Home | Novidades Revistas Nossos Livros  Links Amigos

Modernidade Clássica e Ciência Árabe

 

Roshdi Rashed
(CNRS-Paris)
(tradução: Aida R. Hanania e Jean Lauand)

 

Em 1936, Husserl escreve em seu conhecido estilo: "Sabe-se muito bem que a Europa realiza, no Renascimento, uma viravolta revolucionária: rejeita os modos de existência da Idade Média, que eram seus até então, despreza-os e busca proporcionar-se uma nova forma de liberdade" [1] .

Por "Renascimento", o filósofo designa aqui, mais um conceito ligado à Ciência e à Filosofia que a ela está intimamente ligada do que o utilizado pelos meios literários e humanistas italianos do séc. XV, ou - tal como se encontra mais tarde nos escritos de Erasmo - ligado à renovação da educação e da religião.

"Renascimento" é, pois, um conceito que ganha sentido no fim do séc. XVI e no XVII. Aparece aqui, portanto, associado à Ciência clássica e dotado de uma dupla pretensão: arma de combate e meio de explicação, ou, ao menos, de descrição.

Como arma de combate, a ele recorreram os estudiosos do séc. XVII, tanto quanto os filósofos, para marcar seu distanciamento real ou imaginário com relação aos antigos e promover sua própria contribuição: pense-se, por exemplo, em Bacon, Descartes ou Galileu.

Como meio de descrição, ou até de explicação, o termo "Renascimento", como bem permite entrever Husserl, não existe para designar uma periodização, afinal de contas convencional, mas para descrever um momento deste movimento de libertação intelectual da Europa, desarraigando-se da ignorância e da superstição.

Mas a afirmação de Husserl não está em desacordo com sua época: outros filósofos e historiadores acreditavam firmemente também que "Renascimento", "Reforma", "Revolução Científica" eram os instrumentos mais aptos a descrever a modernidade clássica. Aceita em quase toda parte, esta opinião, entretanto, enraizava-se bem distante no tempo: no séc. XVIII, inicialmente, quando serviu para introduzir a noção de progresso indefinido (como no caso de William Wotton na Inglaterra e Fontenelle na França); depois, no séc. XIX, em que se reveste, com o Romantismo Alemão, de uma dimensão antropológica que não possuía antes. Mas, sejam quais forem as fontes, essa crença coloca a questão central das origens e do desenvolvimento da modernidade clássica como fundamentalmente ligada à Ciência e à sua filosofia.

Mas, por detrás dessa aparente unanimidade, tal crença já estava, de fato, fortemente ameaçada, abalada pelos golpes de um homem do mesmo campo, isto é, também ele influenciado pela escola filológica alemã: Pierre Duhem. Recordo que em razão de sua filosofia das ciências, mas também de suas opções religiosas e políticas, Pierre Duhem era especialmente sensível a uma certa continuidade histórica, bem como ao encanto da Idade Média. Duhem faz remontar a modernidade clássica à Europa do séc. XIV.

Aquela tese foi, em seguida, combatida por Alexandre Koyré e, também, embora sob outros ângulos, nos excelentes trabalhos de Anneliese Maier. Mais recentemente, Marshall Clagett tentou uma solução conciliatória. Mas, deste debate e dos esforços envidados por muitos outros estudiosos ao longo deste século, revelou-se claramente que conceitos como "Renascimento", "Reforma", "Revolução Científica", não dão conta dos fatos que se têm acumulado; e que na formação da Ciência clássica, o séc. XIV deve, de certo modo, eclipsar-se um pouco pelos sécs. XII e XIII, onde os europeus passaram a se apropriar da Ciência helenística, e mais ainda: da Ciência árabe. Ou seja: três séculos antes do "Renascimento"!

A periodização política ou cultural dos historiadores mostra-se, pois, inadequada, quando se trata da compreensão e da análise da modernidade clássica. Por outro lado, a Ciência árabe, ausente, ao menos em pessoa, deste debate, acha-se invocada por meio das traduções latinas de suas obras.

É precisamente esta última questão que eu gostaria de retomar aqui, isto é, a da Ciência árabe (não mais limitada apenas a suas traduções latinas) e da Ciência clássica. Meu objetivo é o seguinte: examinar o que o conhecimento da Ciência árabe pode aportar a uma melhor compreensão, ao mesmo tempo epistemológica e histórica, da Ciência clássica. Esta é caracterizada por dois traços que consideraremos aqui: a nova racionalidade matemática e a dimensão experimental como categoria da prova.

