JL: Gostaríamos de ter uma apresentação
geral de sua formação, pesquisas e obra.
SF: Sou catedrático - há uns dez anos
- de literatura árabe no Departamento de Estudos Árabes e Islâmicos
da UAM. Estudei em Madrid, na Universidade Complutense; fui
diretor do Centro Cultural Hispânico do Cairo (há muitos anos);
e trabalhei também em muitas universidades e centros culturais
espanhóis... Este é, em resumo, meu currículo passado; mas,
naturalmente, para mim, mais interessante é o atual.
Do ponto de vista da pesquisa científica -
ou do trabalho intelectual (a palavra "pesquisa" -
como a palavra "cientista" -, aplicada a ciências
humanas, me dá calafrios...: nenhum de nós descobriu a cura
do câncer!...) - eu prefiro - ainda que seja uma palavra um
tanto desprezada pela modernidade - qualificar-me, de algum
modo, como um humanista.
Quanto aos estudos que realizei, comecei dedicando-me
- por muitos anos - à pesquisa das artes populares do folclore
árabe e a este tema, dediquei minha dissertação de licenciatura:
sobre a poesia de Ahmad Rami, um dos letristas das canções da
conhecida cantora egípcia Umm Kulthum.
Minha tese de doutorado versou sobre o mawal
egípcio, um gênero de canção popular, em quadras, muito apreciado
não só no Egito, como também em todo o mundo árabe, com variações
de denominações e formas.
Estive trabalhando neste campo de arte popular
e folclore durante anos. Fruto deste trabalho foram três livros:
Las canciones populares árabes (1976), El mawal
egípcio: expresión literaria popular (1977) e, um livro
geral, Literatura popular árabe (1977).
Além disso, publiquei diversos artigos em revistas
especializadas e até chegamos a montar um pequeno Museu, que
depois tivemos que desativar por falta de apoio oficial. Era
uma pequena e simpática coletânea de objetos etnográficos procedentes
de Marrocos, Egito, Argélia e outros países árabes.
Depois desta primeira etapa, passei por um
período de perplexidade e uma espécie de indefinição, pois não
sabia muito bem identificar um campo de trabalho: não era possível
trabalhar com folclore árabe, estando aqui em Madrid (ou em
outras cidades espanholas onde trabalhei). Percebi a grande
dificuldade de dedicar-me à etnografia, sem dispor de apoio
para realizar viagens e trabalhos de campo. Assim, reorientei
meu trabalho - sem abandonar completamente o anterior - e passei
então a dedicar-me ao estudo de Antropologia Geral e Etnografia
Geral, incluindo a Espanha, como é lógico.
EL: Então, suas pesquisas não se limitam
ao mundo árabe?
PM: Não. Devo esclarecer que, além de
doutor em Filosofia e Letras Árabes e Semitas, sou formado em
História da América e, por isso, tenho um grande interesse pelo
continente americano e, em particular, por Ibero-América: sempre
que tenho oportunidade vou à América. Conheço bem a Argentina,
o Paraguai (que visitei muitas vezes), o Peru, o México e, principalmente,
Cuba. Quanto ao Brasil, infelizmente ainda não houve ocasião:
conheço só Foz do Iguaçu e o aeroporto do Rio...
Assim, tive que reorganizar minha pesquisa
etnográfica e antropológica e me orientei para os estudos medievais.
Dei-me conta - não que seja uma grande descoberta original,
mas para mim o foi - de que a literatura árabe medieval é um
inesgotável filão de estudos etnográficos, com materiais de
todos os tipos. E dediquei-me à literatura de viagens, riquíssima
em descrições de costumes, seitas religiosas, comidas, preços,
formas arquitetônicas, itinerários etc. Neste empenho, meu primeiro
trabalho foi "El viaje de Ibn-Battuta", feito em colaboração
com meu amigo e cunhado Federico Arbós.
JL: Seu livro é muito conhecido. É a
primeira tradução de Ibn Battuta?
SF: Em espanhol, sim. Há uma tradução
francesa da metade do século passado e uma inglesa da metade
deste século...
Ainda no campo da literatura medieval, escolhi
um autor que escreve de um modo complicado, mas que é uma fonte
preciosa: Al-Jahiz. E traduzi para o espanhol - e ainda há tão
poucas traduções da literatura medieval árabe entre nós - El
libro de los avaros, que apresenta não só passagens cômicas,
mas também muito material antropológico.
Dada a escassez de traduções, tem havido algum
incremento nesse trabalho: eu mesmo estou me dedicando à tradução
de obras clássicas, como as Maqamat de Al-Hamadhani.
