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Dom Quixote

 

Hani al-Rahib
(Trad. da versão espanhola de Ana
Ramos Calvo por Aida R. Hanania)

 

 

     Disse Dom Quixote a sua amada Umayma:

     "Hás de saber, Umayma, que o amor é uma pérola rara nestes tempos, mas nós dois a possuímos. A única coisa que temos que fazer para sermos completamente felizes e viver num ambiente de sinceridade e liberdade, invejados por todo mundo, é afastar as moscas de nossa casa, matar os percevejos e as baratas e varrer o lixo que se foi acumulando na rua. Enquanto isso, e conforme formos progredindo nesta importante e histórica tarefa, dedicar-me-ei plenamente a ti com todas as energias e com todo o amor que inflama meu coração.

     Converterei o lugar em que vivemos num exuberante jardim, onde tuas tranças negras possam agitar-se ao sabor das rajadas de ar puro, trespassado por raios de sol. A chuva cairá e as estepes árabes cobrir-se-ão de erva, multiplicar-se-ão os peixes em nossos mares e no grande deserto erguer-se-á o progresso. Tornaremos a construir uma vez mais a Torre de Babel e nossos filhos, montados em foguetes, poderão passear na lua e conversar por telefone com amigos da Estrela d'Alva".

     Amanhecia. A aurora despontava por cima das montanhas e das antenas de televisão e Umayma continuava dormindo. Dom Quixote contemplou seu rosto em que ainda permanecia um sorriso e sentiu que seu coração se inundava de imensa alegria ante o espetáculo daquele rosto moreno, que irradiava doçura e encanto, de seus olhos fechados e de sua tranqüila e suave respiração.

     Dirigiu o olhar à janela gradeada e sobre a areia do jardim, viu um gato dando um golpe mortal em um rato e sentiu pena. O pregão do leiteiro, porém, trouxe-o de volta à realidade. Quando o homem, seguido de seu burro, chegou à janela, Dom Quixote descobriu um pequeno rádio sobre o lombo do animal e ouviu Nasri Shams al-Din cantar:

"Você que passa de mansinho
ao pé do moinho
quando a água está parada
temendo que girem as pás
e despertem a mocinha" (1).

 

     Ficou muito contente, porque gostava muito desta canção e com tal estado de espírito, deitou-se ao lado de Umayma e dormiu.

     Já era tarde. Dom Quixote e seu amigo Yundub jogavam uma partida de "tric-trac" no café. Como de costume, Dom Quixote soube contornar as dificuldades e concentrando-se numa ofensiva ousada e imprevista, derrotou Yundub de maneira total e esmagadora, apesar de seus esforços para vencer. Depois, sentou-se para descansar em uma cadeira de bambu e apoiando um braço noutra cadeira, pôs-se a dar baforadas de narguilé.

     Disse Dom Quixote a seu amigo Yundub:

     "Hás de saber, Yundub, que o Imperialismo e o Subdesenvolvimento e a Balcanização são questões, para mim, obsessivas. Às vezes, penso que para afrontá-las, deve haver procedimentos tão evidentes como o pó que há sobre as cadeiras de nossas casas e que, vencer estes problemas não deve ser mais difícil do que acabar com as moscas, os percevejos ou as baratas, nem mais difícil do que varrer o lixo que se acumulou em nossas ruas. Nosso erro principal e fatal consiste em ter acreditado na propaganda inimiga, aceitando ingenuamente que essas três questões constituam uma só, unidas em coesão orgânica e letal em seus três aspectos. Mas, na verdade, para matar percevejos há um produto específico; para matar moscas, há outro; outro ainda, para as baratas. E seria absurdo borrifar estas criaturas com todos os produtos ao mesmo tempo, porque nos afogaríamos antes que elas morressem. Existem múltiplas ramificações destas três questões, pelas quais podemos entrar para desferir nosso golpe, demonstrando ao mundo inteiro que o Imperialismo, o Subdesenvolvimento e a Balcanização não são mais do que simples moinhos de vento, que podemos pôr em movimento ou deter, como bem entendermos".

