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O Papel da Imagem na Tradição Árabe

- Conferência para concurso de Professor Titular FFLCHUSP, 22-6-98 -

 

Aida R. Hanania


     Escolhi para tema desta exposição "o papel da imagem na tradição árabe", papel da imagem no que ela tem de fundamental para a compreensão das expressões artísticas árabes, buscando aquilatar o grau de importância que têm as mesmas em face da cultura em que se inserem. E devo dizer que a escolha se deu, por entender que o conteúdo deveria incidir sendo possível — em tema aglutinador das escolhas feitas ao longo de minha vida como docente e pesquisadora.

     Considerando aspectos centrais de meu trabalho, percebo que meu interesse caminhou, muito freqüentemente — por sendas diversas e aparentemente independentes — na direção da importância fulcral que tem a palavra no âmbito da Cultura Árabe, focalizando as instâncias em que mais apropriadamente ela se revela: o conto sentenciado, o provérbio, o teatro ou o conto dramatizado, culminando com a palavra alcorânica e a Arte Caligráfica. Decorrente desta constatação — e até como condição para que esta importância ressalte na tradição árabe — pareceu-me interessante analisar — ainda que de modo horizontal, dadas as proporções de tempo que nos condicionam no momento — o contraponto da palavra, a imagem, perscrutando seu valor não só em sua dimensão religiosa, mas, mais amplamente, em sua dimensão antropológico-cultural, organizando um percurso de observação que não vise apenas à realidade árabe sob a égide do Islão, mas que inclua também, a realidade pré-islâmica da Península Arábica, nascedouro da última grande religião monoteísta.

     No contexto árabe, o estudo da imagem adquire uma instigante complexidade e torna-se cada vez mais necessário, na medida em que a intrusão da imagem sob as formas modernas: plástica, audio-visual, "internética", digamos assim, em estruturas sociais de dominante amplamente tradicional leva a desequilíbrios enriquecedores e às vezes, a mudanças radicais.

     Diga-se de passagem também que, ainda hoje, os analistas da assim chamada sociedade pós-moderna, cifram sua caracterização como eikon em oposição a logos, a civilização da imagem em contraposição a uma civilização da palavra(1).

     Ao falar de imagem, remetemo-nos muito naturalmente ao âmbito da arte, campo onde mais sensivelmente se pode observá-la.

     Quando nos referimos a arte árabe, referimo-nos, ao mesmo tempo, a arte islâmica, à qual está intimamente vinculada e com a qual se confunde, a partir do movimento expansionista árabe que se segue ao advento do Islão no século VII, ocorrido no coração da Arábia, em razão da divina mensagem revelada a Muhammad em língua árabe e consubstanciada, mais tarde, no Alcorão, texto maior do muçulmano.

     Mas, antes de considerarmos que primi motori presidiram a criação islâmica, é preciso saber se determinadas características foram cultivadas, se estas tiveram um papel permanente com relação à arte ou ainda, se enquanto fenômeno islâmico, a arte não é apenas uma variante regional e temporal de outras entidades artísticas (como se sabe, a civilização árabe islâmica formou-se no curso de sua expansão, a partir do contato com povos os mais diversos em estágios culturais também diversificados).

     Para tanto, parece fundamental distinguir uma mentalidade, uma atitude em face da arte, uma motivação psicológica, assim como um sistema intelectual.

     Cremos oportuno, pois, refletir sobre algumas peculiaridades de ordem espácio-temporal, importantes à conceituação de todo e qualquer aspecto concernente à Cultura Árabe.

 

Estilo kûfi ortogonal (Samarkanda): "Não há deus senão Deus e Muhammad é o mensageiro de Deus" (profissão de fé muçulmana)


     Tendo início a formação da Umma em 622, a almejada nação árabe-islâmica adquiriu seus contornos maiores com a chegada dos muçulmanos à Península Ibérica em 711. Não se deve deduzir, entretanto, que a formação da arte e seu pleno desenvolvimento coincida com o tempo absoluto, marcado pelas datas a que nos referimos. Há que se ater ao tempo relativo, pois o processo de implantação da língua árabe e da religião islâmica gerou uma realidade bastante complexa, determinada pela união de várias etnias, várias culturas, várias filosofias.

     O grau de islamização de cada região ou grupo social foi extremamente diversificado, não só porque o momento histórico em que ocorreu era outro, mas — e sobretudo — em virtude do maior ou menor arraigamento das populações conquistadas a seus valores originais. Para exemplo, tomemos a Pérsia, que à época da arabização era uma região das mais florescentes sob todos os aspectos e que manteve, com a incorporação dos valores árabes e islâmicos, muita autonomia na condução de seu desenvolvimento cultural (uma autonomia que se projeta até hoje, aliás, pelas especificidades de sua prática político-cultural).

     Outro exemplo é dado pelos berberes. Apegados de modo intenso a sua condição de povo de "amazigh" (homem livre), instalados ainda hoje na região do Magreb, parecem ter se islamizado massivamente, apenas por volta do século XI, mesmo assim, guardando respeito por tradições ancestrais e usando, ao lado do árabe, sua língua berbere original. Aliás, os valores berberes estão muito vivos ainda hoje, coexistindo com os valores árabes e islâmicos (a propósito, chamou-me curiosamente a atenção em Paris, o depoimento de uma colega da Universidade de Constantina na Argélia, que se definiu politicamente como árabe, do ponto de vista religioso, como muçulmana e culturalmente como berbere...).

     A incessante afirmação de uma realidade específica no seio de uma entidade ontologicamente unitária não cessou de existir, mesmo com o renascimento cultural empreendido no mundo árabe, ou seja a Nahda, movimento iniciado por cristãos e não por muçulmanos... A própria Nahda, pois, é um exemplo do que acabamos de dizer.

     É interessante notar que a ordem instaurada pelo Islão, ao longo de oito séculos, pôde, em certo momento, aproximar mais culturalmente a Andaluzia do Egito que do próprio norte da Espanha...A propósito, observa Grabar(2): "no ano 700 de nossa era, é provável que Córdoba e Samarcanda não tivessem conhecimento uma da outra; em 800, faziam parte do mesmo mundo, o que não mais era válido em 1200. Na mesma época, Granada fazia parte da civilização de Samarcanda, mas não mais da de Córdoba. Em 1450, Constantinopla era ainda um bastião da arte bizantina cristã, mas em 1500, sua produção artística poderia se comparar à de Delhi ou Marrakesh".

     Essa desigualdade, manifesta tanto em dimensão histórico-geográfica, quanto sócio-cultural, por certo repercutiu no modo de expressão artística, levando à coexistência de posturas mais ou menos rigorosas no que toca à relação da doutrina islâmica com as culturas pré-existentes nos contextos que se iam arabizando.

     Por outro lado, o patrimônio artístico das regiões conquistadas veio, muitas vezes, fecundar a original aridez de uma civilização, de início, muito austera.

     Ao nos determos, porém, nas peculiaridades que configuram a arte, para além da adoção de traços ou do amalgamento de traços adquiridos pelos caminhos trilhados pela Civilização Árabe, verificamos que há certas constantes na concepção artística, tanto no espaço como no tempo; constância ligada a modelos consagrados pela tradição, apesar das variações regionais e da imensa área abrangida pelo Islão, cuja população engloba todas as raças (devemos levar em conta que a expansão islâmica atravessa todo o Oriente, chegando até a China e, em direção ao Ocidente, abrange todo o norte da África, com repercussão pelo interior do continente, e parte da Europa). É para estas constantes que nos voltamos, ainda que brevemente, hoje; constantes que gravitam em torno do binômio palavra/imagem.

     Vê-se que prepondera fortemente a ausência da imagem na obra de artistas muçulmanos, bem como a fascinação por uma forma decorativa não figurativa, sendo notório o valor da escrita, a repetição em grandiosa caligrafia da divina mensagem. A ausência da imagem também faz-se sentir no plano ensaístico: os críticos árabes, ao longo do tempo, não têm comentado a arte, a não ser em sua forma abstrata (indicando, de algum modo, que apenas a arte abstrata mereça relevo). As artes plásticas – embora existentes, timidamente, já a partir do século VIII, com visível apogeu no século XI e XII, quando do desenvolvimento das miniaturas — não suscitaram a efervescência teórica e analítica que acompanha as realizações correspondentes da arte ocidental em todas as épocas.

     Tomando para exemplo, o tunisino Ibn Khaldun, conhecido autor do século XIV, em seus Prolegômenos, Tratado de Filosofia Social (aliás, existe uma bela tradução em português feita por José Khoury diretamente do árabe), verifica-se que ao abordar as formas de expressão cultural árabe islâmica, silencia sobre o problema da criação plástica, o que revela a natureza estrutural desta lacuna.

 

"Não será a bondade a recompensa da bondade? (Alcorão LV, 60)"

(Caligrafia de Hassan Massoudy)


     Por outro lado, considerada no âmbito teológico, a questão da imagem é ainda mais complexa e convocou figuras eminentes do mundo islâmico(3) através dos séculos como a de Algazali no século XI que em sua obra Ihya ‘Ulum Al-Din (Vivificação das Ciências da Religião) condena os afrescos bizantinos representando seres humanos e animais, não tolerando senão os que representam seres inanimados.

     Outro conhecido autor medieval, Mohamad Ibn Sirine, em sua obra Mokhtar al Kalam fi tafsir al Ahlám (Palavras escolhidas para interpretação dos sonhos), afirma que o pintor é um sonhador e por isso, vive sob o influxo do falso, pois "a imagem procedente do sonho remete a uma realidade fictícia".

     Al – Naboulsi vê na imagem "o sinal enganoso que mascara a alusão e a torna incapaz de remeter à sua realidade expressiva superior" e Ibn Chahin vê na imagem, a "personificação da mentira".

     Exceção feita de alguns estudiosos árabes — todos contemporâneos, tais como Mohamed Aziza na Tunísia, Afif Bahnassi na Síria, Jabra Ibrahim Jabra no Iraque e alguns outros, ligados de algum modo ao estudo da imagem plástica — a omissão de estudos a respeito de uma estética árabe é evidente. É significativo observar que há não muito tempo atrás, a revista tunisina Al-Fikr consagrava um número especial voltado à Cultura Árabe. Ora, este número foi realizado não só por tunisinos, mas por árabes de diferentes países que abordaram a totalidade dos domínios da cultura, bem como dos gêneros artísticos, salvo as artes plásticas!...

     São os críticos e historiadores da arte ocidentais, entretanto, dentre os quais merecem destaque Oleg Grabar, Douglas Talbot Rice, Titus Burkhardt, Fritjohf Schuon, Richard Ettinghauser que, de certa forma, dedicam-se a preencher este vazio e a superar a falta de estudos sobre uma estética árabe, buscando caracterizar a arte figurativa árabe, o que acaba implicando necessariamente, a valorização da arte abstrata, representada fortemente pela Caligrafia e pelo Arabesco.

     É contestável, entretanto, a afirmação de Von Grünebaum(4), segundo a qual, a Cultura Islâmica seria constituída, procedendo por aceitação ou eliminação de elementos do legado que recebeu das culturas anteriores (do Egito, Mesopotânia, Bizâncio, etc), estando entre as que o Islão rejeitou, a arte plástica e até a arte dramática (que não deixa de ter uma interface com a plástica, conseqüência da representação humana). Afirmação contestável, que remete a uma questão complexa e vejamos por que.

     A ausência da imagem, profundamente associada à visão de mundo árabe e islâmica, decorre muito naturalmente da concepção teológica central do texto sagrado. O Alcorão, palavra incriada do Deus único, eixo de todo um ser coletivo e individual, é considerado o Signo-Fonte da Sabedoroia, do Dever e da Beleza.

