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de Georges Schehadé
Aida Rámeza Hanania
Georges Schehadé: O homem e a obra
Georges Schehadé, poeta e dramaturgo, é um dos autores mais destacados da Literatura Libanesa de expressão francesa, fato reconhecido por tantos quantos se dedicaram a estudá-la. Entretanto, não se situa apenas no âmbito da Literatura Libanesa. Faz parte, também de modo relevante, da Literatura Francesa.
Egípcio de nascimento (Alexandria, 1910), mas de nacionalidade libanesa, Georges Schehadé descende de antiga família cristã, que se viu obrigada, a exemplo de tantas outras, a emigrar por ocasião dos conflitos de 1860, entre druzos e cristãos, na montanha libanesa.
Teve formação francesa e, desde muito cedo, sentiu-se atraído pelos escritores franceses, sobretudo pelos poetas. Formou-se em Direito, mas jamais exerceu a profissão, preferindo a carreira de professor de Literatura Francesa na "Ecole Supérieure de Lettres" de Beirute (vindo a ser, mais tarde, seu secretário geral).
Instalou-se definitivamente no Líbano com a família quando era ainda adolescente. Embora tenha vivido em Beirute, sempre morou parte do ano em Paris, onde se fixou - em virtude da guerra que se desenvolvia em seu país -, lá permanecendo até sua morte em 1989 .
Preparado pelo Oriente Médio e "provavelmente há séculos pelo que esta parte do mundo tem de geografia humana, pelo que tem ela de cruéis conflitos religiosos (...) pelo que tem ela de relações com o resto do mundo, amargas ou benignas", como bem lembra Jamil Almansur Haddad [1] , Schehadé aportou à Literatura uma visão bastante original, de raízes orientais, escrevendo em Francês tão bem quanto os que melhor o façam e seduzindo, por isso, muitos de seus contemporâneos, tais como Supervielle [2] ou Pierre Robin [3] .
A cosmovisão schehadeana, tanto mais complexa, quanto mais se lhe adivinha o entrelaçamento de valores mediterrâneos-ocidentais e orientais-árabes, define-se pelo tratamento de temas que se voltam ao ser universal, encontrando no terreno poético e na língua francesa, sua expressão mais justa e definitiva.
Andrée Chedid captou bem as raízes do autor e assim revela o processo de sua criação: "Se a alma profunda mergulha numa sabedoria milenar, no mistério de ecos longínquos, exprime-se por meio de uma forma tão burilada que a língua francesa torna-se substância mesmo da criação". [4]
A obra de Schehadé não é muito numerosa. Escreveu, inicialmente, Rodogune Sinne, um romance, e L'Ecolier Sultan, um livro de poesias, quando muito jovem, publicados tardiamente (em 1947 e 1950, respectivamente). A seguir, Poésies I (1938), Poésies II (1948), Poésies III (1949) e Si tu rencontres un ramier, reunidos, mais tarde, em um só volume, Les Poésies.
Sua obra dramática é constituída de seis peças: Monsieur Bob'le, publicada em 1951; La Soirée des Proverbes, em 1954; Histoire de Vasco, em 1956; Les Violettes, em 1960; Le Voyage, em 1961 e L'Emigré de Brisbane, em 1965.
É autor, ainda, de uma pantomima, L'Habit fait le Prince, publicada em 1973 e, mais recentemente, escreveu um livro de poesias Le Nageur d'un Seul Amour, editado em 1985 e que lhe valeu, na França, o "Premier Grand Prix de la Francophonie", em 1987.
Fundamentalmente poeta, foi sua obra dramática, no entanto, que o consagrou dentro e fora de seu país de origem.
De início, Schehadé, dramaturgo, foi mal compreendido pelo público e pela crítica que acorreu a sua estréia no "Théâtre de la Huchette", Paris, em janeiro de 1951, com Monsieur Bob'le. Certamente, o teatro schehadeano provocou impacto numa platéia mais acostumada à ação do que à poesia em ação...
Para responder às críticas, formuladas principalmente por Jean-Jacques Gautier, o "Figaro Littéraire" colocou-se à disposição dos poetas e críticos que quisessem apoiar Georges Schehadé. Foi, então, que René Char, André Breton e os críticos Jacques Lemarchand e Thierry Maulnier, além do ensaista Gabriel Bounoure, defenderam, calorosamente, Monsieur Bob'le.
