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Caligrafia: forma do espírito árabe-islâmico [1]

 

Aida R. Hanania
DLO-FFLCHUSP / Uninove

 

Introdução

A mais autêntica e peculiar arte islâmica, a da Caligrafia [2] , tem início oficialmente, digamos assim, em torno do século X, coincidindo com a codificação da escrita árabe. [3]

Quando nos referimos à Arte Islâmica da Caligrafia, referimo-nos também à Arte Árabe da Caligrafia, pois que ambas se acham intrinsecamente vinculadas.

Na verdade, as noções de árabe e islâmico estão interligadas organicamente.

Basta lembrarmos que o Islão [4] , que configura a última grande religião monoteísta, surgiu no coração da Arábia, a histórica Meca, em razão da divina mensagem, revelada a Muhammad (a partir de 607 d.c.) em língua árabe e consubstanciada, mais tarde, no Alcorão, livro sagrado dos muçulmanos. Quanto mais não seja pelos aspectos geográfico e linguístico, a influência árabe no Alcorão é preponderante: nele há alusões históricas a tribos anteriores ao Islão; referências a práticas cuja significação prende-se claramente ao contexto pré-islâmico; o Texto menciona ainda  velhas crenças, combatendo-as (caso da matança de filhas mulheres), ou aceitando-as (caso da peregrinação instituida por Abraão à Ka’aba), encerrando concepções que só se elucidam convenientemente a partir do conhecimento da Árabia pré-islâmica. Como adiante veremos, o própio Alcorão [5] registra que ele mesmo se constitui numa Revelação/Leitura árabe.

Língua-corpo da Revelação, o Árabe, em sua forma escrita, adquiriu naturalmente um caráter sacralizado, miraculoso, impondo-se como a única língua de legítima manifestação da palavra de Deus. Assim, desde sempre, o muçulmano de todo o mundo faz sua oração em árabe, independentemente da língua que impera em seu país. Já por esta razão, pode-se compreender que o muçulmano não admita a tradução do Alcorão mesmo com a finalidade da reza e da recitação [6] , aceitando-a apenas na medida em que seja uma explicação do sentido do Livro (tafsir ma’ na al-qur ‘an).

Reunidos em torno de seu texto fundador, os árabes iniciam no século VII, a grande caminhada na direção de outras regiões, de outros povos, com o objetivo precípuo de divulgar a fé islâmica, a palavra alcorânica. Diríamos, com Chelhod, que os árabes “opõem ao particularismo tribal, o universalismo e substituem o elo sanguíneo pelo da religião” [7] .

Essa grande aventura deu origem a uma das civilizações mais brilhantes da humanidade. Sob a invocação do Deus Único [8] e propondo a leitura de uma única mensagem, o Alcorão consagrou-se como eixo de um ser coletivo e individual; tornou-se propriamente a sua identidade, o parâmetro para toda uma vida quotidiana que o Islão não separa da fé; antes as une num todo indissociado. Trata-se de um amplo código de conduta pessoal e social, que abarca uma fé, uma filosofia, uma lei e um mister: chamar os semelhantes à participação de uma comunidade erigida e ungida pelo Destino. Desse modo, o Islão pôde proporcionar uma ordem política a um vastíssimo território, guardando uma uniformidade básica.

Abrangendo toda a região do Golfo Pérsico ou Arábico, do Crescente Fértil, do Oriente Próximo, do Norte da África, parte da Europa Mediterrânea em que se destaca a Espanha (com uma permanência de dois séculos na Sicília e uma brevíssima incursão pela França), o Império Árabe balisou os rumos do Oriente e do Ocidente durante cerca de oito séculos, embora seu apogeu tenha se verificado no decorrer dos séculos IX a XII.

A Civilização árabe-islâmica teve uma evolução sui generis: os árabes, povo nômade por excelência, sem expressão cultural outra que a literatura (através, sobretudo, da poesia) foram constituindo uma civilização no decorrer de sua expansão, graças à assimilação profícua de conhecimentos aportados por povos de regiões muito mais adiantadas culturalmente, como a Síria, o Egito (salientando-se Alexandria, repositório maior da cultura antiga) e a Pérsia.

De posse da cultura grega, por exemplo, a que tiveram acesso por via de sua presença no contexto bizantino, os árabes inteiraram-se da Matemática, da Filosofia, das Ciências, ampliando-as fundamentalmente, dentre outras razões, pela incorporação de novos conceitos — revolucionários no Ocidente Medieval — no campo da Aritmética e da Álgebra; pela estatura de um Avicena ou de um Averróes que promoveram a reinterpretação de Aristóteles e Platão, ou pelo alargamento do âmbito de investigação e análise de resultados como na Medicina e na Astronomia.