     A escrita tornou-se uma das formas mais proeminentes de inserção do signo na realidade e na memória dos homens, fixando a língua que se tornou o veículo da Revelação.

     Na verdade, o Alcorão, mais do que um mero texto sagrado, é um amplo código de conduta religiosa, moral, social e filosófica, além de expressar uma lei e, por assim dizer, uma ideologia. É o parâmetro para toda uma vida prática e intelectual.

     Desse modo, o Islão pôde proporcionar uma ordem a um vastíssimo território, guardando uma uniformidade básica.

     Oscilando dialeticamente — de modo sutil — entre o geral e o particular, o comum e o específico, os árabes não perderam de vista o objetivo maior, a consolidação da entidade unitária representada pela Umma, oferecendo aos povos conquistados, a convicção clara de pertencer a uma civilização e a um projeto "árabes", refletindo um desígnio divino. A propósito, lembra-nos Aziza(5): "A la notion d’unité raciale et ethnique se substituait peu à peu, une unité du devenir, le devenir arabo-musulman."


     O pensamento alcorânico é total e sua língua é perfeita, porque procede do Verbo do Altíssimo que desceu à Terra. Este Verbo fez-se escrita. Escrita que se materializou na Caligrafia, que representa o corpo visível da divina palavra.

     Para o Islão, o nome sagrado de Deus e o Alcorão equivalem à Encarnação para o cristão: o mesmo senso de devoção que o cristão nutre por Jesus, Verbo Encarnado, é o que o muçulmano nutre pela escrita da palavra divina e pelo Alcorão que a acolhe. Diferentemente, pois, do Cristianismo (e poderíamos acrescentar, do budismo, por exemplo), o Islão jamais teve a necessidade de uma iconografia centrada na vida terrestre de seu fundador: Muhammad, ao contrário de Cristo, era um ser apenas humano, eleito por Deus, sim, para transmitir sua mensagem na terra. Mas é a própria mensagem divina que, sob sua forma escrita, deve receber observância e culto.

     Essencialista, a arte islâmica levou a extremos a reserva quanto à imagem, quase negando a própria possibilidade de uma arte figurativa, ao menos vendo-a com precaução e desprezo.

     Convém examinar um pouco mais de perto, esta prevenção contra a imagem. A prevenção contra a imagem já permeava, como se sabe, os preceitos das grandes religiões monoteístas anteriores ao Islão.

     Entre os antigos semitas, a idolatria judaica mereceu o cabal repúdio dos profetas. Erguem-se contra ela, incisivos discursos como os de Isaías e Jeremias. Ainda no Velho Testamento, a famosa passagem de Êxodo 20, 4, por exemplo, preceitua imperativamente: "Não farás imagem talhada, nem qualquer representação das coisas que estão no céu e na terra, ou nas águas sob a terra".

"Não será a bondade a recompensa da bondade? (Alcorão LV, 60)"
(Caligrafia de Hassan Massoudy)


     Charly Clerc, em seu clássico Les Théories relatives au Culte des Images chez les auteurs grecs au IIè siècle(6), alude à desconfiança que se estendia à arte manual por sua possível associação com o objetivo idólatra: "Le Créateur des choses ne peut être renfermé dans une création d’homme — Ce serait un blasphème que de le supposer. Quant à vénérer dans une image, le symbole de l’Etre divin, il ne peut en être question. Car, outre qu’une telle adoration est dépourvue de sens — on sait à quels égarements elle entraîne".

     Antes de prosseguirmos com a análise do problema no Islão, contrastemos a questão contra o pano de fundo das concepções cristãs, das leituras cristãs do tema da imagem e da antropologia a ela subjacente.

     Se para o cristão, há sensível gradação na conceituação da imagem: não se deve adorar, mas reverenciar a imagem da Virgem, de Jesus e dos Santos; para o cristão oriental, as regras de preservação da sacralidade são mais rígidas; ele exclui a tri-dimensionalidade da imagem talhada, a estátua esculpida, admitindo apenas os ícones, imagens pintadas em superfície plana.