Quando da apresentação de Histoire de Vasco, em 1957, a peça foi violentamente acusada, não só pelas características de sua concepção, mas também pelo caráter "antimilitarista" que Robert Kemp e Jean-Jacques Gautier acreditavam enxergar na obra. Dessa vez, "Arts, Lettres et Spectacles" ofereceu a Jean-Louis Barrault, o espaço necessário para a defesa de Schehadé. A Barrault, juntaram-se Jean Dutourd, Guy Dumur e Jacques Lemarchand, dentre outros [5] . Suas peças mereceram a direção de grandes nomes do Teatro Francês, como Georges Vitaly e Jean-Louis Barrault, tendo sido encenadas em vários teatros europeus. Chegou à Comédie Française com sua última peça, L'Emigré de Brisbane, em 1967.
No Brasil, onde ainda não é muito conhecido, Schehadé foi levado ao palco, por iniciativa da Escola de Arte Dramática de São Paulo, em 1952, com a apresentação de Monsieur Bob'le.
Situado ora no "Teatro de Vanguarda", ora no "Teatro do Absurdo", por vezes no "Teatro do Inefável", outras vezes considerado como "Surrealista", o fato é que Schehadé figura na dramaturgia francesa, como um dos elementos que revolucionaram o Teatro de pós-guerra, mais precisamente, a partir dos anos cinqüenta, ao lado de Ionesco, Adamov e Beckett (para citar os mais conhecidos entre nós), dando origem ao chamado "Teatro Novo". Porém, a não ser pela concepção amplamente inovadora da obra dramática, fato comum a todos eles, estes autores diferem, cada qual, pela maneira como se opõem ao Teatro anterior.
Valorizando o discurso poético, a peça de Schehadé tende a ser poema, através da incansável busca do novo, do original na linguagem, o que implica associações verbais surpreendentes. É este o chamado "Teatro de Vanguarda Poético", como o denomina Esslin, ou, simplesmente, "Teatro Poético", como querem Geneviève Serreau [6] ou Michel Corvin.
A obra dramática de Schehadé inscreve-se, de imediato, nesta modalidade, na medida em que suas peças não são mais que prolongamentos ou ampliações de seus poemas. É como se o autor encontrasse no teatro, o espaço propício para o exercício de um realismo poético. Este "Teatro de Poesia" (no dizer do próprio Schehadé) desponta como matéria instigante para o questionamento sobre os limites, a prevalência do teatro sobre a literatura (e vice-versa), com relação à obra dramática.
Mais que em qualquer outra circunstância, todavia, o texto, quando essencialmente poético, sobrepõe-se ao conjunto de elementos que fundam a obra teatral e, nesse sentido, a filia ao "teatro de escritores" na acepção de Gaëtan Picon, em oposição ao que chama "teatro-teatro" [7] .
Sonho e realidade no Teatro de Georges Schehadé
Identificar os planos pelos quais transita a imaginação criadora de Schehadé, é de fundamental importância, na medida em que, a partir deles, se pode caracterizar o percurso poético do autor, distinguindo-lhe as linhas de força.
A imaginação do autor parece exercer-se de modo pleno no âmbito de dois mundos muito próximos, mas, ao mesmo tempo, infinitamente distantes. E, o realismo schehadeano ganha sentido, a partir da incessante tentativa de aproximação desses mundos - o essencial e o vivencial -, pela intermediação da poesia.
Quanto mais não seja pela facilidade que permite à transfiguração poética, deve-se considerar o aspecto basilar do Sonho na concepção oriental de mundo.
Em "Les Poésies", rêve e songe já se caracterizam como palavras-chave de sua poesia.
Ao longo de todas as peças, songe e rêve são, sistematicamente, retomadas, culminando com a afirmação que faz, de modo reiterativo, uma voz, em La Soirée des Proverbes: "La vie est un songe".
