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Roshdi Rashed
(CNRS-Paris)
(tradução: Aida R. Hanania)
Quando se evoca o Renascimento do século XII, pensa-se, principalmente, no movimento de tradução e de difusão das ciências e da filosofia gregas e árabes no Ocidente latino. Com efeito, vêm imediatamente à lembrança, os nomes dos diferentes centros deste movimento na Andaluzia, em Constantinopla, nos reinos do Oriente dos cruzados, na Itália e na Sicília. Mas, enquanto cada um dos primeiros centros está associado a uma língua, a partir da qual se fazia tradução - o grego ou o árabe - a Sicília, por sua vez, encontra-se ligada às duas ao mesmo tempo. Nada há, todavia, de surpreendente nisso: a vantagem da Sicília é, manifestamente, característica de sua geografia e de sua história. São elas, na verdade, que nos fazem compreender as relações que a Sicília mantinha com Bizâncio e com o Islão. Elas explicam, também, a presença, ainda no século XII, em meio à população siciliana, de falantes de grego bem como de árabe.
Província do Islão durante dois séculos, a Sicília tinha formado já muitos eruditos, antes da conquista normanda. A presença de uma comunidade islâmica, muito tempo depois dessa conquista, como também uma política deliberada dos conquistadores, asseguraram ao árabe - ao lado do grego e do latim - sobrevivência no seio da população e na administração. Mais ainda: mesmo após a conquista, continuava-se a redigir livros em grego e em árabe e isto com o encorajamento dos reis normandos. Lembremos que o célebre geógrafo Al-Idrisi compôs para Rogério II um compendium de geografia que traz o nome do rei, enquanto Nil Doxopatros escreveu, para o mesmo soberano, a vida de cinco patriarcas [1] .
Compreende-se, facilmente, a partir daí, que o movimento de tradução e de difusão das ciências e da filosofia gregas e árabes se desenvolva segundo uma dimensão social original: não é um privilégio dos intelectuais ligados aos mosteiros, mas é um movimento que tem lugar nas cortes reais e está relacionado a altos funcionários, num meio onde as línguas que se traduzem, são ainda faladas. Os tradutores pertenciam à corte de Guilherme I e, em seguida, à de Frederico II; estavam, pois, suficientemente próximos dos soberanos. Ora, esta situação particular permite compreender, ainda um outro aspecto, não menos importante, deste movimento de tradução: a participação dos tradutores sicilianos na promoção da pesquisa. Ainda que, na verdade, se haja traduzido muito menos na Sicília que na Andaluzia [2] , é fato que os tradutores sicilianos, pelos debates que suscitaram e pelas questões que colocaram, tiveram um papel ativo na elaboração da pesquisa. Este movimento, entretanto, não é inteiramente conhecido e os textos produzidos não têm sido, até aqui, objeto de estudos exaustivos.
Neste artigo, limitar-nos-emos a duas gerações de autores, para ilustrar esse movimento de tradução na Sicília. A primeira geração situa-se, aproximadamente, sob o reinado de Guilherme I, no coração do século XII - 1154-1166. Dois tradutores de importância extremamente particular chamam a atenção: Aristipo de Catânia e o emir Eugênio da Sicília [3] . Estes dois personagens retratam bem o panorama da tradução na época. Enquanto o primeiro traduz, do grego, escritos filosóficos, o segundo - que era de origem grega - traduzia do árabe obras de óptica e de literatura.
O renome de Henrique Aristipo provém diretamente de sua tradução de dois diálogos de Platão - Ménon e Fédon - assim como do quarto livro dos Meteorológicos de Aristóteles. Bibliófilo, beneficiou-se de uma embaixada real em Constantinopla, em 1158, para recolher, na biblioteca imperial, alguns manuscritos gregos, dentre os quais, o do Almagesto de Ptolomeu. Mas, como lhe faltasse o conhecimento matemático e astronômico exigido pela tradução de tal porte, teve que ceder a tarefa a um tradutor anônimo que, alertado para a presença desse texto, empreendeu, ao que parece, a viagem de Salerno à Sicília. Este tradutor anônimo tinha aprendido o grego, mas não o dominava suficientemente, para enfrentar, sozinho e diretamente, o Almagesto. Esquivou-se dessa dificuldade, começando por traduzir os Dados, a Óptica e a Catóptrica de Euclides, os Elementos de Física de Proclo e talvez, também, os Elementos de Euclides [4] . Daí por diante, integrado ao círculo siciliano, este tradutor anônimo solicitou a ajuda do emir Eugênio da Sicília para, finalmente, traduzir o Almagesto.
Este, nosso segundo personagem, conheceu uma longa carreira administrativa até 1202. Nascido em 1130, numa família grega, possuía, além de sua língua materna, o árabe e o latim. Sob Guilherme II, foi encarregado da administração fiscal e recebeu o título de Emir, por ocasião da reorganização da administração em 1190. Será deportado para a Alemanha com os altos dignitários da corte, após a vitória do imperador Henrique VI. Mas, enquanto Aristipo era famoso como filósofo, o emir Eugênio foi célebre como matemático e literato. Deve-se-lhe, é verdade, uma revisão da tradução de Simão Seith para o grego (1080) do livro árabe de Ibn al-Muqaffa': Kalila e Dimna , fábulas de origem indiana. Todavia, sua maior contribuição como tradutor, continua sendo a de ter passado para o latim a versão da Óptica de Ptolomeu [5] .
Hoje, após a perda do original grego e da versão árabe, esta grande obra de óptica só nos é conhecida pela tradução latina do emir Eugênio. Ele mesmo justifica sua escolha e analisa as dificuldades que pôde encontrar ao longo de tal tradução, escrevendo: "Na minha opinião, a Óptica de Ptolomeu é indispensável aos amantes da ciência e aos físicos. Eis porque não recuei diante da ingente tarefa de traduzi-la para o latim, no presente livro. Todos os tipos de língua têm seu caráter próprio e a tradução, de uma para outra, não é fácil, sobretudo para um tradutor fiel. Particularmente para aquele que quer traduzir do árabe para o grego ou para o latim, ela é tanto mais difícil, devido à grande diferença entre tais línguas, tanto no vocabulário quanto na sintaxe" [6] . Consciente, pois, da diferença entre as línguas, o emir Eugênio opta por uma tradução "fiel", isto é, rigorosa, que ele imagina literal de verbo ad verbum.
Mas este tradutor preocupa-se também com seu leitor, que ele supõe não versado em óptica, assim como confia profundamente no trabalho científico - mesmo de simples tradução - de seus predecessores árabes. Escreve, pois: "Além do mais, dado que, nesta obra, certas matérias não são talvez claras, pareceu-me oportuno resumir o plano do autor, exposto com mais nitidez na versão árabe, de maneira a facilitar a tarefa do leitor" [7] . E começa, com efeito, por dar um resumo dos diferentes capítulos que, para nós, desperta modesto interesse - na medida em que retoma as próprias frases do autor e comete alguns erros -, embora, para seu tempo, fosse importante.
É, no conjunto, um trabalho cuidado, realizado com gosto. Desse modo, no início do texto, ele indica que sua tradução foi feita "segundo dois exemplares, dos quais o mais recente (a partir do qual a presente tradução foi efetuada) é o mais fiel" [8] .
Sua reflexão sobre a natureza das línguas em questão e sobre o método de tradução; a comparação das versões de que dispunha (a partir das quais foi efetuada a tradução) bem como a preocupação de elaborar uma apresentação do texto para facilitar a tarefa do leitor, tudo isso indica que o Emir queria fazer um trabalho rigoroso e útil.
Se, agora, nos voltamos à geração seguinte, encontramos os filósofos e os sábios da corte de Frederico II, notadamente João de Palermo, Miguel Scot e Teodoro de Antióquia. Suas origens, seus campos de especialidade e sua influência permitem entrever, com precisão, o ambiente intelectual daqueles tradutores e eruditos do início do século XIII que evocaremos rapidamente.
João de Palermo parece ser originário da Sicília. Matemático, ele tinha o título de "filósofo da corte" e exercia as funções cartoriais, junto ao Imperador, como o atestam certos documentos assinados pela mão deste último [9] . João de Palermo parece interessar-se pelos ramos então considerados os mais avançados da matemática: teoria das cônicas e teoria dos números. Assim, conhece-se dele a tradução de um escrito árabe sobre a assíntota a uma hipérbole equilátera, intitulado De duabus lineis [10] . Lê-se, com efeito, no cólofon deste tratado: "translatus a magistro Iohanne Panormitano de arabico in latinum" [11] . Mas, tão notáveis quanto suas traduções, são as questões que tomara de outros livros de matemáticos árabes para, em seguida, colocá-los a seu contemporâneo, o matemático Fibonacci. Eis, por exemplo, o que lemos, no prólogo do Liber Quadratorum de Fibonacci: "Quando, ó Senhor Frederico, Príncipe gloriosíssimo, mestre Domingos me trouxe a Pisa, aos pés de Vossa Excelência, mestre João de Palermo, tendo me encontrado, propôs-me a questão - que não pertence menos à Geometria que ao número - de encontrar um quadrado que, aumentado ou diminuído de cinco, dá origem sempre a um número quadrado" [12] .
Mas esta questão, procedente dos trabalhos de teóricos árabes dos números no século X, suscitara, na época, a formação de um novo capítulo na teoria dos números e será reencontrado no fim do século X, no livro de análise indeterminada de al-Karaji.
Ora, é precisamente esta questão que mobilizará Fibonacci e o incitará a compor seu importante Liber Quadratorum, seu livro sobre os números quadrados. João de Palermo reitera o procedimento e propõe a Fibonacci, a equação x3+2x2+ 10x = 20, tomada ao tratado de Álgebra de al-Khayyam (falecido em 1131). Ora, não conhecemos nenhuma tradução latina de trabalhos de teóricos dos números do século X: nem do livro de al-Karaji sobre a análise indeterminada, nem do tratado de Álgebra de al-Khayyam.