Não é um filósofo como Husserl que invocarei no momento, mas um simples barbeiro, o barbeiro de Bagdad que assim se exprime em As Mil e Uma Noites [2] :

"...E vós tendes em minha pessoa o melhor barbeiro de Bagdad, um médico experimentado, um químico muito profundo, um astrólogo que nunca se engana, um gramático amplo, um perfeito retórico, um lógico sutil, um matemático insuperável na geometria, na aritmética, na astronomia e em todos os requintes da álgebra; um historiador que conhece a história de todos os reinos do Universo. Além disso, eu possuo todas as partes da filosofia; tenho em minha memória todas as nossas leis e todas as nossas tradições, sou poeta, arquiteto...".

Como bem se pode notar, não somente a matemática ocupa um lugar de destaque na Enciclopédia do saber popular nas grandes cidades desse tempo, mas a álgebra figura aí, "em pessoa", com seus requintes.

Ora, o barbeiro nessa passagem reproduz classificações de ciências bem mais elaboradas: as do filósofo al-Farabi, do séc. X; ou de Avicena, no século seguinte, entre tantos outros, que - ao contrário das classificações gregas ou helenísticas - acolhem uma nova disciplina, independente, que possui um título próprio: a Álgebra. A popularidade da Matemática, sua difusão e o papel privilegiado da Álgebra são, pois, características do que convém denominar Ciência Árabe.

Rastrearemos aqui, brevemente, a gênese das principais características dessa matemática árabe. Para tanto, situemo-nos em Bagdad no começo do séc. IX. O projeto de tradução das grandes obras da Matemática helenística está em seu apogeu e apresenta duas características marcantes: tais traduções são tarefa de matemáticos (freqüentemente de destacados matemáticos) e são suscitadas pela mais avançada pesquisa da época.

Tal pesquisa não é inspirada somente por interesses teóricos, mas também pelas necessidades da nova sociedade nos campos da Astronomia, da Óptica, da Aritmética, dos instrumentos de medição etc.

O começo do séc IX é, pois, um grande momento da expansão da Matemática helenística em língua árabe. Ora, é precisamente nesse período e nesse meio (o da "Casa de Sabedoria" de Bagdad) que Muhammad ibn Musa al-Khwarizmi redige um livro com assunto e estilo novos.

E, de fato, é nessas páginas que surge, pela primeira vez, a Álgebra como disciplina matemática distinta e independente. Tal surgimento - e já os contemporâneos se apercebem disso - foi de importância crucial, tanto pelo estilo dessa matemática, como pela ontologia de seu objeto e, mais ainda, pela riqueza de possibilidades que com ela se abrem.

O estilo é, ao mesmo tempo, algorítmico e demonstrativo e, com essa álgebra, imediatamente já se deixa entrever a imensa potencialidade que impregnará a Matemática a partir do séc. IX: a aplicação das disciplinas matemáticas umas às outras. Em outros termos, se a Álgebra, pelo seu estilo e pela generalidade de seu objeto, possibilitou essas aplicações entre os ramos da matemática, estes, por sua vez, pelo número e pela diversidade de suas naturezas, não cessarão de modificar a configuração da Matemática a partir do séc. IX.

Acaba de nascer uma nova racionalidade matemática, que caracterizará a Matemática clássica (e em geral a Ciência clássica).

Os sucessores de al-Khwarizmi empreendem progressivamente a aplicação da Aritmética à Álgebra, da Álgebra à Aritmética, de ambas à Trigonometria, da Álgebra à Teoria euclidiana dos números, da Álgebra à Geometria, da Geometria à Álgebra. Essas aplicações foram sempre os atos fundadores de novas disciplinas ou, pelo menos, de novos capítulos. Assim nascem a álgebra dos polinômios, a análise combinatória, a análise numérica, a resolução numérica de equações, a nova Teoria dos Números, a construção geométrica das equações.

Um efeito dessas múltiplas aplicações é, entre outros, a separação da análise diofantina inteira da análise diofantina racional, que se torna um capítulo completamente independente da Álgebra sob o título: "Análise Indeterminada".

A partir do séc. IX, a paisagem matemática já não é mais a mesma: ela se transforma, ampliam-se seus horizontes. Em primeiro lugar, dá-se uma expansão da Aritmética e da Geometria helenísticas: teoria das cônicas, teoria das paralelas, estudos projetivos, métodos arquimedianos para a medida de áreas e de volumes curvos, problemas isoperimétricos, transformações geométricas; todos esses campos tornam-se objeto de estudo para os mais prestigiosos matemáticos - Thabit ibn Qurra, al-Quhi, Ibn Sahl, Ibn al-Haytham, entre outros -, que, com profundas pesquisas, chegam a desenvolvê-las na linha de seus predecessores ou modificando-a quando necessário. Por outro lado, no seio da própria matemática helenística estruturam-se regiões não-helenísticas.

É esta paisagem nova, com sua língua, suas técnicas e suas normas que, gradativamente, tornar-se-á a paisagem do Mediterrâneo. Tomemos dois exemplos: a análise diofantina racional e a análise diofantina inteira.

O surgimento da análise indeterminada, ou, como se diz hoje, da análise diofantina, como capítulo distinto da Álgebra remonta aos sucessores de al-Khwarizmi, especialmente a Abu Kamil, em seu livro escrito por volta de 880 e traduzido ao latim no séc. XII e ao hebraico, na Itália, no séc. XV. Em sua Álgebra, Abu Kamil está determinado a não se limitar a uma exposição dispersa, mas a realizar uma exposição mais sistemática, apresentando não só os problemas e seus algoritmos de solução, mas também os métodos.

De fato, Abu Kamil trata, numa parte final de sua Álgebra, de trinta e oito problemas diofantinos de segundo grau e dos sistemas dessas equações, quatro sistemas de equações lineares indeterminadas; de outros sistemas de equações lineares determinadas, um conjunto de problemas que remetem às progressões aritméticas, e um estudo destas. Tal conjunto corresponde ao duplo objetivo a que Abu Kamil tinha se proposto: resolver problemas indeterminados e, por outro lado, resolver pela álgebra problemas que eram, até então, tratados pelos aritméticos.

Notemos que é na Álgebra de Abu Kamil que se encontra - que eu saiba, pela primeira vez na história - uma distinção explícita entre problemas determinados e problemas indeterminados. Ora, o exame desses trinta e oito problemas diofantinos, não somente reflete essa distinção, mas mostra, além disso, que a seqüência de apresentação desses problemas não é casual, mas segue uma ordem indicada detalhadamente pelo autor. Assim, os vinte e cinco primeiros são manifestamente todos de um mesmo grupo: ao qual Abu Kamil dá uma condição necessária e suficiente para determinar as soluções racionais positivas. Como por exemplo,

x2 + 5 = y2

Abu Kamil remete o problema ao de escrever um número soma de dois quadrados como soma de dois outros quadrados, por ele resolvido. As técnicas de solução de Abu Kamil mostram que ele sabe que se uma das variáveis pode ser expressa como função racional da outra, isto é. se pode haver parametração racional, tem-se todas as soluções; enquanto, pelo contrário, se a soma nos conduz a uma expressão na qual o radical é incontornável, não se tem solução alguma. Em outros termos, desconhecidos por Abu Kamil, uma curva do segundo grau de gênero 0 não possui nenhum ponto racional ou é bi-racionalmente equivalente a uma reta.

O segundo grupo é constituído por treze problemas em que é impossível parametrar racionalmente; ou - de novo numa linguagem desconhecida por Abu Kamil - eles definem todas as curvas do genero 1, como por exemplo no problema:

x2 + x = y2  

x2 + 1 = z2,

que define uma espécie de quártica, curva de A3 do genero 1.

Cerca de meio século depois, um outro algebrista dá à análise diofantina racional uma extensão jamais atingida anteriormente: trata-se de al-Karaji. Este matemático estabelece um marco importante na história da Álgebra ao formular a noção de polinômio e o cálculo algébrico para polinômios. Em análise diofantina racional, al-Karaji, contrariamente a seus antecessores - de Diofanto a Abu Kamil - não apresenta mais listas ordenadas de problemas com suas soluções, mas organiza sua exposição em torno ao número de termos de que se compõe a expressão algébrica e da diferença entre suas potências. Ele considera por exemplo sucessivamente

ax2n + bx2n-1 = y2,

ax2n+bx2n-2 = y2

ax2+bx+c = y2

Este princípio de organização será, aliás, seguido pelos seus sucessores. Por outro lado, ele leva mais longe a tarefa empreendida por Abu Kamil, que consiste em discriminar tanto quanto possível os métodos para cada tipo de problema.

