O conto enraíza-se no contexto milenar do
oriental, particularmente do oriental árabe, para quem o gênero sempre pontificou como a
mais pura e nobre das artes populares.
A propósito, é oportuna a afirmação de
Ahmad Khan: "Sob a tenda, numa cidade, sob as árvores que se coroam de folhas ao
bordo de fonte límpida e no deserto de areia invadido de sol; ou, no meio do palácio de
mármore e ouro; ou sob a cabana, o que pede o árabe? Um conto, um conto bem feito, isto
é, bem estranho, bem maravilhoso" (1).
No conto, o que mais deve atrair é o enredo,
pois o fundo sobreleva-se de certo modo à forma e justifica, basicamente a arte do
contador de histórias (hakawati), quer na transmissão oral, quer na escrita.
Realiza-se, muitas vezes, no âmbito do
imponderável poético, em que o maravilhoso e o mistério ressaltam em imagens que nos
trazem, inconfundivelmente, à lembrança, a linguagem das Mil e Uma Noites. Outras
vezes, apóia-se na realidade quotidiana, a partir de situações vividas pelo homem
universal. Coroando o conto - fruto de uma mentalidade que busca no passado o aval do
presente e do futuro - a sentença, a máxima, via de regra, o provérbio que endossam e
ampliam uma verdade moral.
Apelando à imaginação ou à vivência
concreta; ao sonho ou à realidade, o conto tem uma função educativa que se exerce mais
imediatamente no plano da formação do caráter.
Paralelamente ao conto tradicional, surge no
século X, uma forma de conto propiciada pela conjuntura social e urbana do mundo árabe
islâmico da época: a maqâmat (2), marcando a existência
de um gênero novo que conheceu excepcional sucesso na literatura árabe. Trata-se de
contos curtos, animados durante "conversações", que exploram profundamente a
potencialidade da língua árabe, sobretudo em termos léxicos e estilísticos, aliando ao
refinamento formal uma arquitetura conceitual, em que enredo e personagens colaboram para
o novo e o inusitado na literatura da época, expondo um problema social ou meramente
retórico. Tendo em vista os infinitos recursos do árabe, idioma extremamente distante do
nosso em todos os níveis estruturais e, de modo acentuado, no que se refere ao contexto
cultural que lhe deu origem, as maqâmât permanecem fundamentalmente
intraduzíveis.
O gênero maqâmat aparece num momento
bastante conturbado da história dos árabes, de decadência política. Na verdade, o
califado de Bagdad chegara à desagregação praticamente total, o que levou as
províncias orientais (e também as ocidentais) a se constituírem em principados
independentes e rivais.
O deslocamento do califado abássida no
século X e a constituição de principados independentes no Egito, Síria, Pérsia,
tiveram conseqüência feliz, na medida em que, subtraindo a Bagdad e ao Iraque a primazia
cultural e artística, contribuíram para a descentralização da atividade intelectual no
Oriente. Ainda que Bagdad conservasse certo prestígio, teve que dividi-lo sobretudo com
Nishapur, Alepo, Damasco, e Cairo, para citar os centros urbanos mais destacados da
época.
Os príncipes, cultos e refinados, instituem o
mecenato: atraem a suas cortes, poetas, filósofos, escritores, sábios, que não hesitam
em abdicar de sua independência para se colocarem a seu serviço. Predomina, assim, a
vida dos salões, enfatizando-se a reunião "social", a "sessão" de
conversação, de entretenimento.
Muito embora a "reunião" não
represente novidade para o Oriente em que, desde sempre, se valorizou o contador e o
improvisador de histórias, as Sessões do século X favoreceram o brilho, a
elegância, a erudição, fomentando a competição pelo sucesso maior entre seus
participantes.
Dissertava-se e discutia-se sobre gramática,
filosofia, teologia ou literatura (incluídas aí narrativas moralizadoras), prática que
exigia rara vivacidade de espírito, memória - muito cultuada pela precariedade dos meios
de conservação do pensamento - e erudição indefectíveis, qualidades, enfim, que
pudessem provocar impacto e, incessantemente, surpreender o ouvinte.
Abu Al-Fadl Ahmad Ibn Al Hussain, Al
Hamadháni (também conhecido pelo cognome de "Badi' Az-Zamán" ("maravilha
do tempo") é considerado o criador do gênero maqâmat.
Nasceu em Hamadhán, na Pérsia. Dotado de
memória prodigiosa, seus estudos parecem ter sido brilhantes. Teve como principal mestre,
o filósofo Ibn Faris, autor de um tratado de gramática e de um notável dicionário.
