e devemos livrar-nos deste selo, caso queiramos
dar sentido a nossas vidas"(6).
O mundo literário de Hani al-Rahib limita-se
quase exclusivamente aos círculos universitários de Damasco. Seus personagens favoritos,
conhecidos pelos leitores desde os primeiros trabalhos, contestam os valores, os costumes
e as tradições da sociedade. Estão unidos por suas opiniões e posturas políticas e
graças a essa união, não perdem completamente o contato com a realidade e livram-se do
desenraizamento total. Especialmente em seu segundo romance, Sharj fi tarikh tawil,
o autor analisa as difíceis circunstâncias com que se defronta a juventude intelectual
síria, por ele tachada de neurastênica, devido a sua ruptura com a sociedade, fato que,
para Hani al-Rahib, se reflete doentiamente em nível pessoal. A juventude descrita não
é contra o progresso, mas encontra-se enredada num caos do qual é incapaz de sair. São
jovens que sofrem, apesar de se encontrarem na plenitude de suas vidas, já que a
sociedade não lhes oferece condição alguma para a realização de seus sonhos; eles,
longe de se rebelarem buscam uma forma de evasão na bebida, no sexo ou jogam
intermináveis partidas de tric-trac no ambiente carregado dos cafés(7).
Hani al-Rahib provoca deliberadamente a
angústia de seus leitores com o desejo de despertar discussões capazes de sacudir sua
preguiça: "Somos um povo preguiçoso, cujas duas expressões prediletas são:
`amanhã' e `tanto faz!'. A preguiça é responsável por nossas derrotas... especialmente
no que se refere a nossos inimigos principais: o Imperialismo e o Sionismo"(8).
O protagonista do conto Dun Kishut(9)
corresponde ao tipo do jovem intelectual descrito no tópico anterior. Tal como seu
homônimo ocidental percorre os caminhos em sua montaria - neste caso uma bicicleta -,
acompanhado pelo seu fiel escudeiro, Yundub, que, embora não compreenda seus discursos,
admira-o cegamente:
"Hás de saber, Ummiya, - diz Yundub a
sua cética companheira que, ignorante como Teresa Panza, não consegue reconhecer a
genialidade desse homem a quem seu marido tanto admira - que Dom Quixote é genial. Sim,
genial. E quando entrar em ação, haverá grandes mudanças em nossas vidas".
A lança, no caso, é muito mais leve do que a
empunhada pelo manchego, pois consiste numa varinha metálica extensível que Dom Quixote
guarda cuidadosamente em sua maleta de executivo, mas dela se vale para fustigar os
gigantes que se postam em seu caminho: os moinhos de vento:
"Os moinhos de vento, Umayma - explica
Dom Quixote a sua amada - são para mim, um símbolo permanente. Representam as diferentes
etapas da luta que abraçamos neste mundo. Quando estão parados, acabam nossos problemas
mas, se se movem, que Deus nos acuda!".
As mulheres para Hani al-Rahib não têm outra
missão na vida que a de ser companheiras do homem, por isso em seu universo narrativo, a
ação, a opinião e a escolha estão sempre reservadas ao homem. A sobrevivência e o
sexo parecem ser, para Hani al-Rahib, as únicas questões que despertam o interesse das
mulheres e que elas compreendem, daí que seja natural que Umayma, incapaz de acompanhar o
raciocínio acima, proteste:
"Não te compreendo completamente. É de
supor que quando os moinhos param, pára também sua produção de farinha e que quando se
movem, temos farinha...".
Dom Quixote desiste: sua amada, incapaz de
transcender o plano material, jamais entenderá o simbolismo de seus elevados raciocínios
e para encerrar a conversa diz:
"É certo que não compreendeste. Falo de
moinhos de vento e tu, de moinhos".
Os moinhos de vento são, pois, para o herói
sírio, os gigantes da injustiça e com eles, cedo ou tarde, o homem terá que se
enfrentar. Para os árabes, diz o autor, são três os moinhos de vento que se interpõem
em seu caminho para o futuro: o imperialismo, o subdesenvolvimento e a
"balcanização".
Após derrotar com inteligente estratégia seu
companheiro Yundub numa complicada partida de "tric-trac", Dom Quixote toma a
palavra e sentencia em solene monólogo:
"Hás de saber, Yundub, que o
Imperialismo e o Subdesenvolvimento e a Balcanização são questões, para mim,
obsessivas. Às vezes, penso que para afrontá-las, deve haver procedimentos tão
evidentes como o pó que há sobre as cadeiras de nossas casas e que, vencer estes
problemas não deve ser mais difícil do que acabar com as moscas, os percevejos ou as
baratas, nem mais difícil do que varrer o lixo que se acumulou em nossas ruas. Nosso erro
principal e fatal consiste em ter acreditado na propaganda inimiga, aceitando ingenuamente
que essas três questões constituam uma só".
A solução está nas mãos dos árabes e Dom
Quixote, que a conhece, procura abrir-lhes os olhos com exemplos simples, ao alcance de
qualquer inteligência:
"Devemos considerar que para matar
percevejos há um produto específico; para matar moscas, há outro; outro ainda, para as
baratas. E seria absurdo borrifar estas criaturas com todos os produtos ao mesmo tempo,
porque nos afogaríamos antes que elas morressem".
É urgente entrar em ação e despertar o
espírito combativo dos que o escutam porque os graves problemas que afetam o mundo árabe
só podem ser solucionados pelos árabes:
"...demonstrando ao mundo inteiro que o
Imperialismo, o Subdesenvolvimento e a Balcanização não são mais do que simples
moinhos de vento, que podemos pôr em movimento ou deter, como bem entendermos".