Destaquemos somente o problema:

x2 + a = y2

x2 - b = z2

que define uma curva de genero l em A3.

Os sucessores de al-Karaji procuraram avançar no caminho por ele traçado; mas não me estenderei mais nesta questão da análise diofantina racional árabe, para retomar o começo e o desenvolvimento da análise diofantina inteira.

No séc. X, assiste-se pela primeira vez à constituição da análise diofantina inteira ou nova análise diofantina, graças à Álgebra, sem dúvida, mas também contra ela.

Com efeito, chegou-se ao estudo dos problemas diofantinos, ao se impor as exigências: por um lado, a de soluções inteiras; por outro, a de proceder por demonstraões do tipo apresentado por Euclides nos livros aritméticos de Os Elementos.

Só pôde surgir essa nova análise diofantina pela combinação explícita - que ocorre pela primeira vez na história - de três fatores: do domínio numérico restrito aos inteiros positivos interpretados como segmentos de retas, de técnicas algébricas e da exigência de demonstração no puro estilo euclidiano.

A tradução da Aritmética de Diofanto propiciou a esses matemáticos, como é natural, não tanto os métodos quanto certos problemas de teoria dos números que nela se encontravam formulados, e que eles não hesitaram em sistematizar e em examinar por si mesmos, contrariamente a seu predecessor alexandrino. Tais são, por exemplo, os problemas de representação de um número como soma de quadrados, os de números congruentes etc.

Assim, os matemáticos do séc. X, como al-Khazin, estudaram os triângulos retângulos numéricos e os problemas dos números congruentes. Al-Khazin apresenta o teorema dos números congruentes de modo equivalente a este:

"Seja a um inteiro natural dado, as seguintes condições são equivalentes:

1) o sistema:

x2 + a = y2

x2 - a = z2

admite uma solução;

2) Existe um par de inteiros (m,n) tais que

m2 + n2 = x2

2mn = a;

nestas condições, a é da forma 4 uv (u2-v2).

É nesta tradição que se situou também o estudo da representação de um inteiro como soma de quadrados. Assim al-Khazin consagra diversas proposições de seu texto a esse estudo.

Esses matemáticos são também os primeiros a lançar a questão dos problemas impossíveis, como o primeiro caso do teorema de Fermat. Este problema, apesar de tudo, não cessou de preocupar os matemáticos que, mais tarde, enunciaram a impossibilidade do segundo caso:

x4+y4=z4.

A pesquisa da análise diofantina inteira não se deteve com seus iniciadores da primeira metade do séc. X. Muito pelo contrário, seus sucessores a retomam em seguida, com o mesmo espírito dos começos.

Ao termo dessa evolução, vê-se crescer, cada vez mais, o recurso aos meios puramente aritméticos no estudo das equações diofantinas.

Com este exemplo da análise diofantina, pretendi ilustrar o papel central da Álgebra concebida por al-Khwarizmi para a fundação e a transformação dessa nova disciplina.

A dialética entre Álgebra e Aritmética permitiu, como vimos, fundar a análise diofantina racional como parte da Álgebra; assim, daí por diante, de al-Karaji a Euler, um tratado de Álgebra conterá sempre um capítulo sobre a análise diofantina racional. Por outro lado, assistimos ao nascimento da análise diofantina inteira, destinada a atender a exigências de demonstração. Vimos, enfim, surgir com estas disciplinas, os elementos de uma nova racionalidade matemática, que admite a infinidade das soluções como verdadeira solução, que permite diferenciar entre vários tipos de infinidade de soluções - as identidades e o número infinitamente grande - e considerar positivamente a impossibilidade, quer dizer, a solução impossível como objeto de construção e de demonstração. Ora, todos estes são precisamente os traços da análise diofantina clássica, tal como concebida e praticada no séc. XVII por Bachet de Méziriac e Fermat. Este último inventa, por volta de 1640, o método da descida infinita que, por sua vez, renovará a disciplina; mas isto é uma outra história.

Entretanto, alguém pode se interrogar: a esta continuidade, por assim dizer, epistemológica, corresponderia uma certa continuidade histórica? E, no caso, qual? Mais concretamente, Bachet de Méziriac seria, no início do séc. XVIII, uma criação ex nihilo?