Dominava profundamente o árabe, condição
imprescindível para salientar-se no âmbito da elite social e cultural da época e
aspirar à corte. Ao lado do árabe, dominava, com igual relevância, o persa. Era capaz
de realizar complexos exercícios lingüístico-estilísticos que pasmavam seus
contemporâneos. Diz-se, por exemplo, que Al-Hamadháni podia traduzir, de improviso,
versos árabes para versos persas; versos que lhe eram propostos com o mais inusitado
conteúdo. Podia ainda escrever uma carta, cuja leitura, pelo sentido contrário, revelava
sua resposta... Compunha um texto sem utilizar certas letras etc.
De Hamadhán, terra natal, o autor mudou-se
para Ray, norte da Pérsia, onde foi acolhido em mecenato pelo vizir Ibn Abbad.
Empreende, em seguida, várias viagens: a
Jurjan, a Nishapur, deixando-se atrair pelo brilho intelectual dessas cidades. Nishapur,
por exemplo, era um dos focos culturais do mundo islâmico.
No meio urbano das grandes cidades árabes
islâmicas coexistiam (tanto quanto na Paris medieval) uma elite cultural e socialmente
bem posta, uma burguesia opulenta, de raízes religiosas superficiais e uma camada de
desfavorecidos pela sorte, prontos à revolta, propensos à "malandragem", gente
sem lei, nem fé, vivendo de expedientes suspeitos.
Al-Hamadháni, desde sua permanência em Ray,
não se restringiu a freqüentar os salões dos nobres; teve contactos com os
"trapaceiros" da época e com poetas-boêmios.
É interessante, como faz notar Fanjul,
ressaltar esta faceta lúdica na biografia de Al-Hamadháni que "seguramente
determinou em grande medida a concepção e desenvolvimento posterior de sua obra As
Maqâmât" (3).
O tipo originário desse meio, acabou por
freqüentar as peças literárias, divertindo os salões com seus malabarismos de
oportunista astuto e atitudes de verdadeiro parasita, principalmente pela linguagem plena
de gírias e impertinências, apresentada com requintes de rima e de ritmo.
Na realidade, o contato com o bas-fond viria
a impregnar as Maqâmât de ironia, desesperança e moldar principalmente o
personagem picaresco da obra de Al-Hamadháni, o anti-herói, Abu-l-Fath Al Iskandari
(referindo-se o epíteto Al Iskandari à cidade de Alexandria, sua terra). Trata-se de um
personagem que tende a filiar-se à malandragem. Escorregadio, pelos inúmeros disfarces
que assume: falso asceta, falso mendigo..., tem, entretanto, cultura literária, conhece a
arte de improvisar em verso ou prosa rimada (já que é calcado nos poetas-boêmios da
época).
Cínico, ávido por ludibriar os simplórios e
confundir os medíocres, chega a eclipsar todos os outros personagens quando aparece, para
tornar-se o herói central do conto.
Nesse sentido, é a antítese de 'Issa Ibn
Hicham, um burguês tranqüilo, apaixonado por viagens, instruído, amante da
conversação frutuosa, tem bom coração, está sempre pronto a se enternecer com as
misérias que encontra; por isso, torna-se presa fácil da ousadia e da malandragem.
As Maqâmât de Al-Hamadháni
apresentam-se como historietas contadas sempre pelo mesmo narrador, 'Issa Ibn Hicham, a um
círculo de ouvintes, onde se encontra o próprio autor (visivelmente o verdadeiro
contador, encarnado por Ibn Hicham...).
O texto da maqâmat de Al Hamadháni
constrói-se de modo bastante equilibrado. A primeira parte é sempre uma introdução em
que atua o narrador. Com freqüência, na segunda parte, entra em cena um personagem
desconhecido que se passa a admirar por seus propósitos edificantes, por sua eloqüência
ou erudição.
Numa terceira parte, geralmente breve,
espécie de epílogo, Ibn Hicham descobre no desconhecido, Abu-l-Fath Al Iskandari que,
cinicamente, zomba dos patetas e dos tolos.
Al-Hamadháni busca inspiração
exclusivamente em fontes muçulmanas, desde a apreciação de poetas, anedotas de vates
antigos, até questões filosóficas e teológicas, como o caráter incriado do Alcorão,
o livre arbítrio, a origem da sabedoria etc.
Em linguagem plena de rebuscamento literário,
onde pululam metáforas e metonímias harmoniosamente concatenadas pela prosa, rima e
ritmo, as maqâmât retratam o ambiente social e psicológico da época, o que
leva, de certo modo, a aproximar a obra de uma sátira de costumes.
De toda forma, ressalte-se o inquestionável
valor documental que apresentam estas composições e a função educativa que têm, mesmo
a partir da paródia que se mistura à malícia e ao burlesco, para engrandecer alguns
aspectos e denegrir outros do comportamento humano, subsidiando a reflexão moral e a arte
de bem viver.
Apresentamos a seguir uma breve maqâmat
de Al-Hamadháni: