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Jean Lauand
Prof. Titular FEUSP
jeanlaua@usp.br

 

Neste estudo, após discutir o peculiar papel exercido no filosofar (diferenciando o filosofar das ciências [1] ) pela linguagem - elemento metodológico principal na articulação linguagem-pensamento-realidade -, apontam-se alguns aspectos metodológicos do pensamento de Josef Pieper, especialmente a atenção que dedica à acumulação semântica, característica da linguagem e pensamento árabes.

Cada ciência estuda seu objeto sob um determinado ponto de vista: volta-se para um determinado aspecto e o resto não lhe interessa. Assim, uma mesma realidade, por exemplo, o homem, é vista por diferentes ciências, sob pontos de vista distintos: um é o enfoque da Medicina; outro, o da Psicologia; outro ainda, o da Sociologia etc.

O objeto de estudo de uma ciência e, sobretudo, seu peculiar ponto de vista condicionam, como é óbvio, a metodologia dessa ciência: de nada adiantam a compreensão empática para o matemático enquanto tal, nem teoremas para o historiador (e, quanto ao instrumental, o astrônomo vale-se de um telescópio e não de um microscópio; o físico, ao contrário do matemático, dispõe de um laboratório, etc.).

Certamente, a questão do método das ciências não é tão simples: há, por exemplo, muita discussão sobre os procedimentos de descoberta e justificação de um resultado científico. Quando, porém, se trata do filosofar - tal como foi concebido pelo pensamento clássico - a questão torna-se ainda mais problemática. Pois o filosofar não pode ter a operacionalidade metodológica que podemos encontrar, em maior ou menor grau, no pensamento científico.

E isto, precisamente pelo fato de que o filosofar pergunta "o que, em si e afinal, é isto" [2] , não se limitando a um "ponto de vista", mas - como certa vez afirmou Whitehead -, filosofar é indagar "What is it all about?" [3] , indagar pelo todo que se relaciona com este objeto.

Não esqueçamos, por outro lado, que precisão - etimológica e realmente - significa recorte. A ciência é precisa, na medida em que diz: "interessa-me este aspecto da realidade (e o resto não me interessa)"; já o filósofo, quando pergunta por uma realidade - por exemplo, "o que é o homem?" -, ele não se restringe a um determinado ponto de vista, mas abre-se omnidimensionalmente ao ser, ao que, em si e em seus últimos fundamentos, tal realidade (o homem, a arte, a vida, ou o que for) é.

É essa amplitude de perspectiva que torna o filosofar problemático: ele não tem, de modo algum, uma metodologia "bem-comportada". Para além de qualquer operacionalidade, filosofar é "um processo existencial que se desenvolve no centro do espírito, um ato espontâneo que surge da vida interior" [4] e depende, fundamentalmente, como afirmou T. S. Eliot [5] , de insight and wisdom, intuição e sabedoria, disponibilidade para as grandes experiências - para Pieper, o filosofar parte da experiência [6] - sobre o homem e o mundo [7] , nas quais a realidade se revela.

Porém - e aí reside uma peculiar dificuldade para quem filosofa - essas experiências especialmente densas não têm brilho duradouro na consciência reflexiva: logo se desvanecem, desfazem-se, escapam-nos. Não chegam, contudo, a se aniquilar; condensam-se, escondem-se, transformam-se, depositam-se... na linguagem [8] , na linguagem comum, essa que o povo fala todos os dias.

Daí a extraordinária importância das línguas para o filósofo, que, como certa vez afirmou T. S. Eliot, deveria estar familiarizado com todas as línguas [9] : para resgatar a sabedoria nelas embutida. Pois, na verdade, as palavras têm um potencial expressivo muito maior do que podemos imaginar, quando delas fazemos um uso tão familiar e quase automático.

Essas convicções, subjacentes à tradição de pensamento filosófico clássico [10] , vinculam fortemente a metodologia do filosofar à análise da linguagem.

