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Entrevista – Milton Hatoum (*)

 

Milton Hatoum vem merecendo extraordinário reconhecimento por parte da crítica brasileira e internacional, a partir de seu Relato de um certo Oriente (S. Paulo, Cia. das Letras, 1989). Traduzido para diversas línguas, mais recentemente para o francês (Récit d'un certain Orient,  Paris, Seuil, 1993), o Relato recupera, a partir da implícita subjetividade do autor, inesperadas dimensões de um Oriente, sempre instigante. Arquiteto e mestre em Letras pela Universidade de São Paulo, Milton Hatoum é professor de Língua e Literatura Francesa da Universidade do Amazonas.

Aida Hanania: Você nasceu no Brasil, mas até que ponto é brasileiro...?

Milton Hatoum: Antes de mais nada, a noção de pátria está relacionada com a língua e também com a infância. O que mais marca na vida de um escritor, talvez seja a paisagem da infância e a língua que ele fala.

Eu me lembro - a propósito do dilema: falar árabe ou falar português - de que minha mãe dizia que eu deveria falar português, porque a língua é a pátria. A brasilidade está presente na língua, mas não sei até que ponto está presente numa paisagem brasileira: porque não sei se se pode definir exatamente "paisagem brasileira" para quem é da Amazônia. A Amazônia não tem fronteiras; sim há uma delimitação de "fronteiras", mas para nós não passam de fronteiras imaginárias. Que importa, para os índios yanomamis, por exemplo, se eles foram assassinados na Venezuela ou no lado brasileiro? Para os índios, o território, a terra deles não tem fronteiras...

E para todos nós, nascidos na Amazônia, a noção de terra sem fronteiras está muito presente... Porque é um horizonte vastíssimo, em que as línguas portuguesa e espanhola  se interpenetram em algumas regiões, onde as nações indígenas também são bilíngües, às vezes poliglotas (índios que falam tucano, espanhol, português...). Há um mosaico de grandes nações, de tribos dispersas; na verdade, cada vez mais dispersas...

Uma dessas pequenas tribos dispersas é a dos orientais; dos imigrantes que chegaram no início do século e que participaram da vida econômica da região. Aliás, os primeiros imigrantes foram para o Acre, para uma terra que não era ainda brasileira. Eu tenho pesquisado documentos sobre a Revolução Acreana e notei que alguns oficiais do exército brasileiro que combateram pela independência do Acre são de origem libanesa: há um Capitão Alexandre Farhat, um Cel. João Turco, personagens que pertencem à história do Acre e estão já presentes também na historiografia.

AH: Ainda é pouco estudada a presença árabe no Norte do Brasil; conhece-se mais o caso do Sul...

MH: Sim, porque o Norte é uma região muito isolada do Brasil: a selva nos separa; e essa sensação de isolamento radical é muito forte para quem nasceu e mora na Amazônia. Mas. ao mesmo tempo, a integração desses imigrantes com os brasileiros foi muito rápida; na minha família, por exemplo, a segunda geração já se casou com brasileiros. Não há uma comunidade árabe fechada.

AH: É numerosa a colônia árabe lá?

MH: É uma colônia bastante expressiva; por exemplo, no Acre, a rua principal de Rio Branco é toda ela habitada por árabes: da Síria, do Líbano... Eles vieram no início do século e lá permaneceram, não só na capital, mas em todo o Acre: Xapuri, Brasiléia, Porto Acre (que é um vilarejo de algumas centenas de habitantes, onde se deu o combate final entre bolivianos e brasileiros)... Em Porto Acre, ouvi um relato de um filho de sírio, Muhammad Mamede Haruta, que contava interessantes histórias da família... São os turcos de Manaus. Contrariamente, os judeus - porque há muitos judeus da África do Norte, do Magreb, particularmente do Marrocos - ficaram nas grandes capitais.

AH: Como você classificaria, em parâmetros tradicionais, um livro tão original como o Relato? Memórias ou ficção? E, em que medida personagens e temática são reais?