Ao mesmo tempo em que se dava o amalgamento privilegiado de culturas, os árabes, ao centro, carreavam para os povos conquistados, todo o cabedal de conhecimento adquirido e criado, através de uma contínua atividade tradutória. Assim, do siríaco, sobretudo, a cultura grega foi traduzida para o árabe [9] .

O movimento de tradução desencadeado pelos árabes foi espantoso: pela multiplicidade de temas e obras traduzidas; pela nuclear importância dos mesmos no desenvolvimento posterior da Humanidade. No Ocidente, foram importantíssimos os centros de tradução da Sicília e principalmente da Espanha com a famosa Escola de Toledo.

É necessário ressaltar que os inúmeros particularismos oriundos da diversidade de culturas dos povos abrigados pelo Mundo Árabe, de tantas linhas de pensamento e de concepção de vida paralelas ao pensamento árabe (às vezes até dentro do próprio Islão [10] ) não chegaram jamais a comprometer a Unidade. Unidade atestada ininterruptamente em torno da Palavra. Unidade expressa pela escrita e magistralmente pela caligrafia, que, enquanto materialização da palavra divina, é capaz de reunir num mesmo império espiritual todos os muçulmanos, onde quer que se encontrem.

Ultrapassando as fronteiras, com o mesmo simbolismo, a Caligrafia aproximou conquistadores e conquistados, orientais e ocidentais, pairando como instância máxima da propagação do Saber, do Dever e da Beleza.

É nesse contexto que devem ser lidas estas considerações introdutórias específicas sobre o processo cultural que consagrou a Caligrafia como a expressão mais autêntica da arte árabe islâmica.

1. Origem da Caligrafia Árabe como Arte

Quando se quer identificar as peculiaridades da Arte para além da adoção de traços ou do amalgamento de traços adquiridos pelos caminhos trilhados pela Civilização Árabe, constata-se, de imediato, que, ao contrário da arte ocidental, fundada na poli-idealização, a árabe revela-se essencialista, expressando-se por uma forma decorativa não figurativa, alicerçada fortemente na caligrafia do pensamento alcorânico.

A Civilização Árabe, tendo se constituído e desenvolvido sob a proteção do Islão, foi uma das maiores civilizações da escrita que o mundo conheceu. Na verdade, a palavra contida no Alcorão, escrita, ouvida e recitada — o Alcorão é não só a Leitura, mas também o Dhikr [11] por excelência  — é para o árabe, fundamento de vida.

O Alcorão, palavra incriada e eterna de Deus, texto maior do muçulmano é considerado, assim, o Signo-fonte que manterá com todas as outras escrituras determinadas pela cultura que embasa, um elo orgânico. A escrita e sobretudo a caligrafia árabe, uma das formas mais proeminentes de inserção do signo na realidade e na memória dos homens, pois fixa a língua que se tornou o veículo da Revelação.

Se o pensamento alcorânico é total e sua língua, perfeita, é porque se trata do Verbo do Altíssimo que desceu à terra. Verbo que se fez escrita. Escrita que se materializou na Caligrafia. Caligrafia que representa o corpo visível da divina palavra. Para o muçulmano, o nome sagrado de Deus e o Alcorão equivalem à Encarnação para o cristão: o mesmo senso de devoção que o cristão nutre por Jesus (Verbo Encarnado) é o que o muçulmano nutre pela escrita da palavra divina e pelo Alcorão que a acolhe.

Construída sobre o credo monoteísta que impede a pesquisa e experimentação de vários modelos, a arte muçulmana levou a extremos a reserva quanto à imagem, quase negando a arte figurativa [12] , ao menos vendo-a com precaução e desprezo o que, de certa maneira, já estava prescrito nas grandes religiões monoteístas anteriores [13] .

Já para o cristianismo, haverá sensivelmente uma gradação na conceituação da imagem: não se deve adorar, mas reverenciar a imagem da Virgem, de Jesus e dos Santos. Para o cristão oriental, as regras de preservação da sacralidade são mais rígidas e o temor da idolatria, ainda maior, o que exclui a tridimensionalidade da imagem talhada, a estátua esculpida, admitindo-se apenas os ícones, estes, sim, podendo ser respeitados, por serem apenas imagens pintadas em superfícies planas. E, para o protestante, o aniconismo é marcante em todas os momentos do exercício da fé.

O iconoclasmo muçulmano aproxima-se do bizantino, participando também da resistência do protestantismo à reprodução e, em certo sentido, é o herdeiro do lastro iconoclasta dos antigos semitas.

Se nos reportarmos ao texto alcorânico, porém, veremos que nele não há interdição clara da imagem ou da arte em geral. É evidente, entretanto, a condenação na direção da idolatria, uma vez que “será proscrito todo objeto de arte que se torne cultuado”.