Gabriel Bounoure, crítico dos mais penetrantes da obra de Schehadé, completa: "A vida é um sonho, onde tudo surge por meio de figuras. Esta profunda convicção do Oriente é a filosofia do teatro Schehadeano". [8]
Pierre Robin acentua o papel do sonho como mediador entre o escape do mundo real, concreto, e a conseqüente aproximação do verdadeiro real: "O sonho é, em poucas palavras, sinal de alerta, despertar, desprendimento do sono de nossa existência larvar; escape, talvez, ou, ao menos, esperança de um escape para a `verdadeira vida'". [9]
Este papel do sonho vê-se corroborado, particularmente, por Octavie em La Soirée des Proverbes:
"Vou, esta noite, falar-lhes de sonhos. Não dos sonhos humanos, pálidos episódios, mas dos sonhos da verdade com suas coroas!". [10]
O sonho, este estado de liberdade ao qual se alça a imaginação, facilitando o diálogo entre a alma e o universo, projeta-se, de múltiplas maneiras, no teatro de Schehadé (assumindo, ora o caráter de profecia, ora de delírio...) a partir de núcleos temáticos que são freqüentemente retomados, como: sommeil, nuit, silence, aos quais se juntam, particularmente, corbeau e noir.
Nesta seqüência de categorias poéticas que organizam o sonho, sommeil desponta como a mais pura e a mais fecunda. Na verdade, o sono, livre de toda coerção, quer espacial, quer temporal (pois o tempo e o espaço são abolidos: passado, presente e futuro se superpõem) promove, espontaneamente, o surgimento do sonho.
"O sono não é somente um sossego e, para nosso corpo, uma pastagem; é a perfeição da vida, porque está cheio de sonhos... e sem idade!...". [11]
O sonho é o lugar do encontro afetivo configurado pelo amor filial, como se observa na cena de despedida do Sr. Bob'le:
"Senhor Bob'le
(...) Pense em mim...
(...)
Que assim seja! Durante o dia, ou em meio aos sonhos...Adeus". [12]
... pela amizade:
"Um amigo está sempre bem situado no sonho de seus amigos". [13]
... ou incentivando a aproximação amorosa, como no caso de Corée e Michel:
"Corée
Nos primeiros dias, não me dei conta, cantei, estava feliz, quase longe de você!...depois, você entrou nos meus sonhos, como você é, como eu o vejo...". [14]
A noite, que cessa com seu silêncio o burburinho da vida, desfazendo, nas trevas, o contorno de quanto existe, apagando as imagens do aqui, é a "permeabilidade ambiente" (como acentua Richard), que convida ao sono, portanto, ao sonho, à livre movimentação das imagens. É a hora mental, imaginária:
"Eu, sonho com você... Quando a noite veste de azul Paola Scala, quando escurece nas ruas e nos estabelecimentos; quando o eco não tem mais seu avental quotidiano, nem as estrebarias, seus sussurros de cevada; em meu leito, à noite, quando estou só com meus cabelos, Michel, eu sonho com você!... (...) Assim, na outra noite, estávamos juntos, você me tomava pela mão, para me fazer girar muito rápido em torno de uma árvore, de repente, você parava, meus cabelos, então, enchiam sua boca e suas orelhas"... [15]
Mas, a noite é, também, "l'heure des perturbations et de la folie" que aciona o pesadelo, como interpreta um personagem de Monsieur Bob'le [16] .
"Corbeau" liga-se de modo bastante nítido à noite, à ausência. Presente, tanto quanto a noite, na obra de Schehadé, é, sem dúvida, em Histoire de Vasco que se faz sentir, de modo mais intenso. Verdadeira materialização da noite, os corvos são inseparáveis do sonho de Marguerite (primeiro quadro, terceira cena), deixando, secundariamente, a impressão de portadores do mau agouro, de catalizadores do impuro, confirmando o sentido dicotômico da noite:
César
(...) "Olhem-me, corvos, olhem-me!
Sou, esta noite, esposo de minha filha na dor! E não são vocês, pássaros da ausência e do horror, que tocarão em nosso pão! (...) Eles são imóveis como más sombras...