     Dom Quixote parou de falar, saboreando a satisfação de ter conseguido se expressar com eloqüência e concisão sobre problemas tão complexos e só desarmou a pose quando, por fim, reparou que continuava com a mão estendida e gesto de orador. As canções da Rádio local o aborreciam. Estendeu a mão para pegar sua bolsa e abrindo-a, tirou dela um pequeno gravador. Pressionou uma tecla e ouviu-se a voz de Nasri Shams al-Din, cantando:

"Você que passa de mansinho
ao pé do moinho
quando a água está parada
temendo que girem as pás
e despertem a mocinha"

 

     Dom Quixote pôs-se a escutar a canção com os olhos semicerrados de prazer e os nervos tensos de entusiasmo, enquanto seus dedos tamborilavam com energia. Quando acabou a canção, desligou o gravador, consultou seu relógio e pressionou a tecla de rebobinar; após alguns segundos, voltou a olhar o relógio com o dedo sobre a tecla stop que, finalmente, pressionou. Guardou o gravador na bolsa, fechou-a, passou a chave, guardou-a e levantou-se. Yundub levantou-se também.

     Uma hora depois, as estradinhas rurais que levavam aos moinhos de vento encontravam-se repletas de bicicletas que circulavam velozmente por um terreno praticamente desprovido de vegetação. Em cada bicicleta, um homem e, na garupa, uma mulher. O ar fresco e agradável e a terra úmida infundiam melancolia na alma, enquanto o sol se pondo, animava os corações com sufocante alegria. Dom Quixote, sem soltar o guidão disse a sua amada:

     "Hás de saber, Umayma, que os moinhos de vento são, para mim, um símbolo permanente. Representam as diferentes etapas da luta que abraçamos neste mundo. Quando estão parados, acabam nossos problemas mas, se se movem, que Deus nos acuda!"

     Umayma respondeu a Dom Quixote:

     "Não te compreendo completamente. É de supor que quando os moinhos param, pára também sua produção de farinha e que quando se movem, temos farinha".

     Dom Quixote disse a sua amada:

     "É certo que não compreendeste. Falo de moinhos de vento e tu, de moinhos".

     E disse Yundub a sua amada Ummiya:

     "Hás de saber, Ummiya, que Dom Quixote é genial. Sim, genial. E quando entrar em ação, haverá grandes mudanças em nossas vidas".

     Disse Ummiya a Yundub:

     "Qual deles é Dom Quixote? Vejo muitos por estes caminhos".

     Antes que Yundub pudesse responder, a caravana de bicicletas chegou a seu destino.

     Os homens saltaram e fizeram descer suas mulheres; fixaram as bicicletas em pés metálicos e formaram um círculo ao redor dos três moinhos de vento.

     O sol se elevava dois ou três palmos acima do horizonte e uma suave brisa se esparramava como uma chama pelo vasto espaço, enquanto o silêncio e a calma fendiam o ar como o cortante fio de uma faca.

     Dom Quixote abriu sua bolsa, tirou dela uma varinha metálica e tornou a fechá-la. Empertigou-se. Depois, puxou com força os extremos da varinha alongando-a; repetiu a operação e a varinha se transformou numa espécie de serpente comprida e curva como um sabre; continuou esticando-a até que atingiu os quatro metros e disse a sua amada Umayma:

     "Agora verás, amada minha, como um moinho de vento que não se move não faz mal a ninguém. Verás como vou fustigá-lo com este produto do mundo da tecnologia e permanecerá em silêncio, sem a menor reação. É que a tecnologia é simplesmente a tia do moinho de vento e compreende sua linguagem".

     Em meio à impressionante calma, Dom Quixote avançou até a mole do moinho de vento, empunhando sua varinha longa e curva como um sabre. Determinado, levantou-a com firmeza e fustigou com ela as pás metálicas que reluziam sob o sol. As pás não se moveram nem pouco, nem muito, mas um lancinante e agudo chiado sulcou o ar, desvanecendo-se depois.