MH: No Relato há um tom de confissão, é um texto de memória sem ser memorialístico, sem ser auto-biográfico; há, como é natural, elementos de minha vida e da vida familiar. Porque minha intenção, do ponto de vista da escritura, é ligar a história pessoal à história familiar: este é o meu projeto. Num certo momento de nossa vida, nossa história é também a história de nossa família e a de nosso país (com todas as limitações e delimitações que essa história suscite).

Memória? Com relação ao Relato, percebi que causou, talvez, para alguns leitores, uma certa estranheza, a estrutura de encaixes em que está vazado: vozes narrativas que se alternam... Mas, se a própria memória também é desse mesmo modo... O tempo narrativo, no livro, é um tempo fragmentário, que reproduz, de certa forma, a estrutura de funcionamento da memória: essa espécie de vertiginoso vaivém no tempo e no espaço. É precisamente essa correspondência que eu procurei imprimir à narrativa.

Uma auto-biografia nunca é verossímil, nunca é verdadeira... ela não é uma confissão de verdade. Todo relato auto-biográfico entre aspas, que se pretende auto-biográfico, tem uma dose de mentira, tem seu lado ficcional. É como se a linguagem friccionasse essa suposta verdade e daí surgisse a ficção, essa mentira que é a ficção... Tanto é assim que, para minha família, para pessoas próximas à família, o Relato é um texto de ficção: eles não se reconhecem; reconhecem-se em partes, sempre falta algo: o fio que conduz à verdade. Há, pois, essa fluidez, essa vontade de mentir: é o menti vrai de que fala Vargas Llosa em seus ensaios.

O mesmo se dá em relatos de viagens que, na verdade, têm um elemento ficcional muito forte. É, por exemplo, o caso de Voyage en Orient de Nerval: muitas passagens são inventadas; outras, ele fisgou de textos de outros viajantes... Assim, uma certa dose de ficção está presente até mesmo num relato de viagens, que se pretende relato de uma experiência pessoal, de encontro com uma sociedade, com uma cultura outra...

Ainda quanto a aspectos estruturais, devo dizer que pensei muito na estrutura das Mil e Uma Noites; pensei numa narradora, numa personagem feminina que contasse essa história... E isso, por várias razões - por razões de ordem  meta-lingüística, a referência a Sheharzade; e também pelo fato de a mulher na família árabe ser submissa (aparentemente...), mas, ao mesmo tempo, ser a detentora do segredo, de certos segredos da família...

AH: Seria esta a razão do título da edição alemã, Emilie oder Tod in Manaus (Emilie ou morte em Manaus), destacar a personagem feminina?

MH: De fato, os editores alemães decidiram destacar o nome da protagonista, também porque Relato de um certo Oriente não é um título sugestivo para o leitor alemão, como não o é para o leitor de língua inglesa: um título como Account on a certain Easterner, mais pareceria um relatório de viajante, de algum vendedor ambulante. Assim, a edição americana intitula-se The Tree of the Seventh Heaven, que recolhe uma frase do livro: a árvore do sétimo céu.

AH: Como surgiu em você o Relato?

MH: Por que um escritor escreve? Porque tem vontade de escrever, desejo de escrever. Uma necessidade de escrever que surge de uma falta, de uma ausência, como muitos autores já declararam... Para mim, a arte não é exatamente a vida, mas também não é exatamente a sua negação: isto é, ficamos num limbo. Eu, quando estava na Espanha, recebi uma notícia que me chocou - acentuada pelo drama da distância (eu já estava há quinze anos longe de Manaus) - a notícia da morte de meu avô, que era o narrador, oral, da minha infância. E isso provocou em mim o desejo de escrever sobre esse homem, cuja voz não mais existia; algo assim como a recuperação de uma voz que se foi...