Embora seja uma obra complicada e rebuscada (de um super-estilismo
literário...), traz significativas informações culturais.
Há poucos anos, encarregaram-me da tradução
de uma obra importantíssima. Seu autor é um hispano-árabe que
faz uma descrição da África. Era um granadino, que na infância
emigrou ao Marrocos; foi, depois, capturado por piratas italianos
e foi escravo do Papa, que logo o batizou e o emancipou. E ele
abandonou o nome árabe e adotou um nome italiano: Giovanni Leone
(o nome do Papa). Compôs uma descrição geral da África, baseada
em suas viagens e vivências. O original é italiano (1552) e
foi imediatamente traduzida ao latim, francês e vários outros
idiomas...
EL: ...E também ao castelhano?
SF: Não, como sempre. A tradução castelhana
ocorreu com mais de quatro séculos de atraso. Em 1940, houve
uma tradução - parcialíssima e fraca - dos dois primeiros capítulos,
editada pelo "Instituto General Franco" - uma dessas
instituições militarizadas do protetorado espanhol em Marrocos.
A obra de Leão Africano foi, durante três séculos,
a única base dos conhecimentos europeus sobre a África (todos
a citam e a copiam). Essa tradução pareceu-me um empreendimento
muito importante, além do mais porque era parte de um projeto
mais amplo: o de demarcar o inventário de Al-Andalus.
Foi lançado, junto com discos e outras coisas, em Sierra
Nevada, em 1995, por ocasião de um campeonato de esqui (o
que não me parece mal: que se financiem, assim, objetos culturais,
que, afinal, é o que resta do evento: quem vai se lembrar do
festival de esqui?).
EL: O livro é belíssimo. As gravuras
são da época?
SF: Muitas sim, outras não. Essas gravuras
procedem de vários museus, dentre eles o Museo de Marina.
Isto quanto aos livros. Claro que há também
muitos artigos. Devo também mencionar que ministrei muitos cursos
e conferências em países árabes onde morei - como Egito, Marrocos,
Argélia... - e também na América.
EL: Poderia contar-nos de suas experiências
na América?
SF: Como dizia, vou com freqüência à
América e, principalmente, a Cuba, onde tenho bons amigos na
universidade de La Habana, no Instituto de Lingüística
y Literatura e no Centro de Estudios de África y Medio
Oriente.
JL: E neste momento, em que projeto
está trabalhando?
SF: Estou preparando um livro que será
um tanto polêmico. Se as editoras não mudarem o título, será
nada mais e nada menos que: Al-Andalus contra España.
O objetivo é tentar reequilibrar o enfoque que os espanhóis
têm de Al-Andalus.
Como sabem, houve uma época em que - por motivos
ideológicos e conveniências políticas - marginalizava-se sistematicamente
qualquer referência ao hispano-árabe. O resultado foi que a
grande cultura espanhola fez-se de um ponto de vista de oposição
ao Islam e aos árabes. É um fato; quer queiramos, quer não.
Desse modo, produziu-se um pano de fundo cultural
no imaginário coletivo e nos intelectuais espanhóis. Esse lastro
durou praticamente até o século XX. Depois da morte do General
Franco, houve um reordenamento de pontos de vista e um reflorescimento
da consideração do legado árabe.
Passou-se de um extremo a outro, que também
falsifica as realidades históricas. Por isso, penso que é oportuno
apresentar um outro ponto de vista, bem fundamentado, que não
significa um retorno à Espanha de El Cid, de Menéndez
Pidal, da cruz e da espada etc., mas, simplesmente, de pôr as
coisas em seu devido lugar.
Não importaria o que as pessoas pensassem no
plano histórico, se os erros históricos não se projetassem no
plano político e na vida quotidiana. É o que ocorre, hoje, na
Andaluzia: reinventar uma história excessivamente pró-árabe,
sem base histórica. Isso me parece perigoso e nem sequer beneficia
os árabes. A criação de imagens equivocadas agudiza conflitos
culturais em um país que já os têm de sobra. Esses conflitos
são utilizados politicamente por interesses de oligarquias locais,
induzindo as pessoas a acreditar em falsidades. Um exemplo concreto:
não me parece sério que os habitantes de Granada, Sevilha ou
Cádiz, que, em sua absoluta maioria, têm origem no Norte, venham
dizer que são descendentes dos árabes. É simplesmente ridículo.
Não só porque tenham sobrenomes castelhanos - Gutiérrez, Martínez,
López - é que culturalmente não têm essa base árabe.
Claro que não se pode negar a influência árabe,
mas é um grande exagero dizer que a Andaluzia é acentuadamente
árabe.