Tal condenação explicita-se de modo definitivo nos conhecidos “versículos satânicos”, em que é execrada a prática idólatra do período pré-islâmico [14] , consubstanciada aqui, particularmente, na adoração das estatuetas Al-lât, Al-Ozza e Manat.

Já nos hadiths [15] , verifica-se que em suas declarações, está contida a hostilidade à arte em geral e, de modo especial, à figurativa. Verifica-se, ainda, que a condenação surge com maior veemência contra o artista do que contra sua obra, conforme um de seus mais reconhecidos aforismos “Os artistas que fazem imagem, serão punidos no Dia do Juízo por um julgamento de Deus que lhes determinará a impossível tarefa de ressuscitar suas obras”.

Outra razão implícita da condenação do artista e da imagem que produz, escuda-se no fato de que a mensagem teológica central do Alcorão consiste em afirmar a unicidade e o total poder de Deus. A relação dos Atributos de Deus (Asma ‘Allah al Husna) mostra que um de Seus qualificativos é Al-Mussawwir (o criador de formas [16] ), o mesmo termo utilizado para pintor. A partir daí, todo artista seria um rival de Deus no exercício de Suas atribuições principais. É interessante notar que a proibição da imagem extrapola o âmbito das artes plásticas, atingindo a arte dramática, em virtude da representação humana [17] .

Ainda com relação à imagem, se tomarmos como referência a arte hindu e a chinesa por um lado e a cristã por outro, configurando, portanto, um paralelismo Oriente/Ocidente, veremos que a arte islâmica delas diverge não tanto em princípios fundamentais, como em interpretação literal. Como vimos, o espírito da interdição islâmica em face da representação de formas é que, teoricamente, no Dia do Juízo, as imagens deverão ser ressuscitadas por seu autor. Já para o hindu, “o elemento formal na Arte representa uma atividade puramente mental” [18] , não cabendo a preocupação em dotá-lo de vida.

Por outro lado, a imagem, o ícone cristão não são movidos por nada que não seja apenas sua forma: “cada um, no seu sentido estrito, é visto como uma espécie de diagrama, expressando certas idéias e não como semelhança  de algo na terra” [19] .

O muçulmano vê a representação como blasfêmia, pois só Deus tem o poder criador da vida. Na visão asiática e na cristã, a arte figurativa representa um modo de falar de Deus e da Natureza e não de imitá-los: a natureza e a arte são parecidas somente em idéia; do contrário, são irreconciliáveis.

A amplitude da questão da imagem convocou figuras eminentes do mundo islâmico através dos tempos. Dentre elas, a de Algazali, em sua obra Ihya ’Ulum Al-Din (Vivificação das Ciências da Religião) em que, ao enumerar o cortejo de vícios que acompanha os banhos bizantinos, situa, em primeiro lugar, “os afrescos representando seres humanos e animais”, não tolerando senão “os que representam árvores, isto é, seres inanimados” [20] .

Na verdade, seres inanimados, figuração de animais e até de seres humanos acabarão por integrar o universo árabe-islâmico, a partir já de meados do século VIII.

Algumas considerações impõem-se aqui, que permitam esclarecer o aparente paradoxo.

A reflexão sobre Arte (como, de resto, sobre qualquer segmento da Cultura Árabe) deve tomar em conta o conjunto de fatores e relações estabelecidas a partir do encontro dos muçulmanos com outros povos, no formidável processo de expansão que o Islão conheceu.

Tendo início em 622 [21] , a formação da almejada “nação árabe” (‘umma) [22] adquiriu seus contornos maiores com a chegada dos muçulmanos à Península Ibérica em 711.

O processo de implantação da língua árabe e da religião islâmica (implicando naturalmente o enraizamento cultural árabe) gerou uma realidade bastante complexa, determinada basicamente pela união de várias etnias, culturas e filosofias, ao abrigo do Islão. Na verdade, o grau de islamização de cada região, país ou grupo social foi extremamente diversificado, não só porque o momento histórico em que ocorreu era outro, mas — e sobretudo — em virtude do maior ou menor arraigamento das populações conquistadas a seus valores originais; populações detentoras, muitas vezes, de ricos patrimônios artísticos e tradições plásticas. Para exemplo, tomemos a Pérsia, à época da arabização, região das mais florescentes sob todos os aspectos, que manteve com a incorporação dos valores árabes e islâmicos, muita autonomia na condução de seu desenvolvimento cultural. Pelas mesmas razões, foi análogo o caso da antiga Síria, acrescendo-se o fato de que parte de sua população resistiu à islamização, chegando a preservar um importante núcleo cristão no Oriente Médio e grande liberdade na determinação de seu perfil cultural.