Além disso, as outras lembranças da infância, os relatos dos mais velhos... Eu misturei vozes da família e vozes de outras pessoas, de libaneses, de judeus, amigos que moravam na Espanha e na França, que me contavam histórias do Marrocos, da Síria... é muito curioso: há vozes que não são da minha família, mas de outras tribos, de outros clãs.

A distância também me ajudou muito a escrever; o fato de estar longe do Brasil, muito longe de Manaus, permitiu-me escrever com mais liberdade. É claro que você pode escrever em qualquer lugar. Eu me lembro de um texto de Thomas Bernhard, que trata de um personagem que escreve na prisão e conta suas histórias para os amigos presidiários e, quando ele sai da prisão, não consegue mais escrever...

ARH: Tive o privilégio de acompanhar, em Paris, o lançamento do Récit e, ao mesmo tempo em que constatava a extraordinária receptividade da crítica e do público, perguntava-me até que ponto um europeu é capaz de compreender a peculiar realidade de um certo Brasil: imigrantes libaneses em Manaus...!

MH: Para o leitor europeu, o Relato faz o cruzamento do Oriente e Amazonas, dois mundos imagináveis e desejados, um pouco na perspectiva de Edward Said... Como os europeus no Século XVIII andavam em busca de suas origens, em busca do outro..., aquela sede do outro. Nessa linha, "conhecem" o Amazonas ou dele já ouviram falar...

Lembro-me de que era escritor residente numa cidade, na França, St. Nazaire (no Loire) e vi uma senhora que me reconheceu e começou a falar do Líbano e de Manaus (falava até da Ópera de Manaus...). Perguntei-lhe então, como conhecia tanto a respeito do Líbano!? Ao que ela me respondeu: "A colonização nos ajudou a conhecer o mundo". E, de fato, a colonização deu aos franceses ao menos a visão da geografia; já o americano, por exemplo, sequer sabia (como se constatou por ocasião da Guerra do Golfo) onde ficava o Iraque.

Por outro lado, enfrentamos uma pré-concepção do que seja Literatura Latinoamericana: os europeus tem um clichê à espera de um texto vindo da América Latina: como se qualquer livro latinoamericano tivesse que ter os mesmos ingredientes. E como fica então uma Clarice Lispector ou um João Cabral !?

Deve-se fazer um esforço para quebrar a correspondência que se estabelece entre Literatura e a imagem que se faz de um país.

ARH: Sei que você esteve no Líbano recentemente. E, nessa visita, teve a oportunidade de re-conhecer o Líbano das histórias da infância? Que impressão o país lhe causou?

M.H: Reconheci muito pouco. Em Beirute, hoje tão devastada, nada. Só reconheci a família, ao mesmo tempo triste e nostálgica de seu país. Mas foi importante ter conversado com os parentes. Conheci cinqüenta e dois parentes...! Soube que meu pai, na década de 20 ou 30, foi um dos três muçulmanos que estudaram no Collège de la Sagesse, graças ao Monsenhor Houaiss (parente de Antonio Houaiss), que é da mesma cidade de meu pai, Burj al Barajne (Torre das Torres). Essas conexões, esses laços foram muito significativos.

Já o interior do Líbano permanece mais ou menos intacto...

Depois de Beirute, fui a St. Nazaire. É uma cidade que foi inteiramente destruída na segunda guerra mundial. Então saí de uma cidade devastada para outra que tinha sido devastada também... Foi muito impressionante tanto Beirute como St. Nazaire: porque a linguagem da guerra é comum às duas cidades e o impacto sobre mim foi tão forte, que durante um tempo não consegui escrever...

http://www.hottopos.com/   Collatio 6 – Univ. Autónoma de Madrid – Univ. de São Paulo - 2001

 

 

Escrever à Margem da História (*)

Milton Hatoum

Para um escritor que mora longe dos centros irradiadores de cultura, mas perto de uma das regiões mais exóticas do mundo, cabe-lhe responder a uma pergunta: como povoar de signos este espaço branco (a folha de papel), tendo como referência simbólica um outro espaço em branco, konradiano, lugar longínquo, território perdido "num recanto da floresta e num desvão obscurecido da história"?(1).