Exemplifiquemos com algumas concretizações desse voltar-se para a linguagem, que é o filosofar de Pieper.

Em primeiro lugar, quem filosofa anda muito atento à especificidade semântica distintiva de cada palavra em relação a seus "sinônimos": se, digamos, casa, lar, residência etc. apontam para uma mesma e única realidade objetiva [11] , cada um daqueles sinônimos enfatiza um aspecto determinado, insubstituível em certos contextos: não se pode dizer, por exemplo, "residência, doce residência!"....

Nesse sentido, Pieper indica uma importante "regra metodológica" [12] : uma palavra está sendo empregada em seu sentido próprio somente quando não pode ser substituída por outra (por nenhum de seus sinônimos) sem que ocorra alteração de sentido [13] .

A clareza e a distinção do pensamento estão, sem dúvida, condicionadas por esse "poder de definição", pela "resolução" de cada língua e, certamente, o filósofo há de estar maximamente atento a essas inflexões de sentido. E vemos Pieper extrair as mais decisivas conseqüências filosóficas sobre a esperança, a partir do fato de que a língua francesa dispõe de dois vocábulos distintos para esperança: espoir e espérance: o primeiro tende ao plural, às "mil esperanças" na vida; o segundo dirige-se à única e decisiva esperança, a de "sair-se bem" simpliciter [14] .

Ao contrário do que à primeira vista poderia parecer, não só a distinção é importante. Algumas das mais brilhantes contribuições de Pieper para o pensamento filosófico estão em indicar a "confusão" na linguagem, que nos leva à "confusão" no pensamento e que, afinal, correspondem ao fato de que a própria realidade é também "confundente".

Essa atenção ao confundente no sistema linguagem-pensamento-realidade é uma dimensão da forma de pensamento árabe na análise pieperiana. Pois, precisamente essas riquezas e possibilidades do pensamento confundente [15] são típicas das línguas semíticas (como o árabe ou o hebraico), nas quais a mesma palavra ou, mais amplamente, o mesmo radical tri-consonantal [16] , confunde (de um ponto de vista ocidental), em si, diversos significados, oferecendo-nos a oportunidade de apreensão de relações de significado até então insuspeitadas.

É o caso, por exemplo, do radical S-L-M da palavra salam (ou, em hebraico, Sh-L-M de shalom), que o ocidental costuma traduzir por paz. Em torno desta raiz, S-L-M, confundem-se na linguagem - e no pensamento... [17] -, entre muitos outros, os significados de: integridade [18] no sentido físico e moral (SaLyM é o íntegro); saúde (e fórmula universal de saudação), normalidade (o plural SáLiM na gramática é o plural regular); salvação ("sair-se são e salvo", mas também salvação no sentido religioso); submissão, aceitação (de boa ou má vontade), daí iSLaM e muSLiM (muçulmano); acolhimento; conclusão de um assunto; paz etc.

Exemplifiquemos com um contexto familiar ao leitor, o da Bíblia. Nela encontramos o radical S-L-M "confundindo" (do ponto de vista das línguas européias) diversos conceitos, para o pensamento ocidental totalmente distintos. Assim, de Salomão (SaLuMun), Deus diz a seu pai Davi (este, sim, um homem de guerras): "Este teu filho será um homem de paz, pois Salomão é o seu nome" (I Crn 22,9). E Deus, apesar da infidelidade do rei, mantém a integridade, a união do reino de SaLuMun e diz: "Todavia, não tirarei da mão dele, parte alguma do reino..." (I Reis 11, 34). S-L-M, concluir, acabar. No livro de Esdras, encontramos Sesabassar encarregado da construção do templo "que ainda não está concluído" (Esd 5, 16). S-L-M, entregar completamente, colocar ao inteiro dispor: "Deposita diante de Deus, em Jerusalém, os utensílios que te foram entregues, para o serviço do templo do teu Deus" (Esd 7, 19). Etc. etc.