É uma questão polêmica e que precisa ser muito
matizada. Por isso, penso que meu livro não será bem recebido
na Andaluzia, sobretudo pelos políticos.
MS: Levando este problema para um âmbito
mais geral, vivemos um momento em que - junto com a globalização
- acentuam-se na Europa as divisões e os regionalismos. Como
isto ocorre na Espanha?
SF: É um problema de psicologia de massas:
quando se tende à unificação por parte de grandes corporações
econômicas e políticas, logo surgem grupos locais que procuram
afirmar sua identidade... É, portanto, uma tentativa de reafirmar-se
a partir da "identidade menor", esquecendo-se da "identidade
maior", que era dada pelos estados nacionais: estes faziam
com que um andaluz e um basco se sentissem partícipes de uma
mesma coletividade e de um projeto comum. Não vou dizer que
o particularismo, em si, seja bom ou mau; o que desaprovo são
suas formas excessivas.
Não vejo diferenças tão grandes. O tal "fator
diferencial", tão reafirmado pelos catalães, é, no fundo,
uma justificativa para reivindicar orçamentos maiores que os
outros espanhóis.
Com os bascos, ocorre o mesmo: pagam menos
impostos ao governo central, porque usam boina ou tocam o chistu
(flauta basca). O que não entendo é a correlação; não entendo
essa argumentação. Parece-me que são pretextos, usam a "cultura".
Claro que ninguém pretende negar que o País Basco tenha uma
cultura diferenciada, ao menos em parte. Nem toda a população
é de origem basca e há muita miscigenação... Também na Galícia,
na Catalunha, em Valência etc. há culturas diferenciadas...
Agora, isso justifica a criação de novas entidades políticas?
Claro que não!
Aqui, quero destacar outro aspecto, também
bastante significativo, bem exemplificado no caso da Iugoslávia.
A posição unânime de todos os meios de comunicação europeus
e americanos foi a de defender a tolerância religiosa, étnica
etc. - valores que ninguém pode negar.... Porém, esta lógica
nunca deveria ter levado - a partir do reconhecimento de uma
diferença cultural - a propugnar pela criação imediata de um
novo estado! É uma contradição terrível, da qual nunca se fala:
em vez de integrar, procura-se separar. Assim, os defensores
da tolerância, ante as comunidades muçulmanas, sérvias e croatas
em vez de um convite à convivência, tratam de separá-los, criando
um novo Estado!
E é precisamente isto o que está ocorrendo
no País Basco! Fala-se em tolerância e convivência, mas o que
se quer é uma fronteira e uma alfândega! Não digo que todos
os bascos pensem assim; refiro-me aos círculos nacionalistas.
O caso catalão é semelhante: os nacionalistas
querem uma fronteira no rio Ebro. Não querem que os andaluzes
aprendam catalão (o que lhes possibilitaria o acesso a cargos
médios e superiores em Catalunha...). O argumento que se está
usando no País Basco - e principalmente na Catalunha - é o de
que para se trabalhar na Catalunha - claro que não como servente
de pedreiro... - deve-se saber catalão. Assim para ser médico,
tabelião etc. é necessário saber catalão. Ora, uma pessoa de
Badajoz não sabe catalão e se não se lhe ensina, nunca poderá
concorrer a um emprego na Catalunha... Agora, um catalão vai
a Madrid e a Astúrias e concorre normalmente aos melhores empregos.
Aí é que está! Um exemplo pessoal: minha filha Samira estudou
medicina em Cuba, com ótimas notas. Recentemente, participou
do exame MIR (médico interno residente) e foi aprovada com direito
a exercer sua profissão em qualquer lugar, menos na Catalunha.
No mesmo exame - aí está o absurdo -, seus colegas catalães
não têm impedimentos para trabalhar em León, Andaluzia, Múrcia,
Madrid...
MS: Está bem colocada a questão da globalização/particularização
na Europa. No caso específico da Andaluzia, o substrato árabe
é usado politicamente?
SF: Vamos tratar, então, da Andaluzia.
A partir do século XIII, há uma repovoação de Andaluzia com
cristãos do Norte, como ocorreu em Portugal. Então, os árabes
misturam-se ou saem: no século XVII, este processo está consumado.
Restam elementos árabes no léxico, em alguns costumes culinários,
na arquitetura (que é o que dá impacto visual...) etc.