Detenhamo-nos um pouco nesta questão que interessa a nosso propósito, aqui. Minha resposta consistirá simplesmente em lembrar uma figura, a do mais importante dos matemáticos da Idade Média latina e fonte de muitos escritos do Renascimento: Fibonacci, aliás, Leonardo de Pisa.

Fibonacci (1170 - após 1240) que viveu em Bugia e viajou à Síria, ao Egito e à Sicília, relacionava-se com o Imperador Frederico II e sua corte. Esta corte compreendia arabistas que se ocupavam de matemática árabe, como João de Palermo, ou, simplesmente, arabófonos que se conheciam pelo interesse matemático comum, como por exemplo, Teodoro de Antioquia.

Ora, Fibonacci valeu-se da análise diofantina no Liber Quadratorum que os historiadores da Matemática consideram, com toda justiça, a mais importante contribuição da Idade Média latina em teoria dos números, antes das de Bachet de Méziriac e de Fermat.

O objetivo desse livro, conforme o próprio Fibonacci, é resolver este sistema proposto por João de Palermo:

x2 + 5 = y2

x2 - 5 = z2

Ora, não se trata uma questão qualquer de análise diofantina, mas de um problema que aparece, literalmente, repetidas vezes, nos trabalhos de al-Karaji e de muitos outros. Mais geralmente, os principais resultados expostos no Liber Quadratorum são exatamente os obtidos pelos matemáticos árabes dos sécs. X e XI ou por aqueles que lhes eram muito próximos. Mais ainda, inscrevem-se num contexto matemático idêntico; a teoria das triplas pitagóricas.

Esta conclusão aqui proposta, absolutamente não é nova; um eminente historiador cuja admiração por Fibonacci é incontestável já a antecipara; penso em Gino Loria, que escreve: "Se parece difícil negar que Leonardo de Pisa foi conduzido às pesquisas que acabam de ser resumidas, pelo exemplo de Muhammed ibn Hossein (leia-se al-Khazin), sua dependência com relação a este, surge ainda menos duvidosa, quando se trata da seção seguinte do Liber Quadratorum, a qual trata dos `números congruentes'". O Liber Quadratorum liga-se plenamente à tradição dos matemáticos do séc. X que conceberam a análise diofantina inteira.

O caso de Fibonacci e da análise diofantina não é único, ainda que exemplar, tendo em vista o nível atingido. Este matemático que numa perspectiva de anterioridade está ligado à matemática árabe dos sécs. IX a XI é, visto posteriormente, um típico estudioso dos sécs. XV a XVII da matemática ocidental.

Acabamos de ver, por este exemplo, que a modernidade científica clássica tem suas raízes no séc. IX e que se desenvolveu até fins do séc. XVII: é assim que a análise diofantina racional se prolonga até o séc. XVIII, enquanto a análise diofantina inteira passa por uma nova revolução em meados do séc. XVII.

Vimos, igualmente, que esta modernidade, em seus inícios, está expressa em árabe, que foi transmitida pelo latim, pelo hebraico, e pelo italiano, antes de empreender novas pesquisas significativas. Vimos também que seu núcleo racional enfim, formou-se na álgebra e que suas condições de possibilidade são inerentes à nova ontologia fornecida por esta disciplina.

Estamos, com esta descrição, muito distantes da historiografia dominante, e o termo "Renascimento" parece, ao menos, inadequado ante os fatos.

Voltemo-nos agora ao segundo traço da modernidade científica clássica: normas experimentais como normas da prova. Em resumo: a atenuação da clivagem entre ciência e arte e a mudança das relações entre os dois termos na civilização islâmica (muito mais urbanizada do que as precedentes), teve como principal efeito, a extensão da pesquisa empírica e a gênese de uma noção difusa de experimentação. E de fato, o uso sistemático dos procedimentos empíricos multiplica-se: classificações dos botânicos e dos lingüistas por exemplo; experiências controladas na medicina e na alquimia; observações clínicas e diagnóstico comparado dos médicos. Mas era preciso esperar que se estabelecessem novas relações entre a Matemática e a Física para que uma tal noção, ainda difusa, de experimentação, pudesse ocupar a dimensão devida: uma componente, ao mesmo tempo sistemática e regrada, da prova.