     Há que ressaltar, entretanto, que houve, no decorrer da história, importantes manifestações em favor da imagem para o cristianismo.

     Extremamente significativa, por exemplo, foi a polêmica intervenção de São João Damasceno (séc. VII) que, no acirramento do iconoclasmo — um contágio da presença de árabes muçulmanos nos limites do Império Bizantino — busca recuperar, fortalecendo em seus três discursos tornados célebres em prol da imagem sagrada, seu valor próprio, a imagem como conseqüência clara do realismo cristão, presente na realidade histórica e ontológica da encarnação.

     Disse-o bem Vittorio Fazzo(7), ao interpretar o pensamento de João Damasceno: "O mundo em que o Verbo de Deus desceu por encarnar-se verdadeira e realmente, não é um mundo de sombra, mas um mundo a que a realidade e a bondade originária da matéria é dada diretamente pela criação de Deus". Cabem aqui, as palavras do próprio Damasceno em seu Segundo Discurso: "De fato — diz ele — se Deus se encarnou e pela carne foi visto sob a terra e se, devido a sua indizível bondade, conviveu com os homens e assumiu a natureza, a consistência, a forma e a cor da carne; então, não estamos errados em fazer sua imagem. Nós desejamos ver sua figura"...(8)

     São palavras que guardam nítida ressonância salmística. Veja-se, por exemplo, o salmo 27,8: "Vultum tuum, Domine, requiram" / Eu anseio tanto por ver teu rosto, Senhor.

     Reiterada ao longo do tempo, a importância da imagem cristã encontrou no século passado e neste, no teólogo russo Vladimir Soloviev e no escritor britânico Gilbert Keith Chesterton, seus defensores mais rigorosos.

     Mas, voltemos ao Islão. Embora o tema da imagem seja infinitamente profundo no cristianismo, aqui, naturalmente, estas referências só nos importam como contraponto.

     Um primeiro fato surpreendente para quem se inicia nestes estudos, com relação ao Islão é que, examinando-se o texto alcorânico, constata-se que nele não há interdição definitiva da imagem ou da arte em geral.

     É evidente e muito clara, entretanto, a condenação da idolatria, uma vez que "será proscrito todo objeto de arte que se torne cultuado". Tal condenação explicita-se de modo cabal na sura 53, versículos 19 a 23, quando, em relação aos ídolos mais famosos adorados pelos árabes pagãos (três estatuetas femininas), o Alcorão afirma: "Al-Lat, Al-Uzza e Manat não são mais do que nomes, que vós e vossos pais lhes haveis dado. Deus não fez descer sobre elas nenhum poder".

     Já quanto aos hadiths, tradições, isto é, compilações que se referem à conduta e à fala do Profeta, verifica-se que em suas declarações está contida a hostilidade à arte em geral e, em particular, à figurativa. Verifica-se ainda que a condenação surge com mais veemência contra o artista do que contra a sua obra, conforme um de seus mais reconhecidos aforismos: "os artistas que fazem imagem serão punidos no Dia do Juízo por um julgamento de Deus que lhes determinará a impossível tarefa de ressuscitar suas obras".

     Outra razão implícita da condenação do artista e da imagem que produz, escuda-se no fato de que a mensagem nuclear do Alcorão, consiste em afirmar a unicidade e o total poder de Deus. A relação dos Atributos de Deus (Asma ‘Allah al Husna) mostra que um de seus qualificativos é Al – Mussawir (o criador de formas), o mesmo termo utilizado para pintor. A partir daí, todo artista que produzisse formas pintadas e sobretudo esculpidas seria um rival de Deus no exercício de Suas atribuições principais.

     O muçulmano vê a representação como blasfêmia, pois só Deus tem o poder criador da vida. Na visão hindu, por exemplo, e na cristã, a arte figurativa representa um modo de falar de Deus, da natureza e não de imitá-los ou de competir com eles.