Ao invés de discorrer sobre esse dilema, prefiro fazer um breve comentário sobre uma experiência pessoal; ou seja, falar de uma dupla viagem. A primeira, imaginária. O viajante imóvel que durante a sua infância em Manaus, imagina mundos distantes. A segunda, uma viagem real rumo ao sul do Brasil e ao outro hemisfério: deslocamento da periferia para vários centros (o centro é sempre plural), desejo de deixar a margem e navegar no rio de uma outra cultura ou sociedade.

Na minha infância, a convivência com o Outro exterior aconteceu na própria casa paterna. Filho de um imigrante oriental com uma brasileira de origem também oriental, eu pude descobrir, quando criança, os outros em mim mesmo. Ou, como afirma Todorov: "Uma pessoa pode dar-se conta de que não é uma substância homogênea e radicalmente estrangeira a tudo que não é ela própria".(2)

A presença e a passagem de estrangeiros na casa da infância contribuiram para ampliar um horizonte multicultural. Minha língua materna é o português, mas o convívio com árabes do Oriente Médio e judeus do norte da África me permitiu assimilar um pouco de sua cultura e religião. De forma semelhante, a cultura indígena se impunha com a presença de nativos que moravam na minha casa e freqüentavam o bairro de imigrantes orientais da capital do Amazonas. Esse aprendizado foi lento, como sempre acontece quando assimilamos uma outra cultura. Nos primeiros anos da minha infância, eu escutava os mais velhos conversarem em árabe, a ponto de pensar que esta língua era falada pelos adultos e o português pelas crianças. Aos poucos, a língua árabe, a história, as paisagens e os costumes de um país longínquo tornaram-se familiares para mim. Os laços sangüíneos contribuiram para isso, mas o pequeno Oriente que me cercava (e do qual emanavam vários códigos visíveis e invisíveis) foi decisivo. Perscrutar um homem ajoelhado no seu quarto, a rezar com o corpo voltado para Meca, era violar um momento de sua intimidade, mas também descobrir o fervor religioso do meu pai. Outros parentes próximos eram católicos ou cristãos maronitas, mas nenhuma religião me foi imposta: era mais importante tomar conhecimento do texto bíblico ou corânico do que optar por uma religião. Afinal, diziam os mais velhos, somos todos descendentes de Abraão.

Além da religião, da língua e dos costumes, a cultura do Outro estava delineando-se por um outro caminho, talvez o mais fecundo para mim: o da narração oral. Essa forma de discurso era usada por exímios contadores de histórias que freqüentavam a Pensão Fenícia, lugar da minha infância. Hoje, passados trinta anos, a imagem que faço desses narradores tem alguma semelhança com "o observador errante que percorre a bacia amazônica" e o "homem sedentário", postado na margem do rio, citados por Euclides da Cunha(3).. Imagem ainda mais próxima da figura do narrador evocada por Walter Benjamin. O filósofo alemão, nas observações preambulares de um belo estudo sobre a obra de Nikolai Leskov, ressalta "entre os inúmeros narradores anônimos, dois grupos que se interpenetram de múltiplas maneiras": o do viajante ou marinheiro comerciante, ou seja, alguém "que vem de longe" e, por isso, tem muito que contar. Ao outro grupo, pertence o camponês sedentário, o homem fixado à terra, que passou a vida sem sair do país e que "conhece suas histórias e tradições" (4).. Ainda segundo Benjamin, esses dois grupos, através de seus representantes arcaicos, configuram "dois estilos de vida que produziram de certo modo suas respectivas famílias de narradores".