A Civilização Árabe não uniformizou totalmente os povos convertidos. A tolerância dos conquistadores (registrada pelos historiadores mais divergentes entre si) permitiu o exercício dos diversos particularismos dos conquistados, ao mesmos tempo em que os engajou na perspectiva universalista do projeto da Nação Árabe.

Abalançando-se entre o geral e o particular, o comum e o específico, os árabes nunca perderam de vista o objetivo maior, a consolidação da entidade unitária representada pela ‘Umma. À medida que o Islão se expandia; que, cada vez mais, se distanciava do ambiete idólatra que o antecedera; que se intensificava o contacto com a arte dos conquistados, foi se alterando a ordem inicial do iconoclasmo e do aniconismo muçulmanos. Nesse sentido, são acentuadas as influências bizantina e sassânida.

Sob a dinastia dos omíadas (660 a 750), com capital em Damasco, na Síria, o desenvolvimento artístico árabe efetuou-se muito próximo do mundo helenístico e da cultura bizantina. Surgiram, entre os árabes, nessa época, as primeiras reproduções de realidades inanimadas como árvores, flores, conjuntos arquitetônicos... Além do mais, artistas bizantinos foram solicitados — em virtude do brilho e da superioridade técnica, digamos assim, que os muçulmanos também lhes conferiam — a colaborar na construção e decoração das grandes mesquitas omíadas do Oriente.

O período subseqüente (750 - 1258) tem início com a tomada do poder pelos abássidas, que transferiram a capital do Império para Bagdad, de domínio persa. Foi, sem dúvida, o período que aglutinou um maior número de convertidos não-árabes e foi, justamente por isso, o período que mais propiciou a incorporação de valores específicos dos grupos assimilados. No século IX, entretanto, surge em Samarra o arabesco, um tipo de ornamentação especificamente islâmica, cuja dinâmica é dada por um ritmo contínuo. Está presente circundando frases, marcando início de capítulos (sobretudo do Alcorão). “Dialética do ornamento”, para usar a expressão de Burckhardt, o arabesco apresenta em sua estrutura, variações infinitas determinadas principalmente pelo entrelaçamento de planos e linhas que redundam em motivos geométricos e motivos florais e vegetais. De policromia suntuosa, transpõe os mesmos motivos a todos os materiais, mas encontra no livro, lugar de destaque. Os tons de ouro e prata parecem acentuar o lado espiritual, sagrado. Em combinação com as demais cores (verde, azul, amarelo, vermelho...) chegam a provocar a ilusão de um vitral iluminado... Quando utilizadas as cores complementares do arco-íris, elas o são sempre na tonalidade original.

Lentamente, tomou lugar a representação de seres vivos: animais, de início, e mais tarde, esparsamente, a figura humana, localizando-se a primeira, ainda em meados do século VIII, nas paredes do Qusayr Amrah, edificação das estepes desérticas da Transjordânia.

Merecem citação também, as pinturas de Samarra no Iraque e o manuscrito ilustrado do Kitab al-Aghâni [23] de Abu al-Faraj al-Ispahâni, entre outros exemplos conhecidos.

Por volta do século XIII, fruto de diversos aportes e da devida assimilação dos mesmos, os árabes muçulmanos chegam a uma manifestação artística bastante autêntica, propondo um estilo próprio que se concretiza na chamada “Arte do Livro”. Esta compreende a Iluminura, processo consagrado pela ornamentação das páginas e das capas do Alcorão, sobretudo frontispícios e posfácios com motivos decorativos, sem figuração alguma, bastante complexos pelo ritmo e pelo nível de entrelaçamento de motivos decorativos. São frequentes as rosáceas, separando versículos e os inícios de capítulo assinalados por enquadramento decorativo. Há o uso abusivo da douração, o que acentua o caráter sagrado do texto alcorânico e torna a página mais luminosa; daí o termo que a caracteriza — iluminura. A Arte do Livro compreende também a ilustração de manuscritos, através da Miniatura de imagens.

A miniatura será a mais notável arte figurativa árabe. Seu apogeu coincide com o apogeu da Civilização Árabe e seu declínio acompanha a trajetória dos árabes, a partir da chegada dos mongóis a seus domínios (1.258).

As obras mais representativas da Arte do Livro são [24] dois exemplares das Maqâmât de Al-Hariri [25] . O primeiro data de 1.225 - 1.235 e o segundo, de 1.237. Atribui-se o primeiro a um desconhecido; o segundo consagrou definitivamente Al-Wasiti, calígrafo e pintor que o copiou e ilustrou.

A fascinação destas pinturas de acentuada influência persa (mais freqüente entre os shiitas que entre os sunitas), reside no poder de evocar — detalhando-os — aspectos contemporâneos da vida árabe, seja um povoado, uma caravana, uma procissão de peregrinos, uma barcaça no Eufrates, ou um navio no Golfo Pérsico... Portanto, além da beleza plástica, encerram um valor adicional: têm um caráter documental do modus vivendi da época, realmente incomparável.