     Não se pode esquecer, por outro lado, que um ponto fulcral da doutrina islâmica é o combate ao politeísmo e ao totemismo vigente entre os árabes da Jahiliya, literalmente, época da ignorância, isto é, a época pré-islâmica, de desconhecimento da mensagem divina, donde a importância conferida à palavra escrita em dupla dimensão: iconográfica e educativa.

     O Islão, afirmação da Unidade divina consiste numa conformidade ritual e espiritual do homem e da sociedade com a Lei Alcorânica, portanto com a Unidade. É neste sentido que se manifesta Schuon(9), quando afirma, conciso: "L’Islam est un bloc spirituel religieux et social", pois a idéia de Unidade é o suporte de toda a espiritualidade e, de certa forma, de toda atitude social.

     A Igreja é um centro e não um bloco. O cristão leigo é, por definição, um ser periférico. O muçulmano é um ser central em sua tradição (aliás, nem caberia falar em muçulmano leigo, como também não há sacerdotes; para o Islão, o muçulmano é sacerdote de si mesmo).

     E a Unidade não é exprimível em termos de imagem.


     Outro erro fundamental do ponto de vista da figuração para o muçulmano é que com a utilização da imagem, ocorre a projeção da natureza do absoluto no relativo, atribuindo-lhe uma autonomia que não lhe pertence.

     Nesta linha de considerações, a ausência de imagens nas mesquitas tem dois objetivos: um é o de eliminar a presença que se poderia colocar contra a presença — ainda que invisível — de Deus e que poderia, além disso, tornar-se fonte de engano por causa da imperfeição de todos os símbolos; o outro é a afirmação da transcendência de Deus, considerando que a Divina Essência não pode ser comparada com absolutamente nada.

     A arte abstrata, por sua vez, esta sim, é a expressão de uma lei e manifesta, tanto quanto possível, a Unidade na multiplicidade. Burkhardt acrescenta: "Arte para o muçulmano é uma prova da divina existência; deve ser bela, sem revelar as marcas de inspiração individualista e subjetiva; sua beleza deve ser impessoal como a beleza do céu estrelado".(10)

     Com efeito, a arte islâmica deve atingir uma espécie de perfeição que pareça ser independente do autor; seus triunfos e seus fracassos desaparecem diante do caráter universal das formas.

     Para além de seu significado hierático adquirido a partir do Islão, as razões de valorização da palavra já se encontram na mais longínqua Arábia pré-islâmica, no âmago do deserto que é o mentor do encontro do homem consigo mesmo, sem outra mediação, a não ser a do silêncio que eloqüentemente o povoa.

     Nesse mundo de ausência, de vital impacto com seu ser mais íntimo, a gente do deserto previne-se contra tudo o que, de certa maneira, se liga ao mundo do visível, preferindo a visão interior à representação clara e manifesta, o que está contido no conhecido provérbio:

     "Al tukhaiulát ahám min al ma’rifa" /
A imaginação é mais importante que a realidade.

     A imagem não tem significado real, aproxima-se da miragem. O deserto é o mundo do invisível e principalmente, um mundo sônico.

     Já na primitiva realidade árabe, os meios de expressão artística são, compreensivelmente, a poesia e a música: duas vertentes que se exprimem pela palavra e que são essenciais, porque procedem do espírito e a ele retornam, suprindo a necessidade de beleza e de ligação com o mundo de que todo homem não prescinde; o errante em particular.

     O significado da existência insinua-se também na palavra indefinidamente repetida da parábola, do provérbio, do conto, cujas formulações tocam de perto o homem em seu cotidiano e em seu interior, facilitando a interpretação do mundo e da natureza.

     O Alcorão surge como que determinado por e para essa realidade.

     É o signo máximo, que deve ser lido, interpretado e decifrado em toda dimensão, porque traz o grande significado do Mundo e da Natureza em seus versículos, chamados apropriadamente ayát, isto é, sinais, cuja presença é inextricável da presença de Deus.