Estas questões atestam, pois, de um lado, que João de Palermo tinha um conhecimento matemático mais profundo e também mais extenso que a maioria de seus contemporâneos - elas não são, na verdade, escolhidas ao acaso, mas procedem, dissemos, de ramos avançados da pesquisa. Elas confirmam, por outro lado, que a tradução, meio central da transmissão das ciências, não é, entretanto, o único, como o ilustra o exemplo siciliano. João de Palermo tinha acesso direto às fontes e esta situação não é, nem de longe, apanágio dele. Parece mesmo que o próprioFibonacci teve meios de acesso às fontes.
Miguel Scot, segundo personagem desta corte de Frederico II, é escocês de origem e andaluz por adoção [13] . Basta lembrar que ele conhecera uma longa carreira na Espanha e na Itália, antes de tornar-se, ele próprio, "o filósofo" do Imperador e seu astrólogo. Durante seu período andaluz, ele já traduzira - sem dúvida, ajudado por certos colaboradores - vários escritos árabes de astronomia e versões árabes de alguns tratados de Aristóteles. É assim que lhe é atribuída a tradução de De motibus Coelorum de al-Bitruji; do De animalibus, de Aristóteles, a partir da versão árabe em 19 livros; do De Coelo e do De Anima de Aristóteles, com os comentários de Averróes. A serviço de Frederico II, traduziu, a pedido deste, Abbreviato Avicennae de Animalibus, e compôs, para ele, vários escritos de astrologia, inspirados em autores árabes. Miguel Scot era apreciado como erudito e é como erudito que Fibonacci lhe dedica, em 1228, a segunda edição de seu Liber Abaci.
O terceiro personagem desta geração de tradutores é Teodoro de Antióquia, muito provavelmente um cristão de Antióquia de origem grega ou árabe. Seja como for, sabemos que ele tinha estudado, ao menos por algum tempo, em Mossul e em Bagdá, sob a égide do matemático e astrônomo Kamal al-Din ibn Yunus, que, mais tarde, será correspondente de Frederico II. Teodoro de Antioquia encontrou pessoalmente o soberano e beneficiou-se do título de "filósofo do imperador". Encontramo-lo junto ao imperador na sede de Bréscia, como o atestam os anais da ordem dos dominicanos: participou de um debate público com um deles [14] . Para o imperador, traduziu um livro de falcoaria. Mas, ele também, toma aos tratados árabes questões de matemática, que propõe a Fibonacci, o qual lhe dirige uma carta intitulada Epistola Suprascripti Leonardi ad Magistrum Theodorum phylosophum domini Imperatoris [15] .
Embora muito brevemente evocadas, assim se apresentam algumas figuras da tradução, na Sicília, em duas gerações da segunda metade do século XII. São testemunhas de que essa atividade, cultivada não nos mosteiros, mas no âmbito do poder, se integrava ao impulso geral que animava a sociedade como um todo.
[1] . Charles Hower Haskins - Studies in the History of Medieval Science, Harvard University Press, Cambridge, 1924, p. 156.
[2] . Ou em Toledo; veja-se a obra Tolède XII-XIII siècles, org. Louis Cardaillac, na coleção Mémoires da Ed. Autrement
[3] . Sobre a vida e a obra do emir Eugênio da Sicília, cf. C. H. Haskins: op. cit., e, principalmente, Evelyn Jamison: Admiral Eugenius of Sicily: His Life and Work. Oxford University Press, 1957.
[4] . J. Murdoch: "Euclides graeco-latinus". Harvard Studies in Classical Philology, 71, 1966, 294-302.
[5] . L'Optique de Claude Ptolémée, dans la version latine d'après l'arabe de l'émir Eugène de Sicile, ed. A. Lejeune, E.J. Brill, London, 1989.
[6] . Op. cit. p. 5.
[7] . Op. cit. p. 5
[8] . Op. cit. p. 11
[9] . J.L.A. Huillard-Bréholles: Historia diplomatica Frederici Secundi, Paris,1852, vol.2, 185.
[10] . Este texto foi estabelecido e traduzido por Marshall Clagett: Archimedes in the Middle Ages, Philadelphia, 1980, vol.4, part I, p. 33 e ss.
[11] . Op.cit.
[12] . Léonard de Pise: Le livre des nombres carrés, traduit par P. Ver Eecke, Blanchard, Paris, 1952, 1.
[13] . Veja-se C.H. Haskins, op. cit., cap. XIII.
[14] . Veja-se O. Terquem: "Sur Léonard Bonacci de Pise", extraído dos Annali di Scienze Matematiche, tomo VII, mar-abr, 1856, 7-9.
[15] . Scritti di Leonardo Pisano Matematico del Secolo Decimoterzo pubblicati da Baldassarre Boncompagni, Roma, 1857, vol II, p. 247 e ss.