Ao analisar as múltiplas influências culturais incidentes particularmente na Arte Árabe, verifica-se que a supremacia persa é incontestável. Entretanto, é de suma relevância a influência generalizada pelo Império Árabe (seja no Oriente, seja no Ocidente), de uma visão cristã marcada pela iconografia de povos evangelizados. [26] Deve-se lembrar ainda, que na senda da influência persa e cristã, desenvolveu-se, no plano da arte dramática, um certo tipo de teatro, a ta’ziya. [27]

Muito embora tenha se realizado, a conquista da arte figurativa e seu conseqüente desenvolvimento até o presente, entre os árabes muçulmanos, nunca teve um percurso tranqüilo, ainda que se verificasse sempre no âmbito profano. Suscitou sempre acirradas polêmicas e acaloradas discussões acerca de interpretações dogmáticas de base.

Houve, evidentemente, níveis diferentes de aceitação e de restrição à imagem ao longo do tempo: a região da Pérsia, por exemplo, mostrou-se mais liberal que as regiões de substrato semítico; houve uma atitude marcadamente moralizadora nos primeiros tempos do Islão, com vistas a extirpar de seu universo, a idolatria, contrastando com a abertura maior do século XII. E — retomando Grabar — “a heterodoxia shiita mostrou-se mais permissiva que a ortodoxia sunita”. [28] Contudo, pairou sempre, sobre a mão do artista — ainda que de modo não canonicamente explícito — certo desprezo pela imagem.

Uma análise porém, ainda que superficial do âmbito da Arte, dá-nos a certeza de que há uma unanimidade, uma horizontalidade que atravessa a globalidade árabe: a importância do signo, da escrita como o veículo máximo da simbologia islâmica.

2. A Caligrafia: Arte Árabe-Islâmica por Excelência

A sacralidade do árabe, como meio de propagação da Palavra, dá-se inicialmente na escrita, enquanto a língua oral permite uma manifestação no tempo do Texto Eterno. O próprio Alcorão confere à escrita e à caligrafia (em árabe expressas significativamente pela mesma e única palavra khat) a máxima dimensão hierática, sobrelevando o cálamo que as produz, como em 96, 3, 4 e 5: “Recita! Teu Senhor é o Generosíssimo que ensinou o uso do cálamo, ensinou ao homem o que ele não sabia”.

Por manter viva a Palavra, é o cálamo o instrumento de Deus, e como tal, convoca a máxima reverência. Assim se inicia a sura denominada O Cálamo(68,1), em que Deus jura pelo cálamo:         “Pelo cálamo e pelo que escrevem!

A Caligrafia define-se por um dinamismo grafofônico, na medida em que é escrita para ser ouvida no silêncio da fé que leva ao Islam. E é poesia para ser vista, contemplada, pela harmoniosa concepção do signo como unidade estética. Capaz de abarcar pelo conteúdo e pela forma, a mensagem enviada por Deus, encontra, na mesquita, seu lugar natural.

A mesquita — não há altares, não há imagens, mas há letras árabes em toda parte. Esses sinais, curiosamente revoltos e cursivos aparecem pintados e esculpidos nas paredes, tecidos nos tapetes e nos medalhões que pendem do teto. A letra árabe é a razão de ser da mesquita. Por ser uma casa da escrita, é a mesquita uma casa de Deus. A mesquita é uma casa de leitura, porque leitura é prece.” [29] .

Expandindo ao fiel, o caminho da ascese, a Palavra escrita e recitada convoca-o pela fé, pela razão e pela emoção, permitindo-lhe o encantamento e quiçá, o encalço paroxístico do Absoluto.

Exercendo as funções  iconográfica e ornamental, a Caligrafia busca — pelo ritmo e pela cadência; pelo sentido e pela forma hierática — conferir ao ambiente sagrado do muçulmano uma dimensão imponente de inteligência e beleza, adequada ao encontro com Deus. Ritmo e cadência obtidos pela repetição das letras, das palavras, das frases, pela repetição que é o arabesco, muitas vezes associado à caligrafia.