No filosofar de Pieper, encontramos importantes passagens, marcadas por esse modo de pensamento, que se assemelha à forma de pensamento árabe.

Pieper mostra, por exemplo, que não há radicalmente duas felicidades, mas uma só: a Felicidade definitiva, a bem-aventurança final, que é já prefigurada e dada em participação nas felicidades desta vida presente. Pieper cita a sentença de Tomás: "Assim como o bem criado é certa semelhança e participação do Bem Incriado, assim também a consecução de qualquer bem criado é também certa semelhança e participação da felicidade definitiva" [19] . Tal tese verifica-se na linguagem e Pieper, agudamente, aponta em seu tratado sobre a felicidade que, quando as diversas línguas eliminam a distinção entre uma felicidade sublime e as felicidades banais, estão, no fundo, fazendo uma acertada confusão que espelha a realidade! [20] .

Um outro exemplo, ainda mais sugestivo para o nosso caso: quem quer que se pergunte, filosoficamente, "O que, em si e afinal, é o amor?" deve atentar não só para as infinitas distinções de que as línguas grega, latina e neo-latinas dispõem, mas, sobretudo, para as riquíssimas possibilidades confundentes da língua alemã que, não dispõe senão de um único e confundente substantivo: Liebe.

"Assim usamos Liebe para expressar a preferência por uma determinada qualidade de vinho, como também para designar o solícito amor por uma pessoa que está passando por dificuldades; ou ainda para a atração mútua entre homem e mulher; ou a dedicação do coração a Deus. Para tudo isto, dispomos de um único substantivo: Liebe. (...) Esta manifesta, ou simplesmente aparente, pobreza do vocabulário alemão oferece-nos uma oportunidade especial: a de enfrentar o desafio, imposto pela própria linguagem, de não perder de vista aquilo que há de comum, de coincidente entre todas as formas de amor" [21] . Por esse caminho, pode Pieper chegar à caracterização do amor como aprovação e a sua genial formulação: Amar é dizer "Que bom que você exista!".

O filosofar de Pieper, centrado na linguagem e aberto para a totalidade do real, oferece-nos, concretamente, uma rica possibilidade de diálogo entre Ocidente e Oriente.



[1] Para o tema da distinção entre filosofia e ciência, ver PIEPER  Offenheit für das Ganze,  Essen,  Fredebeul & Koenen, 1963.

[2] "Was ist `dieses' überhaupt und im letzten Grunde?" PIEPER  Was heisst Philosophieren, München, Kösel, 1980, 8a. ed., p. 63. Na mesma linha de Platão, Teeteto 175.

[3] A conhecida sentencia de Whitehead ("Remarks"  Philosophical Review 46, 1937, p. 178), freqüentemente citada por Pieper.

[4] "Ich meine mit dem philosophischen Fragen einen existentiellen, in der Mitte des Geistes sich zutragenden Vorgang, einen spontanen, dringlichen, gar nicht zu unterlassenden Akt des inneren Lebens". Verteidigungsrede für die Philosophie,  München, Kösel, 1966, p.28

[5] "Insight and Wisdom in Philosophy", prefácio a PIEPER Leisure the Basis of Culture, London, Faber & Faber, 1952, p. 16.

[6] "Experiência é conhecimento com base no imediato contato com a realidade", um sentido muito mais rico do que o que lhe é conferido por um cientificismo que identifica experiência com aquilo que possa ser expresso científica ou protocolarmente. PIEPER  Verteidigungsrede... p. 116 e ss.

[7] PIEPER  Offenheit für das Ganze,  Essen,  Fredebeul & Koenen, 1963, p.7.

[8] Certamente, não só na linguagem; Pieper indica também, como depositários dessas informações essenciais que se escondem nas "grandes experiências": as instituições (como, por exemplo, a Universidade, que Pieper analisa em Offenheit für das Ganze) e modos de agir humanos (o próprio filosofar é um exemplo privilegiado, como Pieper mostra em Was heisst Philosophieren).