E não há uma criança para lhes dar medo, uma pomba branca para caçá-los!(...). [17]
César
"Vão branquear-se para lá, pássaros das cestas de lixo... sacristãos transformados... que põem ovos negros (...) Droga!". [18]
O sonho dá fundamento à existência, superando toda instância de realização humana, acarretando a perplexidade por vezes...:
"O sonho é pois mais forte que o amor?"(...) [19]
...mas, sobretudo, a gravidade e a reverência pela oportunidade que oferece de extrapolação do impuro em direção ao puro, do concreto ao espiritual, do mundo material enfim, ao Paraíso, como nos permite concluir a intervenção de Argengeorge, em meio à noite:
"Os Quatro-Diamantes!... E sobre a colina, esta casa acesa, como a lâmpada da manhã (...) Nem canto, nem lua. Porém, o silêncio e sua porta escancarada. Ó bela noite!...E diante de mim, a esperança de um milagre (...). Mas como os olhos ficam pesados nos sonhos... E eis que o sono bate à minha têmpora, como uma maçã de ouro e corre dentro de um poço...(...) Ó bela noite!... Ó abutres da noite, deixem-me sonhar... Como aqueles que trazem a rosa e o casaco à entrada das grutas maravilhosas, quando o sonho empresta sua visão aos objetos da terra, estou diante desta casa (...). Ando no verdor pintado da noite... Sabedoria de minha infância, junte-se a nós... Em seus parques de outrora, com os pássaros que sobrevoam soldados ! ... Ó bela noite". [20]
A noite é invocada, definitivamente, como o momento privilegiado do sonho que remete à região privilegiada do Paraíso:
"Que a noite que aconselha e dirige o casco dos animais...(...)
Nos conduza pela mão e nos empurre pelas costas...(...)
a esta região deserta, onde a felicidade, desde sempre, espera... seus primeiros companheiros!" [21]
As peças de Schehadé, nascidas de múltiplo processo de transfiguração poética, por si mesmas já nos comunicam a sensação de "sonho desperto" que encontra, talvez, sua expressão mais exacerbada em Le Voyage, onde Christopher, pela força do desejo de viajar por mar...:
"Quando se deseja imensamente alguma coisa, quando se estende sempre as mãos, ela acaba por descer para você na terra. Ela vem nos encontrar." [22]
... vê-se projetado na vida do cabo de marinheiros Alexandre Wittiker, guindando a alma à Plenitude, pela perfeita correspondência de sua aspiração com o Sonho.
"Almirante Punt
E quais são as navegacões com as quais está envolvido...incidentalmente?
Christofer
Todas!
(...)
Não há porto, estreito precioso e farol, dos quais eu não conheça a posição exata e as qualidades.
E, mesmo estas ilhas da Oceania com nomes de moças, com olhos de meninos! Guardo também lembrança da cor fatal das águas... se há lenda em torno dos recifes, naufrágio e morte.
Almirante Punt
É demais.
Christofer
Ou de menos, para quem tem o Oceano nas entranhas, por dever ou por curiosidade. Mas, a gente não pede a um cão que conte as pulgas de seu dono, do mesmo modo que não se pede a um cabo-de-marinheiros que enumere todas as surpresas do mar". [23]
E não é senão pelo poder do sonho que Christopher refaz, ao longo de todo o sexto quadro de Le Voyage, a história que lhe atribuem como real, purificando-a de sua sordidez, quando infunde dignidade onde só havia degradação e generosidade, onde medrava a mesquinhez.
É, ainda, pelo poder do sonho (através de uma de suas manifestações, o delírio) que o Sr. Bob'le reencontra, nas cenas finais de Monsieur Bob'le, em seu leito de morte, todos os amigos do povoado: Arnold, Frédéric, Arthur, Corée... e, finalmente, o Metropolita Nicolas, que conduz a oração e com ele permanece até o fim.
Não só o delírio, mas também a vidência e o transe profético podem ser considerados, na obra, como estado de sonho, sendo nítido seu valor de revelação. Relembremos a visão de Esfantian, em La Soirée des Proverbes:
"Acabo de ver o Dia e a Noite!...Oh! De um lado: o Dia! De outro: a Noite!
O Dia e a Noite nos campos, juntos (Leva a mão ao coração) Oh!...Isso não durou mais que um instante". [24]
Visão que pressagia o trágico desenvolvimento do serão que se aproxima...:
"O Presidente Domino
Com todas as suas aparências... se você tivesse visto realmente o Dia e a Noite, ao mesmo tempo, isto significaria, Senhor, o fim do mundo. (...)