Pertinente também aqui, a palavra de Jamil A. Haddad que nos recorda “o dhikr, a repetição ininterrupta pelos tempos infinitos do nome de Allah em que o crente se anestesia apenas com a repetição do nome de Deus que leva ao êxtase, o que, em definição rápida, é o contacto direto, imediato com Deus, dispensando intermediários”. [30]

Dada sua estatura religiosa e considerando sua infinita gama de qualidades estético-estilísticas, a Caligrafia não se restringe apenas à mesquita: faz parte do ambiente didático da madrassa [31] ; entra na composição decorativa da cerâmica, da tapeçaria e de mosaicos; alça-se aos cimos de monumentos e palácios; chega às tumbas; adquire, por vezes, no entanto, o caráter documental de uma época, pela celebração de nomes e de feitos de governantes; integra pergaminhos e livros científicos e literários, participando, assim, de instâncias que a fazem penetrar também no domínio do profano. O grande calígrafo Hassan Massoudy chega a afirmar que “em nenhuma tradição a letra esteve tão intimamente misturada ao cenário da vida” [32] .

Das artes visuais do Islão, é a Caligrafia a mais nobre. E a de fundamento e concepção mais peculiares. Está longe de ser uma arte em substituição à imagem, esta, como dissemos, mal vista por um Islão em que o combate ao politeísmo e ao totemismo é um ponto fulcral de doutrina. A Caligrafia é antes uma arte em que a letra — o signo — se faz imagem.

Para além de seu significado hierático adquirido a partir do Islão, as razões de valorização do signo encontram-se na mais longínqua Arábia pré-islâmica.

Impõe-se aqui, o percurso que leva de volta à realidade primeira do homem árabe, ao nomadismo, ao âmago da Península que proporciona a intimidade com o deserto. Deserto que parece ser o manancial do questionamento e da resposta; da angústia; do sofrimento; da coragem, mas também da beleza; sobretudo por ser o mentor do encontro do homem consigo mesmo, sem outra mediação, a não ser a do silêncio que, eloqüentemente, o povoa.

Nesse mundo de ausência, de vital impacto com seu ser mais íntimo, a gente do deserto previne-se contra tudo o que, de certa maneira, se liga ao mundo do visível, preferindo a visão interior à representação clara e manifesta.

Hassan Massoudy — ele mesmo um homem do deserto — caligrafou, certa vez, em vários estilos, a sugestiva frase: Al tukhaiulát ahámm min al-ma’rifa” (A imaginação é mais importante que a realidade) [33] .

Com efeito, num mundo habitado por miragens, a imagem ganha contorno de mentira, de fantasia; não tem significado real. É o deserto, o mundo do invisível; e, principalmente, um mundo sônico.

Os meios de expressão artística, já na primitiva realidade árabe, são, compreensivelmente, a música e a poesia: duas vertentes essenciais que procedem do espírito  e a ele retornam, suprindo a necessidade de beleza e de ligação com o mundo de que todo homem não prescinde; o errante em particular.

A palavra avulta em importância por materializar a poesia que se mistura ao canto e com ele freqüentemente se identifica. Ligado muito mais ao tempo que ao espaço, o homem do deserto aproxima-se da realidade por meio de signos abstratos que se traduzem, desde sempre, na forma de dizer, de escrever e de entoar...

O agudo senso rítmico, típico do nômade — que se manifesta na marcha, na dança, na música — encontra sua expressão mais justa na prosódia árabe, chegando à retórica e à poesia, através de uma expansão de pensamento que adquire precisão por meio de paralelismos e inversões de raciocínio estritamente interligados.

O Alcorão surge como que determinado por e para essa realidade. “A originalidade do Profeta do Islão — completa Chelhod — viria precisamente do fato de que ele soube deixar-se absorver por seu meio e por seu tempo, como soube compreender as aspirações de seus seguidores a uma nova ideologia. Assim, dotou-os de uma religião melhor adaptada a seus costumes e sua cultura, do que teria sido um sistema vindo de fora [34] .

Não-raro, as comparações e imagens de que se vale o Alcorão para fixar preceitos, correspondem a elementos familiares ao povo árabe. Tomemos, para exemplo, a Sura 24, versículo 39, em que os empreendimentos dos infiéis são comparados à miragem (kassaráb): “As obras dos infiéis são como miragem no deserto: o muito sedento pensa que é água, até que lá chegando, não encontra nada”. Por outro lado, “que é, de início, o próprio Alcorão — indaga Massoudy — senão uma música, um discurso cadenciado, destinado a ser aprendido de cor, quer dizer, conforme o ritmo do coração que bate, o ritmo dos passos do caminhante ou de sua montaria?...” [35] .

Pode-se dizer que o Alcorão tem uma “ossatura árabe”, tanto no que se refere à matéria simbólica de seu conteúdo, quanto à de sua forma. A massa conceitual parece moldar-se pelo quotidiano, pela língua e pela mentalidade do árabe/beduíno. A forma de expressão — cifrada — ainda que lembre a poética, remete a uma ancestralidade semítica, evidente já no dizer do apóstolo Paulo, quando afirma que os semitas buscam sinais, contrapondo-se aos gregos que pedem sabedoria de argumentação racional (I Cor. 1, 22).