Esta concepção, naturalmente nova, não devia se confundir com a da observação controlada, nem mesmo mensurada em astronomia. É preciso, agora, ordenar o próprio plano da existência dos fenômenos examinados. Ora, é na Ótica que surgiu inicialmente uma tal concepção, antes de ser elaborada na mecânica; ela surge sob esta forma, pela primeira vez, na obra de Ibn-al-Haytham, notadamente em seu livro A Ótica, traduzido em latim no séc. XII e em italiano mais tarde. Reeditado por Risner no séc. XVI, era o livro de referência para todos os estudiosos da Idade Média, como também para Kepler, Descartes e Malebranche, entre tantos outros.

Mas para compreender o surgimento desta nova norma e desta nova prática, recordemos muito rapidamente o projeto de Ibn al-Haytham. Este visa, no conjunto de seus escritos, à realização de um programa de reforma que o levou precisamente a redimensionar, um após outro, os diferentes domínios: ótica, ótica meteorológica, catóptrica, espelhos ustórios, dióptrica, esfera ustória, ótica física.

O ato fundador desta reforma consistia em fazer claramente a separação entre as condições de propagação da luz e as condições de visão dos objetos. Ela conduziu, por um lado, a fornecer suporte físico para as regras de propagação - trata-se de uma analogia matematicamente estabelecida entre um modelo mecânico do movimento de uma bola sólida lançada contra um obstáculo e o da luz - e, por outro lado, levou a uma generalização do uso de procedimentos geométricos e experimentais.

A ótica deixa de ter o sentido de que se revestia, há pouco, entre os gregos: uma geometria da percepção. A partir de agora, ela compreende duas partes: uma teoria da visão - à qual estão igualmente associadas uma fisiologia do olho e uma psicologia da percepção - e uma teoria da luz à qual estão ligadas uma ótica geométrica e uma ótica física. Além de outros efeitos, esta reforma conduziu a problemas totalmente novos, como, por exemplo, o exame da lente esférica e do dioptro esférico, não somente enquanto instrumentos ustórios, mas enquanto instrumentos óticos em dióptrica. Chegou também à criação de uma nova prática de investigação (e do novo léxico correspondente): a da experimentação. Mas o que entende Ibn al-Haytham por experimentação? Encontramos em Ibn al-Haytham tantos sentidos conferidos a esta palavra e tantas funções atribuídas à experimentação, quanto as relações que há entre Física e Matemática. Com efeito, estas se estabelecem segundo diversos modos que, embora não tematicamente tratadas por Ibn al-Haytham, estão subjacentes a sua obra, permitindo sua análise.

Para a ótica geométrica, cuja reforma é obra de Ibn al-Haytham, a única relação entre Matemática e Física é um isomorfismo de estruturas. graças, em particular, a sua definição de raio de luz, Ibn al-Haytham pôde conceber os fenômenos da propagação (incluído aí o da difusão) de maneira tal que esses fenômenos podem perfeitamente ser tratados com recursos geométricos.

Várias montagens experimentais são, então, inventadas para estabelecer o controle técnico das proposições já controladas no plano lingüístico pela geometria. É o caso, por exemplo, das experiências desti-nadas a validar as leis e as regras da ótica geométrica. A leitura dos tra-balhos de Ibn al-Haytham atesta, além disso, dois fatos importantes: em primeiro lugar, certas experiências de Ibn al-Haytham não são simples-mente destinadas a controlar asserções qualitativas, mas também a obter resultados quantitativos; em segundo lugar, a aparelhagem concebida por Ibn al-Haytham, variada e, para a época, complexa, não se reduz à dos astrônomos.

Em ótica física, encontra-se um outro tipo de relações entre Matemática e Física e, em conseqüência, um segundo sentido do termo "experimentação". A intervenção da Matemática efetua-se nesta etapa pela interposição das analogias estabelecidas entre os esquemas do movimento de um corpo grave e os da reflexão e da refração.

Em outros termos, a Matemática é introduzida na ótica física por intermédio dos esquemas dinâmicos do movimento dos corpos graves, eles próprios supostos como já matematizados. É precisamente esta matematização prévia das noções de uma doutrina física que permitiu que elas fossem transferidas ao plano de uma situação experimental. Se bem que provisória, esta situação não deixou de fornecer um plano de existência a noções sintaticamente estruturadas, mas semanticamente indeterminadas, como o esquema dos movimentos de projéteis de Ibn al-Haytham, retomado por Kepler e Descartes.