A Noite e o Dia são elementos primeiros ou, se preferem, os pratos de uma mesma balança; vê-los juntos, é falsear o balancim e roubar à idéia de justiça, seu equilíbrio mais puro" [25]
... como a provar que o sonho também tem seu duplo aspecto de interpretação: o encontro da "verdadeira vida" e o pesadelo. "À magia do conto de fadas, que transmuta o quotidiano em maravilhoso, (...) parece que se opõe (...) uma magia inversa (...), a de destruição". [26]
Outro exemplo de vidência encontra-se em Histoire de Vasco e nos é dado pela Sra. Hilboom, velha senhora que pretende perscrutar o passado e o futuro na água que retira de um poço:
"Vou ao fundo, lá onde há a vida e a morte das imagens. Para saber. Empreste-me seus olhos para mergulhar na água das imagens". [27]
A visão é reveladora, mais uma vez, de tragédia; aqui, do trágico destino de Vasco (facilmente reconhecível pelos indicadores de pureza e ingenuidade que caracterizam o personagem) em sua marcha na direção do campo de guerra:
"Mas toque a água, agora: ela está queimando!... É sinal de presságio... Pois percebo uma luz ao longe como um escudo que pensa... uma pequena luz de santo sacramento, perdida num bosque imenso... ao lado de cães mortos... há muito tempo. (...) E sobre um muro abandonado, anjos que têm fome, comem rosas... Tudo isso é sinal de luto..." [28]
"Un rêve est une lucarne", diz-nos César em Histoire de Vasco [29] , o que vale referir-se ao aspecto mais peculiar do ato de sonhar. Com efeito, o sonho é uma "fissura", uma "abertura" que conduz para além das limitações do material, como vimos. É, também, o lugar privilegiado da revelação, conforme visto momentos atrás; mas, em grande medida, o elemento motor que redireciona e mesmo orienta a vida. Em Histoire de Vasco, é o sonho que determina o tecido dramático, a partir do transporte de Marguerite:
"Estou sonhando... deixe-me. Ando sobre as lajes de um caminho... numa igreja ornada de pastores meninos que têm, cada um, duas flautas na boca... (...) ...e me pergunto por que tenho tanta felicidade...Não sou a mais bela... e meu amor não é o maior. Agora, o dia me abandona, deixando-me suas mãos... e eu encontro perto de uma fonte... um pequeno cabeleireiro...A água não tem ruído... (...) Ele toca meus cabelos como uma areia amarga... e, abrindo sua tesoura, faz dela duas chamas, meu coração e o seu... unidos para sempre. [30]
Marguerite, que vê o cabelereiro Vasco em sonho, compreende que estão unidos. Embora sem conhecê-lo, passa a viver em função dele. Conversa com ele, certa vez, sem se dar conta de quem se trata e é morto que vai revê-lo ou vê-lo pela primeira vez, ao que exclama:
"Justo no lugar de meu sonho, ele adormeceu" [31] .
ressaltando, como sublinha Robin, a "natureza profética" do sonho, "o liame que o une ao Destino" [32] na pureza de sua manifestação espontânea.
Sendo o sonho uma instância notável do insólito, é natural que um contacto superficial com a obra schehadeana possa sugerir uma postura surrealista por parte do autor. O sonho é o estado particularmente propício à manifestação do surrealismo, pois, com certeza, é o estado mais convidativo à irrupção do inconsciente, ao "automatismo psíquico" de que fala André Breton em sua consagrada definição: "Surrealismo - Automatismo psíquico puro, pelo qual, propõe-se exprimir seja verbalmente, seja por escrito, seja de qualquer outra maneira, o funcionamento real do pensamento. Ditame do pensamento, para além de todo controle exercido pela razão e fora de qualquer preocupação estética ou moral. (...) O surrealismo se assenta sobre a crença (...) na onipotência do sonho, no jogo puramente desinteressado do pensamento" [33] .
Ora, no teatro de Schehadé, é nítido, antes de mais nada, o compromisso do contador de histórias que jamais perde o fio de sua narrativa. O sonho tem um papel fundamental na condução da narrativa e no esclarecimento de seus mistérios. Se é possível detectar laivos de surrealismo em Rodogune Sinne que, segundo o autor, (em nota prévia ao romance) foi escrito "ao sair do colégio" ("J'étais alors pigeonnier de mots, de tourterelles... j'étais plein de bourdonnements"), o mesmo não acontece com sua obra dramática. No plano conceitual, podemos dizer que o insólito schehadeano tem o poder de tornar o familiar estranho e o estranho familiar. Mas, nesse processo, ocorre uma perda tão pequena de sentido orgânico da linguagem, que somos levados a imaginar que, ao contrário do que propõe o surrealismo, esta é uma linguagem bastante estudada, meticulosamente prevista.