     Voltou Dom Quixote a sua posição anterior e comprimiu os extremos da varinha longa e curva como um sabre que voltou a ser uma simples varinha metálica. Abriu sua bolsa, pôs a varinha em seu lugar, fechou novamente a bolsa, guardou a chave, empertigou-se bruscamente, sacudiu os braços e disse:

     "Agora verás, Umayma, que subirei ao alto do moinho de vento e subjugá-lo-ei. É algo que simplesmente precisa ser feito. Yundub, vem comigo".

     E disse Yundub:

     "Verás, Ummiya como ele subirá ao alto do moinho de vento e subjugá-lo-á. É algo que simplesmente precisa ser feito".

     Os dois homens chegaram à torre. Yundub firmou bem os pés na base e baixou a cabeça. Dom Quixote saltou com agilidade e subiu em suas costas, depois pôs os pés em seus ombros, saltou uma segunda vez e pendurou-se no beiral, mais uma vez firmou os pés nos ombros de seu companheiro, deu um pulo e voltou a se pendurar no beiral, deu outro pulo e pôs os pés na açotéia. Ficou de pé e dali fez sinais com as mãos a seus companheiros que escalavam as outras duas torres.

     Em seguida, deu a mão aos companheiros que subiram atrás dele à mesma torre. Chegou às pás que reluziam ao sol e introduziu-se no vão que se forma entre as duas, firmou os pés no pequeno espaço que as une ao eixo e agarrou-se a suas polidas superfícies. Em suas costas, brilhavam os róseos raios de sol.

     De repente, aconteceu algo inesperado. Sem poder acreditar no que enxergavam, as pessoas viram que as pás se moviam: devagarinho e timidamente no início; depois, girando mais e mais. À medida em que se tornava mais rápido o movimento, o sorriso de Dom Quixote se tornava mais amplo. Sentiu seu domínio sobre as pás e que seus esforços para utilizá-las a seu bel-prazer tinham sido coroados de êxito e quando seu corpo se fundiu com as pás, dada a vertiginosa rapidez da rotação, Dom Quixote sentiu também que seu domínio, e também sua emoção, tinham chegado ao ápice. Experimentou a plenitude do poder e da embriaguez e sentiu-se embargado por sentimentos de glória, pois aquele era um feito grandioso e aqueles momentos, históricos. Tinha arriscado a vida, esforçando-se para abarcar as dimensões de uma experiência única e concentrou todos os seus pensamentos na assimilação dessas emoções e sentimentos. Enquanto isso, a multidão não tirava os olhos das pás, sem conseguir distinguir nada. Dom Quixote entendeu que as pás se tinham, finalmente, fundido com seu corpo e que o infinito estava agora à sua mercê e, em sua embriaguez, parecia-lhe ouvir a voz de Nasri Shams al-Din:

 

"Você que passa de mansinho
ao pé do moinho
quando a água está parada
temendo que girem as pás
e despertem a mocinha"

 

     Sua consciência tinha se libertado, a ponto de não sentir pânico quando a força centrífuga arremessou-o no vazio, até perder de vista o sol. No vazio via cores que iam e vinham, sentindo-se feliz e extasiado. Também os montes e as planícies iam e vinham e compreendeu que só então estava experimentando a vida em toda a sua realidade. Emocionado, via aproximarem-se e afastarem-se os rostos perplexos da multidão que, apinhada, formava uma massa compacta de cor plúmbea que se movia incessantemente em torno dos três moinhos. Fechou os olhos e entregou-se aos braços da vitória.

     A multidão, suspensa a respiração, assistia àquele espetáculo. As mulheres caíram de joelhos e seus olhos arregalados foram testemunhas de que Dom Quixote tinha se espatifado...

 


1- Nasri Shams al-Din é um conhecido cantor e a canção aqui mencionada, fazia muito sucesso nos anos setenta, quando se escreveu este relato.