[9] E vemos Pieper às voltas com a "sabedoria oculta" não só em sua língua alemã, mas também no grego e no latim (por exemplo no Cap. I de Glück und Kontemplation), no inglês (p. ex. em Überlieferung, p. 28), no francês (p. ex. em Hoffnung und Geschichte, p. 30), no russo (p. ex. em Lieben, Hoffen, Glauben, p. 42), no indiano (p. ex. em Überlieferung, p. 40) etc.

[10] Compartilhadas, por exemplo, pelos quatro grandes antigos e medievais: Platão, Aristóteles, Agostinho e Tomás.

[11] Situada à rua Tal, número tal.

[12] Neste parágrafo, sigo as reflexões de Pieper em Verstehen, Freiburg im Breisgau, IBK, pp. 1 e ss.

[13] Por exemplo, só nos damos conta da especificidade (semântica e existencial) do "compreender" - captação não só do conteúdo objetivo de uma mensagem (o que também é expresso, por exemplo, por um sinônimo como "entender"), mas também do alguém pessoal, vivo e concreto, que a emitiu - quando verificamos que há certos contextos de linguagem (p. ex.: "Não quero dinheiro, quero compreensão") em que a palavra não se deixa substituir, sem alteração de significado, por nenhum "sinônimo".

[14] Hoffnung und Geschichte, München, Kösel, 1967, p. 30.

[15] Tomo a expressão "pensamento confundente de Ortega e de J. Marías. Deste último são as seguintes considerações: "Uma das mais interessantes descobertas de Ortega y Gasset é a do pensamento confundente: confundir é uma função tão necessária quanto distinguir, porque permite descobrir as conexões entre realidades que, por outro lado, é necessário distinguir (...) Muitas vezes me tenho referido à vaguíssima e estupenda palavra de nossa língua `bicho' - Palavra exasperante para um zoólogo, creio que estão classificadas umas oitenta mil espécies de coleópteros -, que permite designar inúmeras espécies animais, prescindindo de suas diferenças. Se estou lendo ou escrevendo e entra um inseto pela janela - como no poema de Dámaso Alonso -, não poderia tomar facilmente uma decisão de conduta, se tivesse que comportar-me com ele de acordo com sua espécie. Mas, o que quero é unicamente tirá-lo daqui, e tenho que tratá-lo como `bicho' sem estabelecer outros questionamentos" - La felicidad humana, Madrid, Alianza Editorial, 1988, pp.16-17.

[16] Como se sabe, o radical tri-lítere é que é a alma da palavra semita. Cfr. Oriente e Ocidente: língua e mentalidade (em colaboração com a Profa. Dra. Aida Rámeza Hanania), São Paulo, Centro de Estudos Árabes FFLCH-USP/Apel, 1993, p. 19 e ss.

[17] Confundem-se na linguagem, no pensamento e... na própria realidade.

[18] Nesse sentido primário de Salam/Shalom, como união, integração, remoção de barreiras, entende-se melhor a sentença de Paulo: "Cristo, nossa paz (nosso integrador), que de dois fez um, derrubando o muro que os separava" (Ef 2, 14).

[19] De Malo, 5, 1 ad 5. Todo este parágrafo refere-se à análise feita no Cap. I de Glück und Kontemplation, München, Kösel, 1957.

[20] "Gerade hierin aber, das der eine Name `Glück' so sehr Verschiedenes bennent (...) gerade in dieser immer wieder einmal verwirrenden Gleichnamigkeit bleibt ein fundamentaler Sachverhalt unvergessen und gewahrbar. Ich wage zu behaupten, dass er die Bauform der ganzen Schöpfung spiegle". Glück und Kontemplation, p.30.

[21] PIEPER, J. "O que é o amor?", Revista da Faculdade de Educação USP, vol. 18, No. 2, p. 253-254. No orig.:  Glauben, Hoffen, Lieben, Freiburg, IBK, 1981, p. 24.