Há, em Schehadé, uma forma de sonho, que não procede da angústia, do inconsciente, mas pretende ser a de uma plenitude que se quer realizar no nível da poesia. Em certo sentido, o sonho, enquanto transe, transporte, evasão (implicando, todos estes estados, desprendimento do real), propõe-se também como "viagem" em direção do Paraíso, do Absoluto, de Deus... Basta rememorar a invocação do Sr. Bob'le, em seu delírio de moribundo:
Ó, Meu Pai, Ó Vós, que sois Claridade! ... Lembrança... Inteligência... Vós que sois espiga e celeiro... rosa e jardineiro... Vós que estais sentado à Vossa própria direita... (...) Vós que sois Vosso rosto... (...) Ó meu Deus [34]
Além da relação que se pode estabelecer entre sonho e viagem, seria possível distinguir ao longo de toda a obra, o tema da Viagem que restabelece, de modo frisante, a antinomia próximo/longínquo ou cósmico, um dos pilares da tessitura dramática schehadeana.
[1] In: "Schehadé e o Líbano". Artigo publicado no Suplemento Literário de O Estado de S.Paulo, em 29.12.1956.
[2] "Suas fontes estão praticamente em seu interior. Sim, meu caro Georges, você é bem capaz de não ter lido as Mil e Uma Noites. Não havia necessidade. Você as trazia consigo, junto com suas estrelas pessoais e suas íntimas aeronaves, você que é tão inspirado para a invenção verbal, quanto para a criação de seus personagens. E tudo isso vai se impondo a nós, naturalmente, sem que nos demos conta, como o curso de um rio da França ou o crescente da lua mágica".(in Georges Schehadé Cahiers de la Compagnie Madeleine Renaud/ Jean Louis Barrault, 17è. Cahier, Paris, Julliard, 1957, p.3).
[3] Georges Schehadé é para mim, um dos maiores, dos mais autênticos dentre os poetas de nosso tempo; e fico feliz de estar de acordo com críticos tão exigentes e tão perspicazes quanto André Breton ou Gabriel Bounoure, com poetas tais como Saint-John Perse, René Char e Supervielle". (cit. por Sélim Abou, in Le Bilinguisme Arabe-Français au Liban, Paris, PUF, 1962, p.366.
[4] in Liban, Paris, Seuil, pp. 156-157.
[5] Estas informações estão divulgadas por Claudine Thomas in L'Oeuvre Dramatique de Georges Schehadé. Mémoire présenté à la Faculté de Philosophie et Lettres de l'Université Libre de Bruxelles, 1962.
[6] Histoire du Nouveau Théâtre, Paris, Gallimard, 1966.
[7] PICON, Gaëtan. In: Panorama de la Nouvelle Littérature Française. Paris, Gallimard, 1960, pp.295-296.
[8] "Monsieur Bob'le et les Ombres" in Marelles sur le Parvis. Paris, Plon, s/d., p.299.
[9] "L'Insolite et le Rêve dans le Théâtre de Georges Schehadé". In: L'Onirisme et l'Insolite dans le Théâtre Français Contemporain. Paris, Klincksieck, 1947, p.105.
[10] Paris, Gallimard, 1966, pp. 138-139.
[11] In: Monsieur Bob'le, Paris, Gallimard, 1951, p.32.
[12] Idem. Ibid. p.75.
[13] Idem. Ibid. p.127.
[14] Idem. Ibid. p.127.
[15] Idem. Ibid. p.127.
[16] Idem. Ibid. p.195.
[17] Histoire de Vasco, 10è. ed., Paris, Gallimard, 1957, p.223.
[18] Idem. Ibid. p.28.
[19] La Soirée des Proverbes, op. cit., p.95.
[20] Idem. Ibid. p.127.
[21] Idem. Ibid. p.151.
[22] Le Voyage, Paris, Gallimard, 1961, p.76.
[23] Idem. Ibid. pp.115-116.
[24] Op. cit. p.15.
[25] Idem. Ibid. p.17.
[26] Cf. ROBIN, Pierre. art. cit. p. 107.
[27] Op. cit. p.79.
[28] Idem. Ibid. p.80.
[29] Idem. Ibid. p.24.
[30] Idem. Ibid. pp.25, 26, 27.
[31] Idem. Ibid. p.222.
[32] ROBIN, Pierre. art. cit. 104.
[33] In: Manifestes du Surréalisme. Paris, Gallimard, (Col. Folio/Essais), p.36.
[34] p. 243.