Ora, os viajantes românticos do século XIX
- franceses, ingleses... - vinham procurando coisas pitorescas,
"sabor local"... E o "sabor local" tem que
ser árabe. Outro dia, quase morri de rir ao ouvir um comentário
sobre uma senhora totalmente basca, que era "de uma beleza
muçulmana autêntica". Como quando Merimé fala da "arquitetura
árabe" da "Lonja de Contratación" de Valência,
que é um edifício gótico do século XV!! Imagine na Andaluzia
como funciona a indústria do pitoresco...!
Junte-se a isto a teoria de Américo Castro,
de que a Espanha é um país mudéjar...: o que pode estar
parcialmente certo; todo o problema é estabelecer a proporção:
principalmente no plano ideológico.
Com nossa democracia, veio a moda de inventar
Autonomias, para as quais se necessita de uma base. E como na
Andaluzia não há uma burguesia local independentista, nem uma
língua diferente, a única saída - para o oportunismo dos políticos
- era recorrer à geografia e à história. Certamente, Andaluzia
é a região da Espanha mais próxima do Marrocos e foi uma parte
de Andaluzia o último reduto de Al-Andalus, mas isso,
a meu ver, não constitui base histórica suficiente, porque depois
aconteceram muitas outras coisas (outro povoamento, outra forma
de organizar a vida etc.).
Essa história do nacionalismo andaluz é cópia
do nacionalismo basco e catalão (embora tenha nascido nos anos
trinta, mas era, então, uma coisa de Blas Infante e "cuatro
señoritos" de Sevilha que queriam equiparar-se aos
bascos e catalães), é uma piada...
No fundo, não é que adorem os árabes nem que
queiram ser árabes nem se reconverter ao Islam..., mas, pura
e simplesmente, precisam de um ponto de apoio para diferenciar-se
politicamente e, no final das contas, pagar menos impostos,
como os bascos... Este é o fundo da questão para os que dirigem
o movimento (não para os que vão na onda...), exatamente como
acontece no País Basco...
Os separatistas bascos, evidentemente, são
favorecidos pelos assassinatos da ETA, mas já anteriormente
a ameaça permanente de separatismo - tal como na Catalunha -
serviu para obter enormes vantagens econômicas que os outros
nunca tiveram. E que, além do mais, cria-se uma condição de
vitimismo permanente - "Somos vítimas do governo central!"
- que me faz lembrar aquele melodramalhão mexicano: "Os
ricos também choram!": precisamente as regiões mais ricas
da Espanha - País Basco e Catalunha - estão sempre lamentando-se
por estarem sendo prejudicados e perseguidos...
Depois de se beneficiarem, a seu tempo, dos
investimentos, das alfândegas espanholas, da proteção econômica
do estado central, da descapitalização de outras regiões...,
quando se instala a unidade européia, dizem: "nós não somos
Espanha!", "agora não precisamos da Espanha",
"vamos discutir diretamente com Bruxelas"... Beneficiaram-se
por mais de um século e meio.
No século XIX faz-se um grande pacto na Espanha,
quando se dividem e se diversificam as regiões: País Basco e
Catalunha destinam-se à mineração, industria e comércio; Madrid
é a capital; o resto, agricultura e pecuária.
Com a política alfandegária, com os investimentos
do Estado centralista, o dinheiro que faltou em Badajoz, Andaluzia
ou León, foi à Catalunha e ao País Basco. E agora dizem: "não
precisamos mais da Espanha". Isto não é reprovável só do
ponto de vista moral: é uma atitude absolutamente inadmíssivel!
Voltando ao caso da Andaluzia e dos árabes
- e precisamente por isso estou trabalhando nesse livro -, está
se criando no plano ideológico um problema realmente grave,
pois lá não há um sentimento nacionalista ou anti-espanhol.
Mas pode ser que, por força de repetições, se chegue à criação
de um conflito. Publiquei, há muitos anos, um artigo em "El
País", artigo que foi muito mal recebido em Andaluzia:
"Andalucía Árabe?". Começava citando um verso
de Machado: "Aquí y allá los ecos moros de las chumberas"
("Aqui e lá os ecos mouros das figueiras-da-índia").
Este verso atesta o fato de que, sim, há muitas chumberas
na Espanha e no Marrocos. O absurdo é que a chumbera
não é uma planta de origem africana, mas, com toda a certeza,
americana e não tem nada que ver com Al-Andalus! O caso
chamou-me a atenção para falsificações desse calibre...
O ponto de vista deve ser bem esclarecido.
Não quero negar Al-Andalus - seria jogar pedras contra
meu próprio telhado -, não vou negar que houve aqui uma arquitetura,
uma literatura, uma história árabe: uma cultura árabe. Árabe
e não hispano-árabe. Houve um exagero em sentido contrário:
para mostrar uma continuidade cultural na Espanha - entre a
Espanha romana e a do século XVI - diz-se que Al-Andalus
é hispano-árabe; mas, em minha opinião, é simplesmente árabe
(não cem por cento árabe porque isso não existe: no Iraque,
há minorias cristãs; na Síria, permanece algo do aramaico e
influências persas; no Egito, influências coptas; para não falar
do Norte da África...).