     Na inspirada formulação de Flusser, em seu artigo "Ex Oriente Lux"(11), "Deus se manifesta escrevendo e o homem se aproxima de Deus, lendo aquilo que está escrito. Se o olho físico e mental do homem acompanha atento as curvas da letra, seu espírito é elevado em curvas até o espírito universal. É preciso sorver a letra em sua concreção compacta, se quisermos compreender a plenitude do termo 'verbo encarnado'. Deus está encarnado na letra. A letra e a escrita são o aspecto fenomênico e compreensível de Deus. Deus escreve. A palavra árabe que significa escrever consiste das letras KTB e estas letras denotam a atividade divina. Denotam, com efeito, o próprio fundamento da realidade que cerca o homem. Aquilo que é, é, porque assim está escrito: 'Maktub'. Deus se manifesta duas vezes. É autor de dois livros O primeiro é a natureza, o segundo é o Alcorão. Mas os dois livros, embora de forma diferente, são idênticos quanto ao conteúdo (...) O estudo do Alcorão é uma iniciação ao estudo da Natureza. O estudo da Natureza é uma procura de Deus".

     Como corpo da Revelação, a Caligrafia ou Khat é a própria identidade do Islão, exercendo-se como elo entre a Natureza e o Alcorão, ao plasmar os sinais de Deus em seu duplo sentido: sendo abstrata é, em certa medida, figurativa, visto ser a própria encarnação do Verbo; sendo visível presença da divina palavra, remete ao Invisível (Ghayb).

     A Caligrafia não é, pois, uma arte em substituição à imagem. Na verdade, a palvra divina fêz-se imagem e como tal é cultuada na tradição árabe.

     Esta dimensão filosófico-religiosa radica, inevitavelmente, a Caligrafia na base da teologia muçulmana. O caráter desta relação profunda ressaltará sempre na Arte Caligráfica, mesmo quando dessacralizada ou utilizada de outro modo (como faz o calígrafo Hassan Massoudy, por exemplo, ao promover, por meio de sua arte, o teor humanístico do pensamento): pela reverência do traço, magnificência do estilo, solenidade do gesto e significativa presença da cor. Sobretudo pela estrutura física da escrita (privilegiada pela enorme plasticidade de que são dotados os caracteres árabes) realizando-se pela ordenação das letras em duas disposição: uma vertical que conduz à ascese, representada principalmente pelo alif e pelo lamm e outra horizontal, que as junta, tecendo a unidade e o ritmo que virá a configurar o signo estético, seja ele de cunho religiosos ou não. A sacralidade, porém, passa a necessariamente integrá-lo.

     Muito embora tenha se realizado, a conquista da arte figurativa e seu conseqüente desenvolvimento até o presente, entre os muçulmanos, nunca teve um percurso tranqüilo, ainda que se verificasse sempre no âmbito do profano. Suscitou sempre acirradas polêmicas e acaloradas discussões acerca de interpretações dogmáticas.

     Houve, evidentemente, níveis diferentes de aceitação e de restrição à imagem ao longo da história: a região da Pérsia, por exemplo mostrou-se mais liberal que as regiões de substrato semítico; houve uma atitude marcadamente moralizadora nos primeiros tempos do Islão, com vistas a extirpar de seu universo a idolatria, contrastando com a abertura maior do século XII, período sem dúvida de maior estabilidade político-cultural. E, retomando Grabar, diríamos que a "heterodoxia shiita mostrou-se mais permissiva que a ortodoxia sunita". Contudo pairou sempre sobre a mão do artista — ainda que de modo não canonicamente explícito — certo desprezo pela imagem.

     Por outro lado, há uma unanimidade, uma horizontalidade que atravessa a globalidade árabe: a importância da escrita, da Caligrafia como veículo máximo da simbologia islâmica: é escrita para ser ouvida no silêncio da fé que leva ao Islam. E é poesia para ser vista, pela harmoniosa concepção do signo como unidade estética.

     Por sua dimensão ornamental, iconográfica e educativa, a Caligrafia cumpre uma função social que a valoriza, atendendo à preocupação com a "utilidade da obra" que todo artista, todo pensador e todo escritor árabe tem, por não conceber meramente a arte pela arte.