[1] Este trabalho recolhe - a título de amostra - as primeiras páginas do livro da autora A Caligrafia Árabe, São Paulo, Martins Fontes, 1999.

[2]   Em árabe, a mesma palavra khat indica o escrever e o belo escrever.

[3] Muito embora o signo seja valorizado desde remota época pré-islâmica em terras do Oriente. Deve-se dizer também que a Caligrafia “ainda não codificada nasceu entre 644-655 para fixar o Alcorão em seu posto miraculoso” (cf. Khatibi A, e Sijelmassi, M. - L’Art Calligraphique de L’Islam, Paris, Gallimard, p. 18).

[4]   Do árabe Islam, que significa “submissão a Deus”.

[5]   Por exemplo, na sura 41, versículo 3 e sura 12, vesículo 1-2.

[6]   A propósito, Khatibi e Sijelmassi questionam-se: “Comment transcrire une langue miraculeuse sans en trahir la perfection sous-entendue?” (L’Art de la Calligraphie... op. cit.), ao que acrescenta T. Burckhardt: “The miracle of Islam is the Divine Word directly revealed in the Koran and ‘actualized’ by ritual recitation” - Sacred Art in East and West, Middlesex, G. Britain, Perennial Books Ltd, p. 117.

[7] Joseph Chelhod - Les Structures du Sacré chez les Arabes, Paris, Maisonneuve et Larose, 1.986.

[8] A própria shahádah (manifestação que reúne semanticamente os significados de testemunho e de convicção) em sua formulação tão simples - “La Iláh ílla Allah/Não há Deus senão Deus” (a enunciação da tawhyd/unicidade), é suficiente para converter-se ao Islamismo.

[9]   Em virtude desse fato, é compreensível que o grande renascimento cultural do século XII, no Ocidente, tenha se verificado a partir dessas traduções  para o latim.

[10] O Islão, como se sabe, traz em seu bojo, dois grupos  que se distinguem, em princípio, pela interpretação do mecanismo de sucessão de Muhammad na liderança do mundo islâmico: o sunita e o shiita. Entretanto, ambos voltam-se infalivelmente para o Texto de onde tudo partiu: a fé e o princípio de vida.

[11] O dhikr é, antes de mais nada, a repetição, adimitindo também os sentidos de lembrança e até de estudo.

[12] Oportuna, aqui, a constatação de Palomba, G. - (...) “La tradizione islamica è providenziale per il fatto che fornisce la possibilitá d’intuire una forma spazio-temporale diversa de quella plastica” - Genesi e Struttura della Moderna Società, Napoli, Giannini, 1.961, p. 16.

[13] Já no Velho Testamento (Ex. 20, 4), encontra-se o temor da figuração dentre outros grupos, notadamente semíticos: “Não farás imagem talhada, nem qualquer representação das coisas que estão no céu e na terra ou nas águas sob a terra”.

[14] Considerado pelos árabes como o período da Jahiliya, isto é, da ignorância (no caso, quanto à Revelação alcorânica).

[15] Hadiths, entre nós, tradições, são compilações que se referem à conduta e à fala do Profeta Muhámmad. São fontes religiosas, embora sem a mesma força das leis do Alcorão.

[16] -  Aliás, khalaqa é a ação criadora (especialmente a de Deus), literalmente criar no sentido de formar!

[17] -   Coube aos cristãos, por influência européia no Oriente Médio, em meados do século passado, criar o teatro árabe com as características que o definem no Ocidente.

[18] -   Cf. Ananda K. Coomaraswamy - The Transformation of Nature in Art, New York, Dover Publications, 1.934, p. 5.

[19] -  Cf. A. Coomaraswamy, The Transformation... op. cit., p. 5. A esse respeito, cabe também a observação que faz Frithjof Schuon: “(...) o ícone, como o yantra hindu e qualquer outro símbolo visível, estabelece uma ponte entre o  sensível e o  espiritual: ‘Pelo aspecto visível — diz São  João  Damasceno — nosso pensamento deve-se envolver por um élan espiritual e elevar-se até a invisível majestade de Deus’ “ - De L’Unité Transcendante des Religions, Paris, Gallimard, 1.948, p. 89.

[20] - Cf. M. Aziza L’Image et I’ Islam, Paris, Albin Michel, 1.978, p. 45.

[21] -  Ano da Hégira, i. é,  fuga de Muhámmad de Meca para Medina, onde tem início o processo de unificação da Península Arábica e de divulgação da fé islâmica. É considerada esta data de nossa era como o Ano I da Era Islâmica.

[22] -  A grande comunidade dos fiéis muçulmanos. Note-se que a raiz de ‘umma é a mesma de  ‘umm - mãe.