Um resquício desses estilos de vida, aludido por Benjamin existia no espaço que freqüentei quando criança. Por um lado, alguns parentes mais velhos que pertenciam a essa família de comerciantes-viajantes eram, na verdade, narradores em trânsito. Contavam histórias que diziam respeito à experiência recente de suas viagens aos povoados mais longínquos do Amazonas, lugares sem nome, espalhados no labirinto fluvial. Nas pausas do comércio ambulante, exercitavam a arte narrativa(5).. Esses orientais, rudes ou letrados, narravam também episódios do passado, ocorridos em diversos lugares do Oriente Médio, antes da longa travessia para o hemisfério sul. Por outro lado, os amazonenses que haviam migrado para a capital, traziam no imaginário as lendas e os mitos indígenas. Na Pensão Fenícia, as vozes desses nativos faziam contraponto às dos imigrantes orientais: vozes dissonantes, que narravam histórias muito diferentes, mas que pareciam homenagear um tipo de saber citado por Benjamin: "o saber que vinha de longe - do longe espacial das terras estranhas, ou do longe temporal contido na tradição" (6).

Ouvir essas histórias, ver os narradores com seus gestos e expressões foi uma das experiências mais fecundas da minha infância e adolescência. De certa forma, também eu viajei aos lugares mais recônditos do Amazonas e ao longínquo Oriente. Para o ouvinte, aquelas histórias narradas assumiam um caráter ao mesmo tempo familiar e estranho. Aqueles mundos, reais ou fictícios, passaram a fazer parte da minha vida. O viajante imóvel experimenta, assim, a percpeção do Outro através do convívio e da palavra oral.

No início dos anos 60, Manaus conservava ainda um ar "caipira e cosmopolita" de que fala Euclides da Cunha. O traçado urbano que remontava à "belle époque" cabocla pouco mudara. Na fisionomia urbana, conviviam a arquitetura popular formada de palafitas (casas de madeira sobre pilotis à beira dos igarapés) e os sobrados de estilo neoclássico construídos nos anos mais prósperos da economia da borracha. Algumas dessas casas freqüentei, na minha adolescência, como aluno de cursos de línguas estrangeiras. O ambiente austero em que moravam  os europeus contrastava com a azáfama da Pensão Fenícia e das outras casas de imigrantes orientais onde eu passava uma parte do dia. Mas foi durante essas aulas, entremeadas de prosa sobre as capitais e a cultura européias, que tomei consciência da necessidade de navegar em outras latitudes. Durante aqueles anos, ouvir dos mais velhos um conto das Mil e uma Noites ou uma passagem da vida do califa Harum ar-Rashid era tão fascinante quanto ouvir de uma professora francesa um poema de Baudelaire ou contemplar, com um desejo exótico, um mapa de Paris. Reproduções de pinturas européias, poemas e histórias de um "oriente-amazônico", tudo isso fazia parte de um pêndulo mágico que aludia a um outro tempo e a um outro espaço. E é desta forma que se configura o desenho de uma prática exótica: o desejo de saber é também desejo de viajar. Ou, como afirma um filósofo da alteridade: "O próprio desejo é viagem, expatriação, saída do meu lugar"(7).."Para conhecermos nossa própria comunidade, devemos primeiro conhecer o mundo inteiro", observa Todorov, num belo ensaio sobre a diversidade humana(8).. Essa viagem real tem sido uma experiência de vida e de leitura: uma peregrinação pelo sul do Brasil e por várias cidades européias que começou há mais de vinte anos. De certa maneira, essa viagem-leitura tem amplificado as vozes e as visões que passaram pela minha infância. É como se o viajante se distanciasse da "margem da História", a fim de assimilar outras culturas, sem no entanto perder a bússola que aponta para o seu Norte. O Norte, depois da errância e do exílio, é menos uma geografia do que um lugar que se busca. Lugar que já não mais existe, ou lugar utópico que só existe na memória. Em outras palavras: essa tentativa de um retorno à terra natal só é possível através da linguagem: "instância poética da recordação que comemora"(9).."A lembrança, afirma o filósofo Benedito Nunes, cria a proximidade com as coisas, chamando-as à presença, desvelando-as na linguagem"(10)..Creio ser esta a viagem mais fecunda: movimento da palavra poética rumo à origem.