Um terceiro tipo de experimentação, não praticada pelo próprio Ibn al-Haytham, mas possibilitado por sua reforma e por suas descobertas em ótica, aparece no fim do séc. XIII, com seu sucessor al-Farisi: as relações instauradas entre Matemática e Física visam, neste caso, construir um modelo; por conseguinte, a reduzir, sistematicamente, por meio da geometria, a propagação da luz num meio natural à sua propagação num objeto artificial.

Trata-se, pois, de definir para a propagação entre o objeto natural e o objeto artificial, correspondências analógicas verdadeiramente dotadas de um estatuto matemático, tal como o modelo da esfera maciça em vidro, cheia de água, para a explicação do arco-íris. A experimentação tem, pois, aqui, por função, realizar as condições físicas de um fenômeno que não se pode estudar nem direta, nem completamente.

A estes três tipos de experimentação, poder-se-ia juntar outros. Observemos simplesmente que, a despeito da diferença das funções que promovem, estes três tipos, apresentam-se todos - ao contrário da observação e mesmo da observação astronômica tradicional -, não somente como meio de controle, mas como geradores de um plano de existência a estas noções sintaticamente estruturadas. Trata-se de situações onde o próprio cientista pretende realizar fisicamente seu objeto, para poder pensá-lo: um meio de realizar fisicamente um objeto de pensamento não realizável antes.

Ora, a reforma de Ibn al-Haytham, tanto quanto as normas experimentais requeridas como parte integrante da prova em física, sobreviveram ao autor. De Ibn al-Haytham a Kepler e aos outros estudiosos do séc. XVII, a linha genealógica está assim estabelecida. Neste terreno, igualmente, o conhecimento da Ciência árabe é necessário à compreensão da modernidade clássica: permite não só apreender a introdução das normas experimentais, mas também melhor situar o surgimento, em fins do séc. XVII, de uma outra dimensão, ainda velada, da experimentação: a busca da precisão.

Para concluir, lembremos os dois pontos centrais desta exposição.

Vimos inicialmente que as novas possibilidades oferecidas pela Álgebra estavam na origem de uma nova estratégia e de uma nova racionalidade. Esta estratégia é inerente ao desenvolvimento da própria Álgebra após al-Khwarizmi e em suas relações com outras disciplinas matemáticas. Estratégia que consiste, na Álgebra, em explicitar, cada vez mais, as estruturas e as operações; e, em suas relações com as outras disciplinas, em engajar esta dialética de aplicação que evocamos. Quanto à nova racionalidade, ela se apóia em uma nova ontologia de objeto matemático que torna possível o que antes era impensável: um único e mesmo objeto é passível de determinação geométrica e de uma determinação aritmética ao mesmo tempo; um problema pode ter uma infinidade de soluções verdadeiras; uma solução aproximada é uma solução verdadeira; uma solução impossível é também uma solução verdadeira; uma mesma operação pode se aplicar a objetos diferentes sem nenhuma justificação suplementar, etc.

Assistimos também ao surgimento da nova concepção da prova em Física e vimos como se admite daí por diante que o plano de existência de um objeto físico não é seu plano "natural", mas, simplesmente, o de sua montagem experimental.

Esta nova racionalidade que se pode dizer, em síntese, algébrica e experimental e que caracteriza a modernidade clássica, foi fundada, dissemos, entre os sécs. IX e XII pelos estudiosos dispersos entre a Andaluzia e os confins da China, escrevendo todos em árabe! A apropriação desta nova racionalidade pelos estudiosos europeus começou no séc. XII e uma nova emulação surgirá a partir do séc. XVI, dando lugar a aperfeiçoamentos. Parece, pois, indispensável, para quem queira compreender a modernidade clássica, romper com a periodização traçada pelos historiadores, baseada em um liame causal entre os acontecimentos da história política, religiosa e literária do Renascimento e os da ciência. É preciso, pois, recuperar as verdadeiras trajetórias e abandonar as lendas que puderam induzir a erro, mesmo espíritos tão grandiosos como o de Husserl.



[1] . Crisis, 12

[2] . Les Milles et Une Nuits, trad. A. Galland, Ed. Garnier-Flammarion, (I.426-7).