[23] - Literalmente Livro dos Cantos ou Cancioneiro que reúne a produção poética conservada do período da Jahiliya.

[24] -  Cf. Aziza, M. - L’ Image... op. cit, p. 54.

[25] -  Autor nascido em Basra, no Iraque em 1.053. O sentido de Maqâmât, comumente traduzido por Sessões remete tanto ao lugar onde as pessoas põem-se a conversar, como à própria conversação. As Maqâmât não são narrativas comuns. Trata-se de uma sucessão de cinqüenta contos, desenvolvendo-se cada um em ambiente distinto do outro. O herói, Abu Zayd, é um sofisticado aventureiro que encanta os ouvintes com a máxima eloqüência. Na verdade, as Maqâmât exploram profundamente os infinitos recursos da Língua Árabe, permanecendo, fundamentalmente, intraduzíveis. Os temas são variados: às vezes, de forma velada, o autor ataca habilmente a moral de seu tempo.

[26] -  A esse respeito, O. Grabar afirma: “É provável ou certo que (...) a grande maioria dos primeiros monumentos islâmicos da Síria-Palestina foi edificada, concebida e decorada por operários e artistas cristãos, ou ainda, formados na tradição cristã pré-islâmica”. (La Formation de l’ Art Islamique, Paris, Flammarion, 1.987, p. 115). Note-se ainda, a propósito, que há influência recíproca cristã/muçulmana/cristã, pelos vestígios que se encontram na Sicília e na Espanha — para citar apenas os centros ocidentais mais envolvidos. Assim é que — ignorando-se o sentido — a frase alcorânica La Iláh illa Allah  serve de adorno à imagem da Virgem Maria em vários templos. Também Bismillah (Em nome de Deus)  aparece aplicada em várias cruzes pela beleza plástica da escritura em árabe.

[27] - Ta’ziya, literalmente, consolação, é a transposição persa dos mistérios medievais do Ocidente, embora deles se diferencie no espírito e na forma. A ta’ziya encontra sua máxima expressão em O drama de Kerbela: “Enquanto teatro, a ação está longe de vivenciar momentos presentes classicamente numa tragédia, que incluem exposição, desenvolvimento e clímax de um conflito propulsionados por oposição de vontades. A ação de O drama de Kerbela, pelo contrário, restringe-se ao monótono relato linear, resignado e lamuriento das desventuras da família do Profeta, tendo como momento paroxístico, a decapitação de Hussain”. (Hussain, como se sabe, é filho de Fátima e Ali, portanto, neto de Muhámmad. É considerado mártir pelos Shiitas). Cf. artigo de Hanania, Aida R. e Lauand, L. Jean. - “O teatro islâmico — o drama de Kerbela”, Revista de Estudos Árabes, ano III, nº 5/6, Centro de Estudos Árabes, DLO / FFLCHUSP, 1.995, pp 10 e 11.

[28] La Formation... op. cit., p. 101. A propósito, lembre-se que a doutrina shiita funda-se na interpretação alegórica do Alcorão, o que a predispõe à aceitação maior da imagem.

[29] -  Na inspirada formulação de V. Flusser, em seu artigo  “Ex Oriente Lux”, citado por Lauand, L. Jean. - “Escrita e Caligrafia Árabes - A arte de H. Massoudy” na Revista de Estudos Árabes, Ano I, nº 2, Centro de Estudos Árabes, DLO/FFLCHUSP, 1.993, p. 31.

[30] -  “Interpretação das Mil e Uma Noites” - Revista de Estudos Árabes, Ano I, nº 2, p. 53 e ss. Cabe dizer aqui que “mesmo o fiel analfabeto mas que conheça bem o Alcorão, pode, reconhecendo uma ou outra palavra, adivinhar a sura de que foi extraída. A Caligrafia desempenha o papel que os vitrais cristãos da Idade Média exerciam junto do povo simples que sabia reconhecer neles quaisquer personagens da Bíblia” - Caligraphie Arabe Vivante, Paris, Flammarion, 1.981, p. 153.

[31] -  Em árabe, escola, sobretudo no sentido da escola agregada à mesquita, preocupada com o estudo alcorânico.

[32] -   Hassan Massoudy, Le Chemin d’un Calligraphe, Paris, Phébus, 1.991, p. 11.

[33] -   Estas caligrafias constam do Caderno-base do trabalho de divulgação do artista.

[34] -   J. Chelhod - Les Structures du Sacré... op. cit., p. 11.

[35] -   Hassan Massoudy, Le Chemin... op. cit., p. 10. Note-se que o artista, no original francês joga com o duplo sentido de coeur em par coeur e coeur qui bat (acumulação semântica que se dá também no nosso de cor, embora para nós menos evidente). O artista imprime assim como que um ritmo a sua própria expressão.