     Integrada a uma fé e a um ideal, a Caligrafia tem seu fundamento num Islão que embora traga uma mensagem à Humanidade surge, inicialmente, ao homem árabe do deserto, falando sua linguagem e considerando sua mentalidade e seus valores...

     O calígrafo Massoudy, ele mesmo um homem do deserto, sintetiza com rara percepção, essa compatibilidade:

     "Para um muçulmano, o mundo das imagens ditas 'reais' não são mais que o reflexo enganoso de uma Realidade maiúscula que escapa necessariamente às armadilhas das aparências; afinal de contas, a idéia que guardamos em nós da realidade, tem mais verdade que a aparência contingente que nossos sentidos nos liberam dessa mesma realidade.

     Segundo esta visão, a palavra portadora da idéia, encarna a realidade mais do que a simboliza. Sem querer levar mais adiante o paradoxo, eu diria que a figura pintada não é senão o signo de uma realidade que ultrapassa a representação e que, ao contrário, o signo caligrafado, encarregado de traduzir abstratamente as figuras do mundo, toma lugar, por sua vez, entre as figuras do mundo e, por esta razão, adquire autonomia, vontade, carne."(12)

     Salah Stétié, entre filósofo e poeta, busca também explicar a constante oposição à imagem entre os árabes muçulmanos, afirmando: "Les formes que nous avons sous les yeux ne sont que des assemblages momentanés d’atomes. Elles sont destinées à passer. La ligne n’existe pas: elle n’est qu’un point qui se déplace et cette conception explique pourquoi la pensée musulmane, niant la ligne et la figure se soit rapidement détournée de la géométrie au profit de l’algèbre et de la trigonométrie (...) L’art musulman sera donc, s’il ne veut être blasphématoire, un art qui soulignera le changement"(13).

     A partir deste amplo embasamento — aqui, pelas limitações óbvias, mais indicado do que propriamente examinado — já podemos compreender porque os fundamentos propendem para a Arte Abstrata, mais precisamente à Caligrafia e não para a arte plástica, figurativa (e do mesmo modo, para a álgebra e não para a geometria...). E torna-se fácil compreender que — exceção feita da ta’zieh, dramatização persa shi’ita do martírio do Imam Hussein (explicável historicamente) e da "minimização" da imagem pelo "teatro de sombras" não haja propriamente um teatro muçulmano e que praticamente, todo o teatro árabe, dentro da concepção que conhecemos no Ocidente, seja de lavra cristã.     


1. Cf., p. ex., Roque S. Maciel de Barros - "As ‘Duas Culturas’: variação sobre o tema", Cadernos de História e Filosofia da Educação, nº 1, FEUSP, 1993, p. 8.

2. Grabar, Oleg La Formation de l’Art Islamique, Paris, Flammarion, 1987, p. 14.

3. Cfr. M. Aziza in L’Image et l‘Islam, Paris, Albin Michel, 1978, pp. 45,46.

4. Von Grünebaum, G. E. – "Idéologie Musulmane et Esthétique Arabe" in Revista Studia Islamica, Paris, 1955.

5. In L’Image et L'Islam, op.cit., p.48.

6. Paris, Fontemoing & Cie., 1915.

7. In Giovanni Damasceno – Difesa Delle Imagini Sacre, Roma, Cittá nova Editrice, 1993, p.19.

8. Ibidem, p.95.

9. Schuon, Frithjof De l’Unité Transcendante des Religions, Paris, Gallimard, 1948,

10. Burckhardt, T. Sacred Art in East and West, Middlesex, Perenial Books, p. 107.

11. Flusser, V. "Ex Oriente Lux" Cavalo Azul, citado na Revista de Estudos Árabes, DLOFFLCHUSP, Ano I, nº 2, 1993.

12. In Le Chemin d’un Calligraphe, Paris, Phébus, 1991, p.138.

13. Citado por M. Aziza in L’Image et l’Islam, op. cit. p. 37.