Não se deve entender as coisas de modo tão
estreito: ou é branco ou é preto; ou é espanhol ou é árabe:
"isto é espanhol desde as grutas de Altamira, desde os
iberos, Viriato era espanhol...". O caso Viriato aborrece
os portugueses: evidentemente, dizer que Viriato era espanhol,
ou português não tem pés nem cabeça... Falando com José Saramago,
com quem tenho certa amizade, divertimo-nos muito com o Viriato:
é preciso achar um mito fundante da nacionalidade...
Na escola, ensinavam-nos que Viriato era um
pastor lusitano que lutou contra os romanos: não era
claro que fosse português, mas também não se afirmava que fosse
espanhol: era lusitano. O essencial era estabelecer mitos
fundantes da nacionalidade espanhola. E quanto mais antigo,
melhor. E conseguimos chegar até o séc. II A.C. Considero que
essas falsificações, essas idealizações não são boas: são instrumentalizáveis
e fomentam a incultura.
Espero que meu livro tenha alguma utilidade.
LJ: Ocorre o mesmo com alguma manifestação
artística?
SF: Sim, estudo, por exemplo, o caso
do flamengo, considerado - sem nenhuma base lógica ou documental
- como música árabe. O que é certo é que o flamengo é muito
recente. Muitas peças de vestuário que se consideram tradicionais
não são tão antigas: a mantilla é do séc. XVIII; o mantón
de manila, do XIX; o traje de baturro aragonês é
do XVIII...
LJ: ...E imediatamente são classificados
como árabes...
SF: Claro, qualquer coisa que se considera
antiga é árabe, dos moros e se não se sabe a origem:
aí então é certamente árabe...
MS: E essas manipulações atentam contra
a integração?
SF: Claro, aí é que está o problema.
Se a maioria basca declaradamente deseja ser independente, pois
que o seja. Mas, independentes de verdade. Que não fiquem nesta
situação ambígua: com pretexto de que tocam chistu, pagam
menos impostos e cobram mais. Por exemplo, a polícia da Catalunha
- como se trata de uma autonomia, com um fato diferencial...
- recebe salários maiores do que os de seus colegas do resto
da Espanha... E os rombos orçamentários são cobertos pelo governo
central... De fato, não querem a independência...
"Fator diferencial", quem não tem?
Vocês, no Brasil, um país enorme, certamente têm diferenças,
mas estas justificam alguma independência ou a exploração de
uns pelos outros?
MS: No Brasil, ainda que haja diferenças,
seria mais difícil criar um mito - digamos, os Bandeirantes
- do que o dos árabes em Espanha?
LJ: Há, porém, certas tendências separatistas
no sul do Brasil.
SF: Tenho a impressão de que também
na América Latina se estão fomentando tendências separatistas
por parte do poder hegemônico mundial.
Quando se provoca num Canadá o fenômeno de
Quebec, a pergunta é: a quem isto beneficia? Certamente não
só aos habitantes de Quebec... E se o Brasil se divide, quem
se beneficiará?
Há um problema na América Latina que parece
bastante grave. Um problema em que se mistura uma questão ética
e de justiça com uma questão política: a questão indigenista.
Sim, houve uma injustiça histórica, uma enorme injustiça social
sofrida pelos indígenas, juntamente com outras populações não
indígenas. Então, fomenta-se - temo que por parte dos Estados
Unidos - movimentos indigenistas como forma de ruptura das unidades
nacionais. E atacam pelo lado cultural e pelo lado religioso:
as seitas protestantes. Interessa - para a cabeça que dirige
todos esses movimentos - uma atomização geral. Não interessa
para os Estados Unidos um Brasil forte. Não interessa para os
Estados Unidos um México forte. Interessa-lhes que o México
se fragmente em quinze países do tamanho de Honduras...
EL: Se o País Basco se separa será um
país medíocre...
SF: Sim, um país medíocre nas mãos da
Inglaterra ou França. O separatismo basco tem já um século e
sempre foi favorecido pelos ingleses.
MS: A Inglaterra é mestra nesta política...
SF: Claro. Um último detalhe... Quando
- há cerca de quinze anos - se constituiu a polícia basca, os
instrutores foram ingleses: não quiseram instrutores espanhóis.
MS: É realmente uma questão grave...
SF: Sem dúvida!