Dois Irmãos – novo livro de Milton Hatoum

Milton Hatoum volta ao romance com um drama familiar em cujo centro estão dois filhos de imigrantes libaneses: os gêmeos Yaqub e Omar.

No início do século xx, Manaus, a capital da borracha, recebeu estrangeiros como o jovem Halim, aprendiz de mascate, e Zana, uma menina que chegou sob a asa do pai, o viúvo Galib, dono de um restaurante perto do porto. Halim e Zana vão gerar três filhos: Rânia, que não vai casar nunca, e os gêmeos Yaqub e Omar, permanentemente em conflito. O casarão que habitam é servido por Domingas, a empregada índia, e mais tarde também pelo filho de pai desconhecido que ela terá. Esse menino — o filho da empregada — será o narrador. Trinta anos depois dos acontecimentos, ele conta os dramas que testemunhou calado.

Dois irmãos é a história de como se faz e se desfaz a casa de Halim e Zana. Apaixonado pela mulher, depois do nascimento dos filhos Halim se condena à nostalgia dos tempos em que não era pai, em que não precisava disputar o amor de Zana, em que os dois tinham todo o tempo do mundo para deitar na rede do alpendre e se entregar aos prazeres sensuais. Pelo que nos conta o narrador, Halim estará sempre à espera da decisão mais acertada diante dos abismos familiares: a desmedida dedicação de Zana a Omar, seu filho preferido; o trauma de Yaqub, o filho que, adolescente, foi separado da família supostamente para amenizar os conflitos com Omar; a relação amorosa entre os gêmeos e a irmã, Rânia. De Domingas, com quem compartilhava o quartinho nos fundos do quintal, o narrador nos diz que esta é uma mulher que não fez escolhas. Aparentemente, não escolheu nem mesmo o pai de seu filho.

Milton Hatoum faz os dramas da casa estenderem-se à cidade e ao rio: Manaus e o Negro transformam-se em símbolos das ruínas e da passagem do tempo. E, pela voz de um narrador solitário, revive também os tempos sombrios em que as praças manauaras foram ocupadas por tanques e homens de verde. Esses tempos foram responsáveis pelo destino trágico de um grande personagem do livro: o professor Antenor Laval.

Milton Hautom nasceu em Manaus, em 1952. É professor de literatura na Universidade Federal do Amazonas e professor convidado na Universidade da Califórnia, em Berkeley. Relato de um certo Oriente, seu primeiro romance (Prêmio Jabuti 1990), foi publicado nos Estados Unidos, na França, na Itália, na Alemanha, em Portugal e na Suíça; entre outros países.



* Entrevista concedida a Aida Ramezá Hanania em 5-11-93. Transcrita e editada por ARH.

(*) Texto da participação do autor em 4-11-1993 no seminário de escritores brasileiros e alemães, realizado no Instituto Goethe, São Paulo.

(1) Euclides da Cunha, Obras Completas, Vol.I. Rio de Janeiro, Companhia José Aguilar Editora, 1966, p.245.

(2) Cf. Tzvetan Todorov,  La Conquête de l'Amérique, La question de l'Autre, Paris, Seuil, 1982.

(3) Cf. Euclides da Cunha, op. cit., vol.I. p.231.

(4) Cf. Walter Benjamin, "O Narrador. Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov". In: Magia e Técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e história da cultura. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. S.Paulo, Brasiliense, 1985.

(5) Cf. Idem, ibidem, p.214.

(6) op. cit. p.202.

(7) Cf. Francis Affergan, Exotisme et Altérité, Paris, PUF, 1987.

(8) Cf. Tzevetan Todorov,  Nous et les Autres. La réflexion française sur la diversité humaine, Paris, Seuil, 1989.

(9) Cf. Benedito Nunes  Passagem para o Poético. Filosofia e Poesia em Heidegger. S.Paulo, Ática, 1992, 2a. edição, p.275.

(10) op. cit. p.275.