Dom Quixote, o jovem intelectual sírio, está
satisfeito por "ter conseguido se expressar com eloqüência e concisão sobre
problemas tão complexos". Cumpriu seu compromisso para com a sociedade, que não é
senão o de valer-se de sua capacidade intelectual e do domínio da linguagem a seu
serviço: ensinando o povo a refletir sobre sua situação injusta e a rebelar-se contra
quem o oprime.
Dom Quixote atravessa de bicicleta as estepes
para combater finalmente os gigantes, mas, ao contrário de seu homônimo espanhol, não
vai acompanhado somente por seu fiel escudeiro. Uma massa de jovens, homens e mulheres -
estas, é oportuno destacar, como companheiras dos homens, na garupa das bicicletas -
seguem-no com fervor:
"As estradinhas rurais que levavam aos
moinhos de vento encontravam-se repletas de bicicletas que circulavam velozmente por um
terreno praticamente desprovido de vegetação".
Dom Quixote apóia-se nos ombros de seu
companheiro menos dotado intelectualmente e abraça-se a um dos gigantes, agarrando-se a
suas pás para pô-lo em movimento. O risco é altíssimo e uma grande tensão se apodera
da multidão que, paralisada, segue os movimentos de seu líder em meio a um imponente
silêncio. E acontece o inevitável:
"A força centrífuga arremessou-o no
vazio".
Consuma-se o sacrifício do herói, mas, antes
de morrer, a satisfação de verificar que outros líderes tinham tomado seu bastão e que
as massas giravam ao redor dos moinhos, impede que Dom Quixote entre em pânico:
"...sentiu-se embargado pela emoção...
fechou os olhos e entregou-se aos braços da vitória".
Em seus esforços para afastar-se da
realidade, a fim de obter uma maior perspectiva, a simbologia do personagem de Cervantes
é adaptada pelo autor sírio às necessidades da mensagem incluída em seu relato. Esta
adaptação, sem dúvida, afasta o Dom Quixote sírio - sofisticado, vitorioso e,
sobretudo, admirado pelas multidões - do simples e ridicularizado cavaleiro espanhol, que
sai pelo mundo para "desfacer los entuertos" com que depare, enquanto o
sírio move-se por um objetivo concreto, planejando previamente sua estratégia.
Os símbolos empregados aproximam-se dos
símbolos poéticos por sua beleza e pelo cuidado do escritor ao escolhê-los. Em Yundub,
Hani al-Rahib cria o personagem secundário, sem relevo, mas ativo e indispensável para
secundar as campanhas dos líderes. Umayma, a amada de Dom Quixote é, como seu nome
insinua (um diminutivo de Umma, Pátria), a amada Pátria, indefesa e adormecida -
que pode ser a Síria ou o mundo árabe em geral. Já Ummiya - tenha-se em conta que este
nome pode ser traduzido por Ignorante, Iletrada - representa o povo, apegado às pequenas
necessidades quotidianas.
A sociedade que se deixa entrever no relato é
irreal, pomposa e artificial. O autor não se preocupa em apresentar nela, as diferentes
classes sociais com seus problemas específicos, seu único objetivo é o de transmitir
uma linguagem revolucionária e, para isso, vale-se de seus personagens favoritos,
extraídos do meio intelectual e desencantado dos círculos universitários, do qual, de
vez em quando, emerge um temerário e iluminado Quixote, disposto a desafiar a morte, a
desmistificar seu poder, primeiro passo necessário para alcançar a vitória.
O existencialismo que marcou os começos de
sua carreira encontra-se já ausente deste relato. Não encontramos angústia pelo destino
pessoal, mas uma chamada à ação, para alcançar uma luz de esperança que brilha no
final do caminho. O primeiro parágrafo é um brilhante cântico de esperança:
"Converterei o lugar em que vivemos num
exuberante jardim... A chuva cairá e as estepes árabes cobrir-se-ão de erva,
multiplicar-se-ão os peixes em nossos mares e no grande deserto erguer-se-á o
progresso...".
A linguagem utilizada em toda a produção
literária de Hani al-Rahib é uma das mais belas da narrativa árabe contemporânea,
apesar de não ser a perfeição estética, o fim último para um escritor tão marcado
ideologicamente e, para quem, a todo momento, o conteúdo é mais importante do que a
forma. Consciente das dificuldades da língua árabe, cuja riqueza expressiva pode
provocar, se mal utilizada, um texto confuso e mal-arranjado, e, convencido de que a
narrativa atual é um gênero novo dentro do turat literário árabe, Hani
al-Rahib propõe a busca de uma linguagem novelística que seja acompanhada de um método
também novelístico. Não se trata de inventar nada de novo, mas de dar um uso adequado
à língua.
A influência da narrativa anglo-saxã não
está ausente da obra desse autor - que como doutor e professor universitário em Língua
e Literatura Inglesas, conhece muito profundamente essas disciplinas -, que, apesar de
reconhecer que "todo romancista sincero consigo mesmo sente-se pressionado por
fatores culturais estrangeiros", procura continuamente vencer essa pressão"(10).
Creio sinceramente que Hani al-Rahib deveria
ser mais conhecido no Ocidente, tanto por seus valores literários, como pelo conteúdo de
sua extensa obra, que permite o acesso aos mais candentes problemas do mundo árabe
contemporâneo, do lado de dentro do espaço geográfico desse mundo, pelo pensamento de
alguém que está imerso nesses problemas, que reflete sobre eles e os expõe com
brilhantismo, indicando soluções.